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CAPÍTULO I – Cinema, mercado e Estado no Brasil

1.2. O documentário na televisão

1.2.1. O documentário e a televisão: o caso do DOCTV

Historicamente, desde que estão presentes nos lares, os canais de televisão foram gradativamente tomando conta do mercado de entretenimento de modo geral e, especificamente, assumiram posição hegemônica no mercado cinematográfico.

Houve alguns momentos em que o documentário fez sua aparição na televisão brasileira, caso da Caravana Farkas, grupo de jovens realizadores que nos anos 60, no ambiente do Cinema Novo e em plena Ditadura Militar, centrados na figura do produtor e fotógrafo Thomaz Farkas, realizaram um conjunto de documentários no Nordeste brasileiro a fim de mostrar um Brasil até então pouco retratado.

Um conjunto de médias-metragens foi agrupado em um longa-metragem intitulado Brasil Verdade e lançado em 1968 tendo como objetivo o mercado de salas. Com a experiência adquirida, Farkas vai a partir do ano seguinte realizar uma série de dezenove curtas-metragens chamada A condição brasileira que “busca viabilizar a produção de documentários que seriam depois vendidos ou alugados às escolas, explorando um mercado de cerca de duzentas cópias, o que pagaria os filmes”44 (RAMOS, 2004, p. 92).

Segundo Holanda “os cineastas da Caravana Farkas foram convidados, assim como outros, a dirigir programas para o recém criado Globo Shell Especial e, logo em seguida, Globo Repórter”. (2013, p. 12). A pesquisadora cita igualmente a série de

43 São paradigmáticos os casos das famílias de Antônio Carlos Magalhães na Bahia e Collor de Mello em Alagoas.

44 RAMOS, Fernão Pessoa. “Cinema Verdade no Brasil”. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (Org.).

documentários dos anos 1970 Hora da Notícia que contava com nomes como Vladimir Herzog e João Batista de Andrade (2013, p. 13).

Entre os anos 1980 e 1990, o documentário também esteve ligado a movimentos sociais em um cenário de redemocratização do país, assim como em cineclubes, sindicatos e associações. Nesse momento, algumas produtoras começaram a produzir para a televisão, como é o caso da Videofilmes, criada pelos irmãos João Moreira Salles e Walter Salles nos anos 1980, que começaram a atuar no mercado realizando produções para televisão como China, o império do centro (1987) e América (1989) para a Rede Manchete.

Nesse processo, João Moreira Salles, no final dos anos 1990, realizaria Notícias de uma guerra particular (1999), exibido exclusivamente na televisão.

Notícias de uma guerra particular (1999) foi exibido pelo GNT, foi feito pensando-

se no canal a cabo. Hoje em dia ele não seria exibido no GNT. O GNT virou outra coisa, um canal de serviço, feminino. Não sei onde o Notícias se encaixaria na TV fechada, talvez só no Canal Brasil. A televisão brasileira não é parceira do documentário para exibição.” (SALLES, 2010).

Holanda cita algumas das produtoras que começaram sua atuação nos anos 1980:

Em São Paulo, a TVDO, de Tadeu Jungle, Walter Silveira, Ney Marcondes, entre outros; e a Olhar Eletrônico, de Fernando Meirelles, Paulo Moreli, Marcelo Tas. Em Olinda, a original TV Viva. Em Recife, já nos 1990, a Parabólica Brasil, de Adelina Pontual, Cláudio Assis e Marcelo Gomes, para destacar algumas. (HOLANDA, 2013, p. 13).

A televisão desenvolveu-se, desde o início de suas atividades, com insuficiente regulamentação, e não se conseguiu uma estratégia que aproximasse o cinema da televisão, e, sob esse aspecto, a produção independente sofre ainda mais, como é o caso de boa parte dos documentários. Contrariamente àquilo que acontece em outros países, a França por exemplo, no Brasil o cinema e a televisão sempre foram setores que, de certa forma, se mantiveram afastados. O cinema nacional como um todo ocupa pouco espaço na televisão, e a situação torna-se mais crítica quando se fala do documentário. Esse cenário mudou progressivamente com a Lei da TV Paga, que estabeleceu cotas de exibição de programação nacional dentro dos canais.

Apesar dessa relação distante, é preciso mencionar algumas exceções na nossa história relacionando documentário e televisão. Por exemplo, o Programa Doc TV, o qual, embora tenha deixado de existir, foi uma política fundamental para estreitar a relação entre a

produção independente de documentários e a televisão pública. A iniciativa foi criada em 2003 pela Secretaria do Audiovisual, que, naquele momento era comandada pelo realizador Orlando Senna (2003-2007). Além de longa experiência no campo prático do cinema, com uma produção premiada, Senna foi um dos colaboradores na implementação da Escuela Internacional de Cine Y TV - San Antonio de Los Baños, em Cuba, assumiu a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que gere a TV Brasil, presidiu a TAL (Televisão América Latina) e, mais recentemente, a direção do canal CinebrasilTV, focado em conteúdo nacional independente.

O DOCTV buscava incentivar a produção de documentários em vários estados do país que seriam posteriormente exibidos na televisão pública atingindo todo o território nacional. Segundo Orlando Senna, o “DOCTV foi desenhado em fevereiro de 2003, apenas um mês depois da posse do governo Lula e quando ainda estávamos, o Ministro Gilberto Gil e eu, montando nossas equipes”. (CAETANO, 2011, p.15). Um dos elementos mais importantes desse programa era a sua perspectiva de descentralização da produção, visto que desenvolvia os mercados regionais através de produção de filmes das várias regiões, assim como fomentava uma formação profissional do setor, através de oficinas que eram ministradas por profissionais renomados no audiovisual, através das oficinas de formatação de projetos. Foram realizadas 67 oficinas para trabalhar a formatação dos projetos que atenderam aproximadamente 2000 diretores. Entre os profissionais renomados podemos citar Eduardo Coutinho, Jean-Claude Bernardet, Giba Assis Brasil e Geraldo Sarno (CAETANO, 2011, p.13).

A origem do programa data de um Seminário organizado por Orlando Senna em 2002 e com a participação da classe artística, onde foi apresentada a situação do setor. Entre outras coisas, colocou-se a necessidade de abrir espaço na grade televisiva para a produção independentemente e o fomento da produção regional. Segundo Orlando Senna,

lembrando que cheguei à Secretaria do Audiovisual com a base de um plano de políticas públicas embaixo do braço, já aprovada por Lula e Gil: o relatório do Seminário Nacional do Audiovisual, que havia trabalhado em dezembro de 2002 sobre as propostas dos Congressos Brasileiros de Cinema III e IV, realizados em 2000 e 2001. (CAETANO, 2011, p.15).

Segundo Holanda, “um dos aspectos do DOCTV mais festejado pelos realizadores é a integração da produção independente com a TV, uma relação historicamente tensa no

Brasil, sobretudo quando se fala em criação de marcos que regulamentam a participação dos independentes na programação televisiva” (2013, p. 69).

O programa, além de realizar essa integração nacional, fomentava o setor em cada região uma vez que previa uma parceria entre Governo Federal e Estados, algo que, segundo Senna (2011), incluía negociações políticas quando se tratava de governo da oposição. Nesse processo de rede e de estratégias políticas foram assinados convênios de cooperação entre a TV Cultura e o Ministério da Cultura, com a Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (ABEPEC), assim como uma parceria com a ABD (Associação Brasileira de Documentaristas). Além disso, foram instalados polos estaduais geridos pelos canais e documentaristas. (CAETANO, 2011, pp. 17-18).

O programa tornou-se referência para outros países e, a partir de 2006, foi multiplicado, nascendo assim o DOCTV Ibero-América, hoje chamado de DOCTV América Latina, que envolve a coprodução e teledifusão em 13 países latino-americanos, Portugal e Espanha; o DocTV CPLP (Comunidades dos Países de Língua Portuguesa); e o DocTV Colômbia.

Como consequência do próprio espírito que norteou a sua concepção, outro aspecto importante do DOCTV foi o seu acesso direto ao público. Um estudo intitulado Balanço DOCTV, que buscou mapear esses dados, segundo informações da TV Cultura e IBOPE, revelou importantes informações.

[…] pelo relatório Balanço DocTV - 2003-2006, as duas primeiras edições tiveram alcance domiciliar médio de 4,5%. O relatório informa ainda que “alcance domiciliar médio” refere-se ao percentual médio de domicílios diferentes que assistiram, pelo menos, a um minuto por filme e que cada ponto percentual corresponde a uma média de 51 mil domicílios na Grande São Paulo. Sabe-se que esses valores são bastante significativos para a TV pública e bastante elevados para o documentário, acostumado a índices irrisórios de audiência quando exibidos em salas de cinema. Se nas salas comerciais, muitas vezes, um filme documentário não alcança sequer um mil espectadores, na televisão, de acordo com tais dados relativos ao DocTV, fala-se em cerca de 230 mil domicílios”. (HOLANDA, 2011, p. 61).

Segundo Renato Nery, houve igualmente a tentativa de venda desses filmes em feiras internacionais, que no entanto não prosperaram – isso demandaria mais recursos do projeto, gasto que não estava previsto inicialmente. Mas houve algumas vendas, como para o Canal Brasil ou para o Canal GNT e, nesse processo, o valor da venda era dividido entre autor, produtora, emissora local e um fundo para financiar novas produções do Ministério da

cultura, o que engendrava um ciclo econômico de retorno ao setor (HOLANDA, 2011, pp. 63- 64).

O DOCTV no Brasil foi encerrado sem ter tido tempo hábil de demostrar completamente seu potencial econômico e sua premissa de buscar a autossustentabilidade. Embora fora do país o programa seguisse, a última edição brasileira ocorreu em 2010.