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3. A TÉCNICA DA PROPORCIONALIDADE

3.3. O problema da proporcionalidade como “norma diversa”

3.3.2. A proporcionalidade como híbrido

No item 1.11 do capítulo 1 tivemos a oportunidade de analisar a teoria de Marcelo Neves. Naquela ocasião verificamos que o autor parte da teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas, a qual trabalha com os conceitos de plano da ação, sendo aquelas afirmações ocorridas no âmbito da prática cotidiana, e de plano do discurso, que surge quando as pretensões sustentadas pelas ações são problematizadas nas interações concretas, passando, então, a exigir justificação.

Com base nesse modelo habermasiano o autor afirma que a distinção entre regras e princípios só pode ocorrer no plano discursivo, pois o comando normativo, que era aceito no plano da ação, passa a ser suscetível de questionamento no plano da argumentação.

Entretanto, o autor insere os preceitos da teoria do agir comunicativo dentro da concepção de sistema, de onde abstrai a existência de duas ordens de observação: as de primeira e as de segunda ordem. As observações de primeira ordem são aquelas referentes à aplicação rotineira do direito pela burocracia estatal, onde não há questionamento de sentido ou de validade, por exemplo. Já as observações de segunda ordem alcançam outro plano, pois discutem as normas a serem aplicadas, seja no tocante ao seu sentido, à sua validade, às condições de cumprimento etc. É justamente no plano do discurso jurídico, dentro das observações de segunda ordem, que ganha relevância a distinção entre regras e princípios.

Com base nessa relação discursiva de segunda ordem Marcelo Neves afirma que “os princípios e as regras são normas jurídicas reconstruídas à luz da observação de segunda ordem dos processos de argumentação jurídica”.247 E complementa esta afirmação mais a frente, pontuando que “a

247 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

argumentação jurídica ocorre na intersecção entre a justificação e a aplicação das normas”.248

Todavia, sob a influência de Max Weber o autor enquadra estas espécies normativas como conceitos típico-ideais, não nos termos da teoria weberiana, mas enquanto “estruturas cognitiva de seleção das ciências sociais em relação à realidade-ambiente que, diante delas, apresenta-se mais complexa e desestruturada”,249 fugindo, assim, da dicotomia que resultaria da

simples aplicação da teoria sistêmica. Isto porque, dentro do âmbito normativo,250 os tipos ideais se prestam à ordenação seletiva das disposições e

enunciados normativos, justamente o papel desempenhado pelos princípios e pelas regras no plano da argumentação jurídica.

A partir daí o autor classifica os princípios como sendo normas no plano reflexivo, as quais possibilitam o balizamento e a construção ou a reconstrução de regras. Já as regras são classificadas como razões imediatas para normas de decisão, funcionando como condição de aplicação do princípio ao caso concreto. É o processo argumentativo que definirá, sob o ponto de vista funcional-estrutural, se uma norma se encaixa no padrão de princípios ou de regra.

No entanto, o autor ressalva que, por se tratarem de conceitos típico-ideais, que são categorias gnosiológicas, poderá ocorrer contaminação recíproca entre eles. Por isto, ele reconhece a possibilidade da existência de híbridos, que nada mais são do que normas jurídicas que se encontram em situação intermediária entre princípios e regras. Para ele a proporcionalidade é justamente uma norma desta espécie.

Após apresentar a teoria proposta por Marcelo Neves passamos às nossas considerações.

248 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

WMF Martins Fontes, 2013. p. 100.

249 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

WMF Martins Fontes, 2013. p. 102.

250 O autor utiliza a expressão âmbito normativo em sentido diverso daquele adotado por

Segundo Max Weber a construção de uma teoria científica apta a promover o conhecimento no âmbito das ciências sociais precisa adotar, em sua metodologia, conceitos típico-ideais. Conforme preceitua, os elementos conceituais destas ciências não são apreensíveis senão através da utilização desta espécie de conceito. “Portanto, a construção de tipos ideais abstratos não interessa como fim, mas única e exclusivamente como meio de conhecimento”.251 Nesta perspectiva, o tipo ideal é uma tentativa de apreender

os indivíduos históricos e/ou os seus processos de conhecimento em conceitos genéticos.252 Tanto é assim que alguns dos conceitos típico-ideais trazidos pelo

autor como exemplo são os seguintes: valor253, individualismo, feudalismo, mercantilismo e convencional.254

Note-se que referidos conceitos não são encontrados de forma pura na realidade social e que, portanto, não servem como um esquema no qual se possa incluir a realidade de maneira exemplar – como ocorre com os conceitos das ciências naturais. Pelo contrário, os conceitos típico-ideais são antes conceitos limites, desenvolvidos no plano da razão, que permitem esclarecer o conteúdo empírico de alguns elementos da realidade:

Tem, antes, o significado de um conceito limite puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos importantes, e com o qual esta é comprada. Tais conceitos são configurações nas quais construímos relações, por meio da utilização da categoria de possibilidade objetiva, que a nossa imaginação, formada e orientada segundo a realidade, julga

adequadas.255

Com vistas ao exposto é possível compreender que a criação dos conceitos típico-ideais proposta por Max Weber parte de uma premissa

251 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez,

2001. p. 139.

252 A expressão “conceitos genéticos” é utilizada pelo próprio autor (WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001. p. 140).

253 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez,

2001. p. 141.

254 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez,

2001. p. 139.

255 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez,

filosófica racionalista, e tem por finalidade estabelecer uma metodologia racional para produção do conhecimento científico no âmbito das ciências sociais, uma vez que o modelo das ciências naturais lhe é incompatível.

Todavia, a incorporação de conceitos típico-ideais à ciência jurídica nos parece possível, mas desde que incluída em uma metodologia estruturada sobre parâmetros filosóficos racionalistas. Referida inclusão seria bem aceita especialmente quando a teoria em questão buscasse conceituar termos como soberania, cidadania, dignidade humana e pluralismo político (artigo 1°, incisos I, II, III e V da Constituição da República). Por outro lado, categorias como princípios e regras não são compatíveis com a gênese dos conceitos típico- ideais, pois não possuem um substrato empírico de referencia, bem como não permitem conhecer o conteúdo empírico da realidade.

Não obstante a incompatibilidade do conceito de tipo ideal de Max Weber com o enquadramento jurídico dos princípios e das regras, durante a exposição de sua teoria, Marcelo Neves se propõe a conceber os tipos-ideais de uma forma um pouco diferente da proposta weberiana, isto é, para ele o tipo ideal é a estrutura de conhecimento típica das ciências sociais, a qual permite ordenar seletivamente a realidade-ambiente. Se de um lado Max Weber se vale dos tipos ideais como estruturas racionais aptas à produção do conhecimento, de outro Marcelo Neves os concebe como estruturas voltadas para a organização de um modelo racional de apreensão do conhecimento. Desta forma, enquanto para o primeiro o tipo ideal permite encontrar o significado de determinado objeto cultural, para o segundo o tipo ideal permite organizar o sistema de produção do conhecimento que irá analisar aquele objeto cultural. Daí porque este último afirma que no âmbito normativo os tipos ideais não se prestam a orientar expectativas cognitivas.256

O problema é que, do ponto de vista da estruturação científica do direito positivo sob a lógica de um sistema normativo – o que é admitido pelo autor –, os tipos-ideais seriam aplicáveis a conceitos como unidade, coerência,

256 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez,

poder constituinte, eficácia, nulidade, norma jurídica etc. Contudo, as espécies em que são decompostas cada categoria científica são meras classificações, e não outras categorias autônomas (tipos ideais) nem subcategorias (subtipos ideais). Tanto é assim que dentro da categoria científica (tipo ideal) nulidade é possível encontrar diversas classificações, tais como nulidade absoluta e relativa, inconstitucionalidade formal e material; na categoria científica (tipo ideal) eficácia, as classificações de absoluta, plena, contida e limitada; na categoria científica (tipo ideal) poder constituinte, as classificações histórico e revolucionário.257

O mesmo ocorre no que toca ao tipo ideal norma jurídica. Isto porque, conforme vimos, o conceito de norma jurídica pode receber a classificação regra, princípio, postulado ou híbrido, e pode até mesmo não ser decomposto em nenhuma classificação. Afinal, as classificações têm como intuito facilitar o trabalho do cientista e/ou do técnico através da diferenciação dos elementos integrantes de uma mesma categoria. Elas podem ser de vários tipos, desde que mantenham coerência com as premissas metodológicas adotadas. Portanto, as classificações, quando metodologicamente coerentes, podem ser mais úteis, menos úteis ou inúteis, mas não certas ou erradas.

Em face disso é possível concluir que, mesmo dentro do conceito de tipo ideal proposto pelo autor, princípios, regras e híbridos são simplesmente classificações atribuídas à norma jurídica, esta sim, um tipo ideal. Como tais, elas podem receber outra nomenclatura e assumir outra estruturação. Nestes termos, a categoria científica (tipo ideal) norma jurídica pode ser encarada como um imperativo-autorizante,258 sendo que, por sua vez, pode vir a ser

decomposta de acordo com os elementos por ela apresentados. Assim sendo,

257 Entendemos que o chamado poder constituinte derivado, por não possuir a mesma

natureza, não deve ser considerado como uma classificação da categoria científica poder constituinte. Ademais, cremos também que o poder constituinte enquanto no plano científico do direito pode ser caracterizado como tipo ideal nos moldes propostos por Marcelo Neves, enquanto estruturação do poder jurídico. Contudo, sua análise no plano da ciência política deve ser feita sob a forma de tipo ideal proposta por Max Weber, pois aqui se buscará seu conteúdo, na medida em que este é analisado puramente como manifestação de um poder, sendo inútil, pois, a utilização do conceito de tipo ideal proposto por Marcelo Neves.

258 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria

geral do direito, à filosofia, à sociologia jurídica e à lógica jurídica. Norma jurídica e aplicação do direito. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 387.

não nos parece ser útil uma classificação que não particularize os elementos de uma categoria científica, mas que, pelo contrário, os confunda, como ocorre na classificação das espécies de norma jurídica como princípios, regras e híbridos.

Ademais, no que toca à aplicabilidade do conceito de tipo ideal proposto por Marcelo Neves como estrutura cognitiva de organização das ciências sociais, a análise do tipo ideal poder constituinte é bastante elucidativa. Isto porque, no âmbito da ciência jurídica, este tipo ideal é analisado sob o enfoque da estruturação do poder jurídico e, portanto, estabiliza expectativas normativas. Todavia, no âmbito das ciências sociais, o tipo ideal poder constituinte almeja orientar a expectativa cognitiva do cientista, de forma a encontrar o conteúdo daquela determinada manifestação de poder a partir da realidade. Ao contrário do que ocorre no âmbito do direito, não há organização do sistema científico das ciências sociais a partir deste tipo ideal. Isto posto, o conceito de tipo ideal proposto pelo autor se encontra limitado à ciência do direito, enquanto ciência normativa, não sendo aplicável às ciências sociais como um todo. Para estas últimas é mais indicado o conceito de tipo ideal proposto por Max Weber.

Diante dessas observações, não nos parece justificável a utilização da classificação das normas jurídicas como princípios, regras e híbridos, tendo em vista a confusão trazida por ela, já que ao invés de auxiliar o cientista e/ou o técnico do direito, os confunde ainda mais.

Por fim, quando o autor atribui à proporcionalidade o status de norma jurídica da espécie híbrido, ele analisa seus três subitens. Após sua análise afirma que a adequação e a necessidade seriam regras, haja vista que se enquadram na classificação atribuída a esta espécie tanto estruturalmente quanto funcionalmente.259 De outro lado, a proporcionalidade em sentido estrito

seria um híbrido, uma vez que estruturalmente teria a forma de uma regra, mas

259 NEVES, Marcelo. Entre hydra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

que funcionalmente operaria como um princípio.260 Contudo, tendo em vista a

clareza com que o autor classifica tanto a adequação quanto a necessidade como regras, não nos parece científico que, ao final, lhes seja atribuído o status de híbridos porque consideradas “dentro do pacote”, assim como o mesmo não seria admissível com a proporcionalidade em sentido estrito, isto é, atribuir-lhe o status de regra quando em conjunto com as demais.

Segundo nos parece, restariam duas opções: ou a proporcionalidade por si mesma é deixada de lado, considerando-se isoladamente cada um dos critérios que determinam as análises da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito como normas jurídicas; ou então se reconhece que a proporcionalidade, enquanto estruturada sobre estes três critérios, não é uma norma jurídica, assim como também não são os seus três subitens. Tendo em vista que o critério de classificação utilizado carece de utilidade ficamos com a segunda opção.

Mas a segunda opção é a única viável também por outro motivo. Para que sejam considerados isoladamente como normas jurídicas, tanto a proporcionalidade quanto os seus três subitens carecem de uma fonte do direito que lhes atribua este status. Do contrário, a proporcionalidade, juntamente como seus três subitens, nasce como enunciado científico e, como tal, não ingressa no plano do direito positivo.

Vale ressaltar, assim, que o instituto do reentry,segundo o qual “o que é condição de possibilidade da ordem passa a ser norma da própria ordem”,261 e que foi proposto pelo autor como solução para a inclusão da

proporcionalidade e de seus subitens no direito positivo, não pode ser concebido como uma operação natural do sistema que ocorre no plano puramente lógico. Isto porque o reentry na verdade nada mais é do que a inclusão no direito positivo de determinado enunciado científico por intermédio de uma determinada fonte do direito, o qual, para que se opere, precisa

260 NEVES, Marcelo. Entre hydra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

WMF Martins Fontes, 2013. p. 111.

261 NEVES, Marcelo. Entre hydra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

satisfazer os requisitos da fonte do direito correspondente. Afinal, do contrário, todo e qualquer enunciado científico seria automaticamente incluído no plano do direito positivo através do reentry, ainda que oriundos de teorias científicas metodologicamente incompatíveis,262 o que, por sua vez, inviabilizaria a

atuação do cientista e/ou do técnico do direito dentro dos parâmetros de coerência exigidos pela teoria sistêmica. Diante disto não é possível conceber a proporcionalidade nem seus subitens como normas jurídicas.