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O poder decisório do mercado, os fomentos indiretos e renúncia fiscal

CAPÍTULO I – Cinema, mercado e Estado no Brasil

1.1 Cinema e Estado no Brasil: uma breve retrospectiva histórica

1.1.6. O poder decisório do mercado, os fomentos indiretos e renúncia fiscal

Ainda durante o governo Collor, já imerso neste processo de crise, o presidente substituiu Ipojuca Pontes, responsável pelo desmonte da Embrafilme, pelo intelectual Sérgio Paulo Rouanet na Secretaria da Cultura.

A Lei de Incentivos Fiscais do governo Sarney havia sido interrompida em função de denúncias e a classe artística reivindicava seu retorno. Rouanet, então, “reeditou as medidas de incentivo cultural com base na dedução do imposto de renda, mas reformulou a legislação para evitar que se repetissem as fraudes e irregularidades que aconteciam com a Lei Sarney” (MARSON, 2009, p. 42). A nova legislação levou seu nome: Lei Rouanet. Dela, destacam-se dois artigos, 18 e 26. O Artigo 18, direcionado à cultura, no que tange ao audiovisual, abrange obras de curta e média metragem. O Artigo 26 apoia vários setores culturais e atinge a produção cinematográfica de longa-metragem.

Ainda no governo Collor, em 1991, foi criado o programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), de certa forma retomando os investimentos do governo na cultura. Apesar dessas medidas, os escândalos de corrupção e a crise econômica e política resultaram, como já foi referido, no processo de impeachment de Fernando Collor e o levaram a renunciar em 1992.

O vice-presidente, Itamar Franco, tomou posse, e foi progressivamente retomando o diálogo entre a classe artística e o Estado, reativando, entre outras coisas, o Ministério da

25 É importante lembrar que a Constituição de 1988 deu ao município o status de ente federativo. Desta forma, a cultura, o patrimônio histórico, a memória imaterial, passaram a ser objeto de políticas compartilhadas entre União, estados e municípios. Se por um lado foi ampliado o leque de atores a serem atuantes no setor, por outro abriu-se um vácuo com a retirada da União como coordenadora e fonte maior dos recursos.

Cultura e dentro dele criando a Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual (SDAv). É nesse momento que se a elaboração da Lei nº 8.685/93, a chamada Lei do Audiovisual, uma legislação específica para o setor. Suas modalidades de auxílio estão descritas nos artigos 1º, 1ºA, 3º, 3ºA e 39. Os efeitos desta lei serão percebidos a partir de 1995, já durante o plano real no governo Fernando Henrique Cardoso.

Esse novo processo de políticas para a cultura foi baseado em renúncia fiscal, em que empresas poderiam optar por investir uma parte de seus impostos devidos em produtos culturais. Pelas novas regras, as produtoras que poderiam executar o projeto deveriam ser empresas brasileiras26 e independentes27 ou ainda em regime de coprodução28 nacional ou internacional29, e as empresas que poderiam investir, pela lei, seriam empresas públicas ou privadas tributadas em lucro real30. Desta maneira, a empresa investidora que fosse tributada em lucro real deveria pagar seu Imposto de Renda e, deste montante, poderia direcionar até 4% para o investimento incentivado em cultura.

Como consequência desse sistema, o que ocorreu na prática foi que somente empresas de grande porte, como Petrobras, Bradesco e BNDES, conseguiam investir em cultura – cenário que permanece até os dias atuais. Esses mecanismos de fomento federais têm correlatos nas esferas estadual e municipal, os quais operam com a renúncia de impostos de sua jurisdição.

As leis de incentivo, quando de sua concepção, tinham um tempo previsto para acabar, visto que haviam sido criadas para um momento difícil vivido pelo cinema brasileiro que, esperava-se, iria passar. Segundo Lia Bahia, a ideia era elas vigorarem por dez anos, até que o mercado se tornasse autossustentável e independente do Estado. Essas leis foram direcionadas para a produção de filmes e, portanto, não havia um cuidado com as demais etapas, como distribuição e exibição. Na perspectiva de Carlos Augusto Calil, nesse período “o cinema brasileiro é mais dependente do Estado do que na época da Embrafilme, tida como intervencionista, dirigista e todos os outros ‘istas’ que se possa imaginar” (BAHIA, 2012, p. 69).

26 Capital social majoritário nas mãos de brasileiros natos ou naturalizados.

27 Produtor majoritário sem vínculo direto ou indireto com emissora de TV ou operadoras de TV por assinatura. 28 No caso de uma coprodução, o produtor majoritário e minoritário devem seguir as normas da Ancine (DDC Ancine n. 95/2010.

29 As coproduções internacionais devem seguir as normas de acordos internacionais de coprodução.

30 São maneiras de tributação do Imposto de Renda pelas empresas. Esta tributação pode ser pelo lucro real, sobre valores realizados, ou lucro presumido, que é sobre projeções.

Embora houvesse nesse período a Lei do Audiovisual e a Lei Rouanet, ambas baseadas em renúncia fiscal, não havia um órgão em plano nacional que gerisse a cultura – algo que será reivindicado pelo setor e que dará origem futuramente à Agência Nacional do Cinema (Ancine). (BAHIA, 2012, p. 29).

Apesar da existência de outros fatores que contribuíram para o processo de retomada do cinema brasileiro em meados dos anos 1990, como o Prêmio Resgate, a criação da Riofilme e a participação dos polos regionais, é possível afirmar que os dois mecanismos de incentivo – o art 25 da Lei Rouanet e o art 1º da Leio do Audiovisual – representaram a espinha dorsal do novo modelo de fomento à atividade cinematográfica no período. (IKEDA, 2015. p. 21).

Com essas medidas, um novo arcabouço legal, fundido nos moldes neoliberais, passou a ser trabalhado e implantado de modo a legislar na autêntica “terra arrasada” deixada pelo governo Collor. “Tinha início o processo da conformação de uma nova política, mais voltada para as leis de mercado, na qual o Ministério tinha cada vez menos poder de interferência” (CALABRE, 2007, p. 95).

No governo Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1995, se deu a estabilização do modelo de incentivos fiscais, que se consolidou nos seus 8 anos de governo como uma política cinematográfica efetiva. Dessa forma se estabelecia que os recursos proviriam do Estado, no entanto a decisão de quanto investir e em que, seria do mercado. Esse modelo, que buscava dar uma resposta às críticas e às acusações de clientelismo, típicas do período da Embrafilme, traziam como pressuposto a aproximação com o setor privado (IKEDA, 2015). Na gestão de Itamar Franco havia 72 empresas que usavam leis de incentivo; no governo Fernando Henrique Cardoso, passaram a 235 em 1995, 614 em 1996, e 1.133 em 1997, apesar de registrarem uma queda nos dois anos seguintes. Essa redução, segundo Rubim (2007, p. 27), foi resultado do processo de privatização de empresas estatais no governo de FHC, visto que no Brasil o investimento em cultura é majoritariamente de empresas estatais e governamentais. Para o autor, esse modelo de financiamento merece críticas: além da dificuldade de se conseguir recursos privados, havia uma grande concentração regional, visto que a maioria dos recursos iam para Rio de Janeiro e São Paulo.

Entretanto, esses problemas não impediram que a partir de 1995 se passasse a falar numa “retomada” do cinema brasileiro. Os incentivos fiscais aumentaram o número de filmes realizados, mas “seriam necessários cerca de dois anos até que os primeiros filmes realizados com recursos das leis de renúncia fiscal fossem produzidos e levados às telas,

dando início ao fenômeno que seria conhecido como a retomada do cinema brasileiro” (BARONE, 2009, p. 90)31. Ainda que o governo Fernando Henrique Cardoso tenha conquistado uma estabilidade econômica para o país, com o fim da inflação e um retorno de consumo por parte das classes menos favorecidas, na gestão de seu ministro Francisco Weffort se consolidou a prática de destinar à iniciativa privada o poder de decisão de quais projetos culturais deveriam ser incentivados.

É importante fazer menção à criação da Globo Filmes, em 1998, tendo em vista o impacto que ela irá causar no mercado cinematográfico nacional. Isto fica evidente nos dados: as maiores bilheterias do cinema nacional têm coprodução da Globo Filmes. A Globo Filmes atuará através da coprodução e investirá nos filmes através de recursos indiretos, oferecendo serviços disponíveis em sua grade de programação. Neste tipo de atuação, ela tem poder de intervenção na obra, uma vez que se torna sócia da mesma. Nesta categoria, ela oferece divulgação do filme em seus intervalos comerciais através do cross media (uma divulgação dentro de um programa televisivo da rede) ou através de um serviço de consultoria (derivado de sua expertise no auxílio aos projetos). Também nesses acordos podem ceder seus atores, que, depois da criação da empresa, passaram a contar com contratos mais restritos para atuação em outros projetos que não ligados à emissora. Assim, uma vez que o filme seja coproduzido com a Globo Filmes, há mais chances de a produção obter um bom retorno de público. A contrapartida a isso é que a empresa garante para si parte dos direitos. Ela recebe através de despesas de comercialização da obra, fazendo parte dos direitos patrimoniais do filme ou ainda com a exclusividade da primeira exibição em sua ampla programação. Ela também pode atuar em regime de apoio – um modelo criado em 2004 após receber críticas do setor em função do perfil de produções que vinham sendo auxiliadas pela empresa. Segundo Ikeda (2017), este mecanismo de apoio destina-se a filmes que já estejam prontos, com uma distribuidora e data de lançamento previsto. Dessa maneira, a Globo Filmes passou a apoiar produções de orçamento médio na busca de atenuar as críticas recebidas e receber apoio da categoria.

Um dos argumentos favoráveis à Globo Filmes é o fato de ela ter força para competir com os grandes lançamentos estrangeiros num mercado dominado pelas majors. Lia Bahia considera o filme O Auto da Compadecida um marco na relação entre cinema e televisão, visto que foi inicialmente lançado como série (em janeiro de 1999) e, depois, como

31 Neste momento teremos uma redução drástica de salas de cinema passando de 1.365 em 1996, para 1.075 em 1997 (BARONE, 2009, p. 91).

filme (em setembro do mesmo ano) para exibição em sala de cinema. Coproduzido pela Globo Filmes, o filme se tornou um sucesso nacional, com mais de 1 milhão de espectadores, mesmo tendo a série sido exibida primeiramente na televisão. Depois dessa experiência, tal prática tornou-se comum, e outros programas da emissora viraram filme, por exemplo Os normais (2003), ou filmes viraram série, caso de Cidade de Deus (2002), que foi transformado em uma série para TV intitulada Cidade dos Homens (4 temporadas, de 2002 a 2005).

Depois de alguns anos de leis de incentivo, o livre mercado já não era a melhor opção e o Estado passou a ser visto como fundamental para o desenvolvimento do setor.

O sistema de incentivo fiscal criado a partir de 1991 com a Lei Rouanet, e ampliado com a Lei do Audiovisual em 1993 encontrava um grande distúrbio para sua manutenção, pois a situação econômica de 1999 reduziu o montante de imposto pago pelas empresas, além de encarecer a produção cinematográfica, diminuindo a oferta financeira para a produção de filmes e ao mesmo tempo aumentando o orçamento destes. Ficou evidenciado que as leis de incentivo não poderiam ser a única forma de mecanismo para o desenvolvimento da cadeia econômica cinematográfica. Apesar da importância destas para a retomada do cinema brasileiro em meados da década de 1990, principalmente a Lei do Audiovisual, faltou uma maior ação da política cinematográfica nos campos de distribuição e exibição para o surgimento de um ciclo que retroalimentasse o sistema cinematográfico brasileiro. (ALVARENGA, 2010, p. 18).

Foi criada uma Subcomissão do Cinema no Senado, onde membros da casa e pessoas do setor do cinematográfico se reuniram em alguns encontros entre 1999 e 2000 para discutir a situação do setor. Embora as leis de incentivo tenham sido fundamentais para a retomada do cinema brasileiro depois da difícil década de 90, o modelo apresentava problemas que seriam apontados por agentes do mercado nesta subcomissão.

Em uma das reuniões realizadas, o cineasta Nelson Pereira dos Santos apresentou sua interpretação sobre o quadro em que se encontrava o cinema brasileiro:

Assistimos aos diversos ciclos se fechando porque o cinema brasileiro, seja ele financiado pelo Estado ou pela iniciativa privada, não consegue o retorno do investimento no próprio mercado. E não há condições de termos cinema sem o mercado interno.

A grande questão é a seguinte: existe um mercado interno no Brasil, que é muito bom e há também a possibilidade desse mercado crescer, na medida em que milhões de brasileiros começarem a ser incorporados ao mercado de consumo existente. O cinema brasileiro pode existir apenas dentro do seu próprio mercado desde que tenha condições, tenha salas, tenha acesso à distribuição e video home, tenha acesso ao espaço na televisão.

Acredito que estamos vivendo novamente esse problema, quer dizer, o ciclo está terminando, e não conseguimos vencer ainda a questão da distribuição e da exibição. (ALVARENGA, 2010, pp. 23-24).

Entre os problemas apontados pelos agentes do mercado falou-se: em uma legislação focada exclusivamente na produção, onde as etapas de distribuição e exibição não receberiam a mesma atenção; no tempo que durava entre a captação e a realização de uma obra, o que comprometia seu ciclo econômico e não contribuía para cultivar no espectador o hábito de consumir sua própria cinematografia; no custo do processo de modernização das salas de cinema; na falta da parceria entre cinema televisão.

Um outro ponto apresentado foi o fato de o sistema de estímulos públicos dar ao mercado o poder decisório sobre que obra financiar. Isso fica evidente na fala de Roberto Farias, na mesma comissão:

O Governo resolveu criar um subsídio para o cinema brasileiro. Para quem que foi dado? Para o empresário, para as indústrias, para os grandes comerciantes, supermercados, fabricantes de não sei o quê. A chamada lei do audiovisual não é dada para o cineasta, que continua como pedinte, tendo que oferecer o seu roteiro, falar com o diretor de marketing da empresa para saber se ele quer ou não entrar. Normalmente, isso é sabido, isso tem um custo que não é oficial. E ainda tem mais: se você tem um filme agressivo, um filme que vai criticar algum aspecto político, algo de contestação moral, de contestação social, não interessa porque não corresponde à imagem da empresa. (ALVARENGA, 2010, p. 26).

Segundo Alvarenga (2010), havia, naquele momento, por parte do setor do cinema, uma visão crítica sobre o andamento do Ministério da Cultura sob o comando de Francisco Weffort. Gustavo Dahl defendia a criação de uma Secretaria Nacional da Política Audiovisual, um órgão estatal que agiria de forma descentralizada, diferente da Embrafilme, a fim de desenvolver políticas e representar os interesses do setor, que foi a origem da futura Agência Nacional do Cinema (Ancine)32.

Ainda neste momento, segundo Alvarenga (2010), o governo propôs ampliar a Lei do Audiovisual para as emissoras de televisão e radiodifusão – o que fez com que o setor se sentisse ameaçado pela possibilidade desse desequilíbrio de forças. Esse fato, somado aos encontros no Senado, à crise da lei de incentivo e à falta de políticas direcionadas aos três elos da cadeia (produção, distribuição e exibição), colaboraram para o surgimento do III Congresso Brasileiro de Cinema (III CBC), realizado em 2000 em Porto Alegre.

32 De acordo com Alvarenga, Gustavo Dahl planejou a criação de um órgão administrativo direto, e não indireto, como seria futuramente, uma vez que uma agência reguladora pertence a segunda categoria. (ALVARENGA, 2010, p. 50).

Havia uma maior clareza da necessidade de criar-se um órgão direcionado ao cinema. O primeiro congresso havia ocorrido em 1952 e um segundo no ano seguinte, portanto o III CBC acontecia quase 40 anos depois. Presidido pelo cineasta Gustavo Dahl, contou com profissionais do campo da produção, distribuição, exibição, técnicos, membros de TVs públicas e privadas, assim como críticos e pesquisadores.

Entre os itens do relatório final fica evidente o desejo de um retorno mais efetivo da participação do Estado, sendo importante “criar, no âmbito governamental, um órgão gestor da atividade cinematográfica no Brasil, com participação efetiva do setor e com finalidades amplas de ação como agente formulador de políticas e de informação, agente regulador e fiscalizador de toda a atividade e agente financeiro33”. Após o III CBC, no mesmo ano, foi criado o Grupo Executivo de Desenvolvimento da Indústria do Cinema (GEDIC), uma tentativa de institucionalizar as propostas do congresso, órgão este que seria a futura Ancine.