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2. CIÊNCIA E TÉCNICA JURÍDICA

2.4. A ciência e a técnica jurídica

Em se tratando especificamente de ciência jurídica é necessário ter em mente que os modelos teóricos tradicionais de estruturação deste ramo científico encontram-se parametrizados dentro dos preceitos do paradigma científico dominante. Seja com base na primeira variável, que atribui à lógica matemática os contornos de cientificidade atribuíveis a qualquer investigação, ou ainda com base na segunda variável, a qual estabelece parâmetros específicos para as ciências naturais e para as ciências sociais.

No que tange à primeira variável do paradigma científico dominante, a principal vertente da filosofia da ciência foi a corrente positivista143, que no

direito teve como seu principal expoente Hans Kelsen. Este autor busca uma concepção científica do direito estruturada sobre os parâmetros lógicos

141 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,

1997. p. 151.

142 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e

dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 87.

143 Sobre esta visão científica baseada na primeira vertente do paradigma científico dominante,

Norberto Bobbio, em estudo sobre positivismo jurídico, assim pontua: “A ciência exclui do próprio âmbito os juízos de valor, porque ela deseja ser um conhecimento puramente objetivo da realidade, enquanto os juízos em questão são sempre subjetivos (ou pessoais) e conseqüentemente contrários a exigência de objetividade”. (BOBBIO, Norberto. O positivismo

próprios da matemática, aproximando-se, em sua formulação, da linguagem que lhe é inerente. Afinal, somente assim ele consegue atingir a pureza por ele tanto almejada144.

Para atingir esse objetivo, o autor pretendeu abstrair do direito todo e qualquer aspecto subjetivo, variável e indeterminado, na medida em que a lógica matemática – então travestida de lógica científica – se pauta no objetivo, no absoluto e no determinado. Assim, ele abstraiu de sua formulação os aspectos humano, social e axiológico, estruturando sua teoria exclusivamente na norma jurídica:

Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a firmação – menos evidente – de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou consequência, ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas.145

Tanto é assim que, sob o enfoque exclusivo da norma, Hans Kelsen apresenta uma distinção entre a teoria estática e a teoria dinâmica do direito. A primeira tem como objeto de estudo o conjunto de normas em vigor em um determinado ordenamento, estaticamente consideradas. Já a segunda tem por objeto de estudo o processo em que o direito é produzido e aplicado, isto é, o direito em movimento. Este último, contudo, não retira em absoluto o enfoque normativo da abordagem metodológica proposta pelo autor:

Por isso, os atos de produção e de aplicação (que, como veremos, também é ela própria produção) do Direito, que representam o processo jurídico, somente interessam ao conhecimento jurídico enquanto formam o conteúdo de normas

144 “Quando a si própria designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende liberar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 1). Daí o porquê do autor estruturar sua

teoria sobre concepção de norma jurídica lógica e formalmente considerada. Esta é a única forma de afastar o direito de qualquer conteúdo material, admitindo, assim, a aplicação da lógica matemática, até então incompatível com as teorias elaboradas sobre este ramo científico.

jurídicas, enquanto são determinados por normas jurídicas. Desta forma, também a teoria dinâmica do Direito é dirigida a normas jurídicas, a saber, àquelas normas que regulam a

produção e a aplicação do Direito.146

Como se percebe, é com base nessa perspectiva estritamente formalista, abdicando de qualquer conteúdo volitivo ou valorativo, que Hans Kelsen garante ao direito o status de ciência, pois compatibiliza a linguagem jurídica à linguagem matemática. Ademais, ao focar o objeto de estudo do direito na norma jurídica encontra, também, um fator de diferenciação com relação às demais ciências:

Determinando o Direito como norma (ou, mais exatamente, como um sistema de normas, como uma ordem normativa) e limitando a ciência jurídica ao conhecimento e descrição de normas jurídicas e às relações, por estas constituídas, entre fatos que as mesmas normas determinam, delimita-se o Direito em face da natureza e a ciência jurídica, como ciência normativa, em face de todas as outras ciências que visam o conhecimento, informado pela lei da causalidade, de processos reais. Somente por esta via se alcança um critério seguro que nos permitirá distinguir univocamente a sociedade da natureza

e a ciência social da ciência natural.147

Por sua vez, o autor ignora o aspecto técnico do direito, relegando, por exemplo, a interpretação ao aspecto político, na medida em que, segundo ele, a escolha da norma que se pretende aplicar “não é um problema de teoria do Direito, mas um problema de política do Direito”.148

Em que pese a importância da obra de Hans Kelsen para a sedimentação do direito enquanto ciência, sua visão lógico-matemática, estruturada sobre parâmetros exclusivamente formais, se mostrou insuficiente, na medida em que o direito não se resume à formulação lógica e à sistematização de normas coercitivas que visam a regulação social. A realidade do direito é significativamente mais ampla, e exige a formulação científica de aspectos não contemplados na teoria deste autor.

146 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 80. 147 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 84-85. 148 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 393.

Nesse diapasão, surgiram diversas outras teorias visando explicar o fenômeno jurídico, dentre as quais destacamos aquela elaborada por Tércio Sampaio Ferraz Jr. Segundo este autor, a ciência do direito (dogmática)149 atua

no âmbito da sistematização e da interpretação do ordenamento jurídico e, portanto, suas teorias são, antes de tudo, complexos argumentativos – e não teorias no sentido zetético150 – com pretensão de decidibilidade de possíveis conflitos. Desta forma, as proposições teórico-jurídicas ou tomam a forma de orientações, ou a forma de recomendações ou ainda a forma de exortações. As primeiras são proposições que pretendem orientar aquele que deve tomar uma decisão oferecendo-lhe elementos cognitivos suficientes. As do meio são proposições persuasivas que pretendem acautelar quem vai decidir, oferecendo-lhe fatos e experiências comprovadas, as quais estarão transformadas em regras técnicas. Já as últimas persuadem através de sentimentos sociais e valores, em termos de princípios.151

À luz das explicações expostas torna-se possível constatar que a ciência jurídica enquanto dogmática cumpre funções típicas de uma tecnologia, na medida em que parte de um pensamento conceitual, vinculado ao direito

149 A dogmática é assim exposta pelo autor: “Ela explica que os juristas, em termos de um

estudo estrito do direito, procurem sempre compreendê-lo e tonrá-lo aplicável dentro dos marcos da ordem vigente. Esta ordem que lhes aparece como um dado, que eles aceitam e não negam, é o ponto de partida inelutável de qualquer investigação. Ela constitui uma espécie de limitação, dentro da qual eles podem explorar as diferentes combinações para a determinação operacional de comportamentos juridicamente possíveis”. (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 48)

150 Sobre a zetética assim pontua o autor: “A zetética jurídica, nas mais diferentes

discriminações, corresponde, como vimos às disciplinas que, tendo por objeto não apenas o direito, podem, entretanto, tomá-lo como um dos seus objetivos precípuos. Daí a nomenclatura das disciplinas Filosofia do Direito, Lógica Jurídica, Sociologia do Direito, História do Direito etc. O jurista, em geral, se ocupa complementarmente delas. Elas são tidas como auxiliares da ciência jurídica strictu sensu”. (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do

direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 47)

151 E o autor exemplifica: “Veja-se por exemplo, a teoria dogmática que atribui aos sindicatos o

caráter de pessoa jurídica de direito privado. O jurista parte de uma classificação dos atores sociais, vistos como pessoas físicas e jurídicas. Pressupõe a distinção entre direito público (o Direito Administrativo, o Penal, o Processual) e privado (o Comercial, o Civil) e argumenta: ‘se o sindicato se caracterizasse como público, estariam irremediavelmente comprometidas tanto a liberdade sindical como a autonomia privada coletiva, valores que cada vez em intensidade maior são reconhecidos como princípios fundamentais da organização sindical, condição mesma da existência do sindicalismo’ (Nascimento, 1982:159). Note-se aí o recurso às classificações (orientações), o apelo a valores – como liberdade, autonomia – (exortações) e a menção ao fenômeno histórico e social do sindicalismo (recomendações)”. (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 87)

posto, que busca instrumentalizar a aplicação do direito em concreto. Isto, aliás, é ressaltado pelo próprio autor:

Nestes termos, um pensamento tecnológico é, sobretudo, um pensamento fechado à problematização dos seus pressupostos – suas premissas e conceitos básicos têm de ser tomados de modo não-problemático – a fim de cumprir sua função: criar condições para a ação. No caso da ciência dogmática, criar condições para a decidibilidade de conflitos juridicamente definidos.152

Com vistas a este fato, Tércio Sampaio Ferraz Jr. apresenta os três modelos através dos quais se pode encarar a questão da decidibilidade. O primeiro modelo é chamado de analítico, pois “encara a decidibilidade como uma relação hipotética entre conflito decisões”153, quer dizer que a questão é

determinar as possibilidades de decisão para um possível conflito. Por outro lado o segundo modelo é chamado de hermenêutico, pois “vê a decidibilidade do ângulo de sua relevância significativa”154, isto é, cuida da relação entre a hipótese de conflito e a hipótese de decisão tendo em vista o seu sentido. Finalmente, o terceiro modelo pode ser chamado de empírico, na medida em que “encara a decidibilidade como busca das condições de possibilidade de uma decisão hipotética para um conflito hipotético”155, ou seja, estabelece uma relação entre hipótese de decisão e hipótese de conflito, procurando estabelecer as condições desta relação para além da mera adequação formal entre conflito e decisão.156

152 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,

dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 87.

153 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,

dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 93.

154 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,

dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 93.

155 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,

dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 93.

156 Os três modelos da dogmática apresentados por Tércio Sampaio Ferraz Jr. são

apresentados e explicados por Maria Helena Diniz da seguinte forma: “a) O analítico, que vê a decidibilidade como uma relação hipotética entre conflito hipotético e uma decisão hipotética, procurando determinar as possibilidades de decisões para um possível conflito. A ciência do direito passa ater como escopo a sistematização de normas para obter decisões possíveis. Daí sua função organizatória, pro criar condições para classificação, tipificação e sistematização dos fatos relevantes.

“b) O hermenêutico, que encara a decidibilidade do ângulo de sua relevância significativa. Trata-se de uma relação entre a hipótese de conflito e a hipótese de decisão, tendo em vista o seu sentido. Caso em que a ciência jurídica assume uma atividade interpretativa, tendo uma

Os modelos acima apontados estão inter-relacionados, pois a prática jurídica apresenta uma combinação desses três modelos – ora destacando-se mais um ou outro, ora destacando-se igualmente –, na medida em que todos eles objetivam a solução de determinado conflito e, para tanto, utilizarão elementos de convencimento para persuadir o destinatário do discurso. Daí o seu caráter heurístico. A este respeito assim se posiciona Maria Helena Diniz:

Esses modelos, que estão inter-relacionados, demonstram os modos pelos quais a ciência jurídica se exerce enquanto pensamento tecnológico, pois ao objetivarem a solução de certo conflito, utilizam elementos de convencimento para persuadir o destinatário do discurso, tendo sempre uma função heurística, apesar de privilegiarem uma das funções teóricas, por possibilitarem a descoberta de algo relevante (novos fatos ou situações), criando condições para que certos conflitos sejam decididos com o mínimo de perturbação social. Ao dar preponderância a uma das funções teóricas, cada modelo

engloba as demais.157

Disso decorre que o direito, dentro da dinâmica que lhe é própria, se manifesta no plano concreto através da linguagem. Esta linguagem é utilizada pelo cientista tanto para analisar e descrever as repercussões decorrentes das normas jurídicas em diversos planos – filosófico, sociológico, psicológico etc. – (zetética), quanto para analisar e sistematizar as normas do direito positivo, atribuindo-lhes metodologicamente coerência e validade – esta última significando aqui aceitabilidade social –, assim como oferecendo um arcabouço técnico para viabilizar as decisões jurídicas – isto é, para possibilitar a aplicação do direito – (dogmática).

função, primordialmente, avaliativa, por propiciar o encontro de indicadores para uma compreensão parcial ou total das relações.

“c) O empírico, que vislumbra na decidibilidade uma busca de condições de possibilidade de uma decisão hipotética para um conflito hipotético. A ciência do direito procura investigar as normas de convivência, que, por serem encaradas como um procedimento decisório, fazem do pensamento jurídico um sistema explicativo do comportamento humano, enquanto controlado por normas. Eis por que (sic) sobreleva a função de previsão, que cria condições para que se possa passar do registro de certos fatos relevantes para outros fatos, eventualmente relevantes, para os quais não há registro” (DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à

ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica

e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 196-197).

157 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria

geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 197.

Em suma, para o que interessa ao nosso trabalho, podemos abstrair da teoria de Tércio Sampaio Ferraz Jr. que a dogmática oferece técnicas para aplicação do direito (modelo analítico), as quais serão sopesadas juntamente com questões fáticas de acordo com seu significado linguístico (modelo hermenêutico) e com seu dimensionamento social (modelo empírico). Pode-se dizer, pois, que a tecnologia jurídica é um imperativo de ordem prática.158

Por outro lado, é preciso levar em conta que a diferenciação clássica – de origem grega – entre ciência (epistéme) e técnica (téchne) pode levar ao reconhecimento de um terceiro elemento – também de origem grega –, qual seja, o saber prático (phrónesis).

De acordo com Eros Roberto Grau o direito (positivo) não é uma ciência (epistéme), haja vista que não analisa e descreve qualquer objeto. Por outro lado, o direito é objeto de estudo de uma ciência, a assim chamada ciência jurídica. Daí porque o autor afirma que “impõe-se distinguirmos, assim, a ciência do direito e seu objeto, o direito. A primeira descreve – indicando como, por quê e quando – este último”.159 Afinal, o direito não descreve, o

direito prescreve. Mesmo quando um texto normativo160 descreve uma coisa,

estado ou situação ele é prescritivo, pois “descreve para prescrever que aquela é a descrição do que cogita”.161

Diante dessa afirmação, o autor prossegue e conclui que não há uma única ciência do direito, mas sim um conjunto de ciências do direito – por exemplo teoria geral do direito, história do direito, filosofia do direito, dogmática

158 A respeito da praticidade da tecnologia jurídica assim se posiciona Tércio Sampaio Ferraz

jr.: “Assim, a tecnologia dogmática ao contrário da jurisprudentia romana, torna-se uma provocação, uma interpelação da vida social, para extrair dela o máximo que ela possa dar. A tecnologia jurídica atual força a vida social, ocultando-a, ao manipulá-la, ao contrário da ciência prática da Antiguidade, que se prostrava, com humildade, diante na (sic) natureza das coisas”. (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 88)

159 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2003. p. 37.

160 Para o autor norma é o resultado da interpretação do texto normativo.

161 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo:

jurídica (ou jurisprudência teórica), sociologia jurídica etc. – cujas linguagens são metalinguagens, pois uma vez que tratam do direito como objeto, sua linguagem não se confunde com a linguagem do objeto em estudo - o direito.

No tocante à dogmática jurídica (ou jurisprudência teórica) o autor ressalta sua diferença da jurisprudência prática. A primeira tem por objeto o estudo de problemas jurídicos visando o oferecimento de critérios a serem adotados para a solução dos litígios. Por sua vez, a segunda se confunde com o objeto da primeira, ou seja, “jurisprudência prática e direito (= cada direito) são uma coisa só”.162

Com base nisso o autor diferencia hermenêutica de interpretação, afirmando que a primeira é a ciência que trata de como interpretar, mas que não indica esta ou aquela interpretação, isto é, indica como se decide, sem indicar como se deve decidir. Já a interpretação se realiza no plano da jurisprudência prática, na medida em que todo o direito reclama interpretação, sendo ele próprio (o direito) jurisprudência prática. Portanto, não estamos no âmbito da ciência (epistéme), mas sim na esfera da prudência, esta última compreendida no sentido do saber prático (phrónesis). Sobre este ponto assim expõe o autor:

O interprete autêntico163, ao produzir normas jurídicas, pratica a

juris prudentia e não uma júris scientia. O interprete autêntico, então, atua segundo a lógica da preferência, e não conforme a lógica da conseqüência (Comparato 1979/127): a lógica jurídica é a da escolha entre várias possibilidades corretas. Interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias interpretações possíveis, de modo que a escolha seja apresentada como adequada (Larenz 1983/86). A norma não é

objeto de demonstração, mas de justificação.164

Dessa forma, podemos verificar que, para Eros Roberto Grau, existe diferença entre jurisciência e jurisprudência, sendo que a primeira é descritiva e se opera no plano do verdadeiro/falso de acordo com uma lógica de

162 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2003. p. 37.

163 Para o autor interprete autêntico é o juiz, isto é, aquele que profere o ato decisório.

164 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo:

consequência, enquanto a segunda é prescritiva e se opera no plano do certo/errado de acordo com uma lógica de preferência. Esta preferência, no entanto, não é absoluta ou despadronizada, pois a prudência é implementada de acordo com determinadas regras.

Ditas regras, que permitem ao autor afirmar que a prudência é cientificamente estruturada165 , nos parecem ser, na verdade, técnicas

oferecidas pela ciência ao interprete/aplicador166 do direito.

Não obstante a posição adotada por Eros Roberto Grau, é preciso atentar à obra de um autor bastante mencionado por ele, que é Friedrich Müller. Em que pese o primeiro não ter adotado integramente a teoria do segundo, vale a pena ressaltá-la, devido às suas particularidades. Sobre sua particularidade assim preceitua Vinícius de Mattos Magalhães:

Uma das maiores preocupações de Friedrich Müller, com a Teoria Estruturante do Direito (ou da norma jurídica) e com a metódica concretista, é, certamente, possibilitar uma união harmônica e o quanto mais racional possível entre o “direito” e a “realidade”, buscando superar o dogma positivista, de inspiração neokantista, da separação inconciliável entre ser e dever ser, reificando-se “prescrições legais e conceitos jurídicos em mera preexistência, que facilmente abandona o chão da positividade historicamente fixada e se converte em metafísica de má qualidade.” As primeiras páginas de seu Strukturierende Rechtslehre (Teoria Estruturante do Direito) são dedicadas a uma investigação, no plano da teoria das ciências, acerca dos pressupostos subjacentes às ciências

humanas e naturais.167

165 “Como a prudência é sempre implementada segundo certas regras, que asseguram um