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A proporcionalidade como técnica de aplicação do direito

3. A TÉCNICA DA PROPORCIONALIDADE

3.4. A técnica da proporcionalidade

3.4.1. A proporcionalidade como técnica de aplicação do direito

No item 2.4 do capítulo 2 tivemos a oportunidade de analisar quatro metodologias distintas utilizadas de forma coerente na estruturação científica do objeto direito positivo.

Na análise da obra de Hans Kelsen verificamos que o autor concebe sua teoria sobre o estudo da norma jurídica sob uma ótica eminentemente

262 Veja-se, por exemplo, que o positivismo jurídico de Hans Kelsen é incompatível com o

tridimensionalismo de Miguel Reale, assim como a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy é incompatível com a teoria estruturante do direito de Friedrich Müller.

formal, buscando evitar qualquer espécie de contaminação de ordem volitiva ou valorativa – daí porque o atributo de pureza de sua teoria. Partindo desta premissa o autor analisa as normas jurídicas tanto sob a perspectiva do conjunto formado por aquelas que vigoram em um determinado ordenamento (teoria estática), quanto com vistas ao processo de produção e aplicação do direito (teoria dinâmica).263

Note-se que o autor afasta da atividade do cientista, a interpretação do direito, na medida em que esta não fica adstrita ao juízo puro e simples de validade ou invalidade da norma jurídica, mas deve considerar também os seus aspectos materiais. Por este motivo ele relega a interpretação à política jurídica, silenciando, contudo, sobre o seu caráter técnico.264

Já quando analisamos a teoria de Tércio Sampaio Ferraz Jr. pudemos constatar que este autor atribui à ciência do direito dois planos de atuação, quais sejam o da zetética e o da dogmática. No primeiro a análise recai sobre as repercussões sociais decorrentes da aplicação das normas do direito positivo (função especulativa), enquanto no segundo se busca sistematizar o direito positivo, estruturando-o de forma metodologicamente coerente, a fim de oferecer ao técnico do direito os instrumentos necessários para a aplicação das normas jurídicas (função diretiva).265

A dogmática, por sua vez, possui três modelos de decisão, isto é, o analítico, o hermenêutico e o empírico. O primeiro encara a decidibilidade como uma relação hipotética entre conflito e decisão. O segundo vê a decidibilidade sob a ótica do seu sentido, analisando a relação entre a hipótese de conflito e a hipótese de decisão. O terceiro vislumbra a decidibilidade dentro do prisma da busca das condições de uma decisão hipotética para um conflito hipotético. Para o autor os três aspectos estão inter-relacionados.266

263 KELSEN. Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 70-80. 264 KELSEN. Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 393. 265 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São

Paulo: Atlas, 1994. p. 41.

266 FERRAZ JR. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São

Como se vê os modelos de decisão da dogmática operam com premissas hipotéticas, pois não almejam apresentar uma decisão concreta a um conflito real – se o fizessem não se trataria atividade científica, mas sim de técnica. Pelo contrário, por atuarem numa perspectiva abstrata buscam estabelecer instrumentos (técnicas) que serão oferecidos ao aplicador do direito para sua utilização quando diante de conflitos reais que exijam uma decisão concreta.

De outro lado, verificamos que Eros Roberto Grau, remontando aos conceitos gregos clássicos de ciência (epistéme) e saber prático (phrónesis), afirma que a distinção entre a ciência do direito e o seu objeto, isto é, o direito positivo, leva a conclusão de que não há apenas uma ciência do direito, mas sim um conjunto de ciências do direito – tais como filosofia do direito, história do direito, dogmática jurídica.267

No entanto o autor faz questão de ressaltar a diferença existente entre a dogmática jurídica – também chamada de jurisprudência teórica – e a jurisprudência prática, sendo que esta última se confunde com o próprio direito. Para ele a jurisprudência teórica (dogmática) tem por objeto o estudo dos problemas jurídicos que serão solucionados pela aplicação das normas deste direito e, portanto, está voltada para a indicação de critérios para a solução de litígios, sendo, por esta razão, uma ciência (epistéme).268 Já a jurisprudência

prática opera no momento de interpretação/aplicação da norma jurídica, escolhendo dentre as possibilidades de decisão, aquela que melhor resolve o conflito instaurado e, desta forma, é considerada uma prudência (phrónesis).269

Diante disso percebe-se que a dogmática jurídica (epistéme) estabelece e oferece à jurisprudência prática (phrónesis) critérios concebidos em abstrato visando viabilizar a solução dos casos concretos. Este instrumental

267 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2003. p. 37.

268 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo:

Malheiros, 2003. p. 38.

269 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo:

oferecido pela dogmática jurídica à jurisprudência prática, por sua vez, possui natureza técnica (téchne).

O último autor apresentado no item 2.4 do capítulo 2 foi Friedrich Müller, cuja teoria estruturante do direito se pauta na análise estrutural da norma jurídica, mas rompendo com a cisão tradicional entre dever ser e ser, traz para o plano da norma jurídica o direito e a realidade.270

Para atingir essa finalidade o autor trabalha com a separação entre texto normativo e norma jurídica. Segundo pontua, o texto normativo quando interpretado não apresenta uma única possibilidade de resultado, mas diversas, e a cada uma delas é chamada de ideia normativa. O conjunto de idéias normativas recebe o nome de programa normativo.271 De outro lado o

autor concebe também o âmbito normativo, que é o conjunto de aspectos materiais inerentes ao caso concreto.272 Por seu turno, a norma jurídica será o produto da interpretação do programa normativo juntamente com o âmbito normativo. Todo este processo de interpretação, também chamado de círculo hermenêutico,273 pressupõe a pré-compreensão do interprete,274 isto é, a

existência de um conjunto de atitudes, opiniões e valores próprios do sujeito que irá realizar a interpretação.

Mesmo com sua estruturação metodológica voltada da norma para a realidade e vice versa, o autor ainda agrega o método tópico à interpretação operada pelo intérprete durante o círculo hermenêutico. Segundo afirma os topoi servem de base ao espaço normativo, influenciando a interpretação tanto do programa normativo como do âmbito normativo.275

270 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008. p. 207.

271 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008. p. 214.

272 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008. p. 249.

273 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008. p. 261-262.

274 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008. p. 267.

275 MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

Não obstante o fato de termos apresentado até aqui quatro teorias completamente diferentes umas das outras, é possível perceber que o ponto comum em todas elas é que a dogmática jurídica tem como objeto o direito positivo, e o analisa em abstrato com o intuído de sistematizá-lo de forma coerente (ciência jurídica) e, consequentemente, de oferecer ao aplicador o instrumental necessário para solução do caso concreto de forma ordenada (tecnologia jurídica). A metodologia adotada para a sistematização do direito positivo pode variar de um cientista para outro, mas em todos os casos a teoria escolhida deve necessariamente primar pela coerência.

Disso decorre que o cientista sistematiza o objeto de estudo de uma forma coerente e, com isto, apreende hipoteticamente os enunciados que serão utilizados na aplicação ordenada e racional do mesmo. Já ao técnico de nada importa a estruturação científica ou a metodologia adotada, pois lhe interessam apenas os enunciados resultantes da análise científica, os quais serão por ele concretamente utilizados.

O ponto central é que, se trouxermos essa conclusão para a análise da proporcionalidade, enxergaremos facilmente porque é tão difícil atribuir-lhe, metodologicamente, o status de norma jurídica.

Pois bem, aquele que adota uma teoria do direito que estabelece que no plano do direito positivo as normas jurídicas se subdividem em regras e princípios, além de estar sujeito ao conceito de regra e de princípio por ela definido – e não outro, ainda que de teoria que se valha da mesma classificação –, estará sujeito, também, à possibilidade de ocorrência de colisão entre princípios. Nesta hipótese, para que possa solucionar a colisão, deverá utilizar a técnica de solução oferecida por aquela teoria. É justamente aqui que entra a proporcionalidade.

De acordo com a análise das obras dos autores apresentados no capítulo 1, pudemos verificar que todos eles adotam teorias do direito que concebem as normas jurídicas como regras e princípios. Por este motivo todos

eles apresentam como critério para a solução da colisão entre princípios justamente a proporcionalidade. Isto significa dizer que a técnica oferecida pelas teorias daqueles autores – que neste ponto se aproximam –, para os casos de colisão entre princípios é exatamente a proporcionalidade, conforme estruturada analiticamente sobre três pilares: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A proporcionalidade é, pois, mais uma técnica oferecida ao aplicador do direito que se utiliza de uma daquelas teorias apresentadas.

Sobre o papel da técnica na atividade jurídica e o problema da coerência metodológica assim se manifesta Tércio Sampaio Ferraz Jr.:

Sendo vista como uma atividade interpretativa-normativa, o jurista se obriga ao uso de variadas técnicas. Fala-se em interpretação gramatical, lógica, sistemática, teleológica,

sociológica, histórico-evolutiva etc. A multiplicidade

terminológica das diferentes técnicas provoca muitas dificuldades, mesmo porque os seus termos ora coincidem, ora se entrecruzam. Mesmo aqueles que procuram expor ordenadamente essas diferenças técnicas reconhecem a ausência entre elas, de uma relação hierarquicamente unitária. Mais grave que essa pluralidade das técnicas é, porém, o problema da unidade do método que ela implica.

Uma ciência se vale de diferentes técnicas. Mas não são as técnicas que decidem sobre o caráter científico da

investigação, e sim o método.276

É pelo motivo exposto por Tércio Sampaio Ferraz Jr. que fazemos questão de ressaltar o papel da proporcionalidade enquanto técnica de aplicação do direito nos casos de colisão de princípios, mas desde que no âmbito das teorias que classificam as normas do direito positivo como regras e princípios. Afinal, uma teoria que concebe princípios e normas jurídicas como coisas distintas – conforme visto no item 3.1.2 –, não admite a possibilidade de colisão de princípios no plano normativo e, portanto, prescinde da técnica da proporcionalidade.

276 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,

Em vista do exposto, não resta dúvida de que a proporcionalidade possui a natureza de uma técnica de aplicação do direito direcionada aos casos de colisão entre princípios, desde que no âmbito de uma teoria do direito que classifique as normas jurídicas em regras e princípios. Desta forma, ela não se situa no âmbito da ciência jurídica, mas da tecnologia jurídica.

3.4.2. A proporcionalidade como técnica de argumentação