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A proporcionalidade como técnica de argumentação racional

3. A TÉCNICA DA PROPORCIONALIDADE

3.4. A técnica da proporcionalidade

3.4.2. A proporcionalidade como técnica de argumentação racional

Diante das conclusões apresentadas no item anterior cremos não haver mais dúvida de que a proporcionalidade possui a natureza de uma técnica de aplicação do direito. Isto porque a aplicação do direito se manifesta no plano do discurso jurídico, como afirmam Marcelo Neves277 e Tércio

Sampaio Ferraz Jr.278

Daí porque a necessidade do aparato tecnológico oferecido pela ciência jurídica ao aplicador do direito, cujo intuito é permitir que seja proferida uma decisão racional. Afinal, no momento da decidibilidade o aplicador não faz ciência jurídica em abstrato, mas deve proferir uma decisão solucionando o caso concreto, a qual deverá levar em consideração os valores envolvidos nas normas aplicáveis bem como as circunstâncias de fato daquela relação jurídica conflituosa. Neste sentido, pois, são as palavras de Tércio Sampaio Ferraz Jr., que pontua: “sob o ponto de vista do discurso, a positivação expressa, assim, de um lado, o domínio dos valores e finalidades valorados ideologicamente, onde se permite apenas a discussão técnico-instrumental”.279

A questão é que os diversos elementos considerados pelo aplicador na hora de solucionar o caso concreto não devem ser aleatoriamente pinçados e inseridos na decisão daquele conflito. Isto porque, ao contrário do que ocorre na esfera científica do direito (dogmática jurídica), não será possível abstrair

277 NEVES, Marcelo. Entre hidra e hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

WMF Martins Fontes, 2013. p. 96.

278 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,

1997. p. 57 ss.

279 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,

metodologicamente um resultado específico puramente objetivo que solucionará do caso concreto. Afinal, diversos elementos subjetivos estão diretamente envolvidos na aplicação do direito. É justamente para solucionar este impasse que o papel da técnica jurídica consiste no oferecimento de critérios racionais de solução de conflito para o aplicador do direito, os quais serão utilizados para que se possa proferir uma decisão socialmente aceitável e inspirada pela justiça.

Nesses termos, podemos concluir que a racionalidade oferecida pela técnica jurídica contrapõe-se a arbitrariedade, servindo como parâmetro de segurança para as relações reguladas pelo direito. Sobre a relação entre a racionalidade do direito e a arbitrariedade são pontuais as palavras de Eros Roberto Grau:

O direito moderno, posto pelo Estado, é racional porque cada decisão jurídica é a aplicação de uma proposição abstrata munida de generalidade a uma situação de fato concreta, em coerência com determinadas regras legais. Eis o que define a racionalidade do direito: as decisões deixam de ser arbitrárias e

aleatórias, tornam-se previsíveis.280

Note-se que a racionalidade enquanto imperativo de segurança jurídica é admitida como parâmetro de aplicação dos princípios de justiça e da busca do bem na teoria da justiça de John Rawls. Para tanto o autor adota o conceito de racionalidade deliberativa, sendo concebida como o processo pelo qual uma pessoa escolheria um determinado plano de ação, após uma criteriosa ponderação, dentre todos aqueles compatíveis com os princípios de justiça.281 O próprio autor assim resume a questão:

Em resumo, nosso bem é definido pelo plano de vida que adotaríamos com plena racionalidade deliberativa se o futuro fosse previsto com precisão e adequadamente percebido pela imaginação. As questões que acabamos de discutir estão ligadas a ser racional nesse sentido. Aqui vale salientar que um plano racional é aquele que seria escolhido se fossem satisfeitas certas condições. O critério do bem é hipotético de

280 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5ª

ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 288.

maneira semelhante ao critério de justiça Quando surge a questão de saber se fazer algo está de acordo com o nosso bem, a resposta depende de como isso se encaixa no projeto

que seria escolhido com racionalidade deliberativa.282

A ideia de racionalidade tão fortemente arraigada como imperativo de segurança jurídica, que impacta tanto teorias do direito quanto teorias da justiça, encontra seu expoente na economia política e na filosofia das ciências sociais de Max Weber. Segundo este autor o conhecimento interpretativo somente é obtido através da interpretação racional, a qual é elaborada a partir das categorias meio e fim. Disto resultaria a objetivação da ação humana enquanto considerada nesta relação causal:

Em todos os casos em que ‘compreendemos’ uma ação humana sendo condicionada por ‘fins’ que foram conscientemente objetivados, concomitantemente a um conhecimento claro dos ‘meios’, a ‘compreensão’ atinge um grau especificamente elevado de ‘evidência’. Indagado acerca das razões deste fato, percebemos que estas consistem na circunstância que a relação entre ‘meios’ e ‘fim’ é acessível a uma evidência racional bem semelhante a uma relação causal, que inclui a generalização e as ‘leis’. Não há ação racional sem uma racionalização causal daquela parte da realidade que foi considerada como objeto e meio de influência. Isto quer dizer que esta parte da realidade deve ser enquadrada num sistema de regras empíricas, que nos indicam que grau de êxito se

pode esperar em decorrência do nosso comportamento.283

De acordo com o autor essa relação causal entre meio e fim confere racionalidade e objetividade ao conhecimento obtido através da interpretação. Isto porque permite que condutas humanas realizadas em pleno exercício do livre arbítrio, assim como valores socialmente experimentados, sejam objeto de ponderação racional, possibilitando a obtenção de um conhecimento cientificamente estruturado, convertendo-se, pois, em ação teleológica racional.284

282 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 521.

283 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez,

2001. p. 94.

284 WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4ª ed. São Paulo: Cortez,

Há que se ressaltar que Jürgen Habermas critica a proposta de Max Weber, pois o primeiro afirma que na construção weberiana “as hipóteses fundamentais ligam-se a um agir idealizado sob máximas puras; não se pode derivar delas nenhuma hipótese legal empiricamente dotada de conteúdo”.285

Ou seja, por possuir a pretensão de ser um conhecimento empírico-analítico esta teoria acaba confundindo os pressupostos lógicos e as condições empíricas, uma vez que a premissa racionalista fundada em máximas puras da qual parte é incompatível com a derivação de hipóteses empiricamente dotadas de conteúdo.

Entretanto, a leitura da obra de Max Weber nos faz perceber o quanto a concepção de proporcionalidade de Robert Alexy foi por ele fortemente influenciada. Afinal, este último concebe a proporcionalidade como uma norma jurídica que busca através da ponderação racional encontrar a solução da colisão de princípios, tomando como premissa a relação existente entre o meio empregado e o fim perseguido. Ele acredita, assim, realizar uma analise cientifica dos elementos subjetivos envolvidos, mas com resultados objetivos.286

O problema é que, conforme anteriormente demonstrado, a proporcionalidade não pode ser metodologicamente estruturada como norma jurídica sem o auxílio das fontes do direito. Além do que sua atuação não produz conhecimento jurídico, mas sim pacificação social através do auxilio na criação de uma norma jurídica de decisão, pois atua no plano técnico da argumentação, buscando estruturar a decidibilidade do caso concreto, e não no plano científico.

285 HABERMAS, Jürgen. A lógica das ciências sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p. 79. 286 Nesse sentido vide as palavras de Robert Alexy: “Princípios são mandamentos de

otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, exigência de sopesamento, decorre da relativização em face das possibilidades jurídicas. (...) Isso significa, por sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é deduzível do caráter principiológico das normas de direitos fundamentais”. (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 117-118). E prossegue: “Já as máximas da necessidade e da adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 118). Note-se que o autor tenta atribuir racionalidade científica – isto é, obter a objetividade dos resultados através de fórmulas lógicas – à análise de elementos subjetivos, quais sejam, possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto.

Sobre a pretensão de objetividade é preciso ressaltar que haverá sempre a necessidade de interpretação e que, como aponta Friedrich Müller, os elementos subjetivos inerentes ao próprio intérprete não podem ser afastados deste processo (pré-compreensão).287 Neste sentido Virgílio Afonso da Silva reconhece a existência de uma margem de liberdade ao interprete quando se utiliza da proporcionalidade:

O que se pode exigir, portanto, de tentativas de elevação da racionalidade de um procedimento de interpretação e aplicação do direito, como o sopesamento, é a fixação de alguns parâmetros intersubjetivos, ou seja, de parâmetros que

permitam algum controle da argumentação.288

Tanto é assim que, quando da aplicação da proporcionalidade ao caso da ADI 855-2289 o autor chegou a um resultado diferente daquele atingido pelo Supremo Tribunal Federal também com base na proporcionalidade. Para a Corte a lei é inconstitucional, pois falhou no exame da necessidade. Já Virgílio Afonso da Silva entende se tratar de lei constitucional, pois aprovada nas três etapas da proporcionalidade.290

Todavia, é preciso ter em mente que as críticas realizadas ao modelo concebido por Max Weber, bem como à tentativa de enquadramento da proporcionalidade no âmbito puramente científico de Robert Alexy, não têm o condão de afastar a racionalidade da atividade científica, muito menos do âmbito da ciência do direito e/ou da técnica jurídica.291

287 MÚLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2008. p. 267.

288 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia.

São Paulo: Malheiros, 2009. p. 148.

289 No caso em apreço o Governo do Estado do Paraná criou a Lei Estadual n° 10.248/93, a

qual determinava que os botijões de gás fossem pesados na frente do consumidor, afim de verificar se o valor cobrado era condizente com o peso do botijão vendido. Desta forma eventuais variações no peso do botijão acarretariam uma cobrança mais justa, podendo alterar o preço para mais ou para menos, de acordo com o peso constatado no botijão.

290 SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798 (2002):

23-50. pp. 37-41.

291Nesse sentido Carlos Bernal Pulido defende a racionalidade da ponderação afirmando que

racionalidade possui dois níveis, quais sejam, o teórico e o prático. O primeiro estabelece as condições que uma teoria ou um conceito deve cumprir para que seja considerado racional, enquanto o segundo determina as condições que um ato humano deve reunir para que seja considerado racional (PULIDO, Carlos Bernal. La racionalidad de la ponderacion. In.

A questão central aqui é que, conforme pontua Amartya Sen, a racionalidade não se limita a simples análise da adequação entre meio e fim, na medida em que este tipo de análise pode levar a resultados utilitaristas e/ou egoísticos. Pelo contrário, a escolha racional pressupõe uma análise muito mais ampla e dialógica, como sugere o próprio autor:

O método da escolha racional, nessa visão, está fundamentalmente ligado a conformar nossas escolhas à investigação crítica das razões para fazê-las. As exigências essenciais da escolha racional referem-se a submetermos nossas escolhas – de ações, bem como de objetivos, valores e

prioridades – à análise arrazoada.292

Isso posto, a análise da racionalidade é composta por muito mais elementos do que a mera relação de causalidade entre meio e fim.293 Ela contempla a investigação crítica de todos os fatores envolvidos naquela escolha, assim como, consequentemente, a exposição criteriosa dos seus motivos. Por conta disto o autor afirma que a escolha racional é ao mesmo tempo exigente e permissiva. É exigente porque nenhuma fórmula simples é automaticamente vista como racional, sem que antes seja submetida a uma análise penetrante, que inclua tanto o exame dos objetivos almejados quanto as restrições de comportamento que podemos ter razão para seguir.294 É permissiva, pois não descarta a possibilidade de que mais de uma opção possa ser escolhida como razão de decisão, desde que sobreviva à análise crítica. Diante disto o autor conclui o seguinte:

A possibilidade da pluralidade de razões suscetíveis não é apenas importante para fazer justiça à racionalidade; também distancia a idéia de escolha racional de seu papel putativo de simples instrumento de previsão da escolha real, como ela tem

CARBONEL, Miguel. El princípio de proporcionalidad en el Estado constitucional. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2007. pp. 59-60). Após estabelecer esta premissa o autor apresenta um modelo de ponderação estruturado sobre uma fórmula de peso, e ao final conclui que a ponderação é uma atividade racional (PULIDO, Carlos Bernal. La racionalidad de la

ponderacion. In. CARBONEL, Miguel. El princípio de proporcionalidad en el Estado

constitucional. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2007. pp. 80).

292 SEN, Amartya. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 213.

293 Note-se que não se nega a análise da adequação entre meio e fim como um dos elementos

da análise racional. Apenas ressalta-se que a racionalidade não se resume a isto.

sido amplamente utilizada na economia dominante. Mesmo que cada escolha real resulte ser sempre racional, no sentido de ser sustentável passando pela crítica, a pluralidade da escolha racional torna difícil obter uma previsão única da escolha real

de uma pessoa a partir da idéia de racionalidade apenas.295

Com vistas ao exposto, podemos concluir que a argumentação jurídica, enquanto destinada à decidibilidade, tem como requisito intrínseco a racionalidade, a qual exige do aplicador uma análise crítica dialógica de todos os fatores envolvidos na escolha, assim como, consequentemente, a exposição criteriosa dos seus motivos. É por esta razão que se pode afirmar que a racionalidade acarreta segurança e aceitação social à decisão, na medida em que afasta a arbitrariedade.

Para facilitar a argumentação empregada na análise e motivação da decisão do caso concreto, o aplicador encontra inúmeras técnicas disponíveis, as quais decorrem da estruturação metodológica do direito positivo realizada pela ciência do direito, e que o auxiliam a deduzir racionalmente uma solução para o conflito jurídico através do oferecimento de parâmetros racionalizados296

para a estruturação da decisão297. Contudo, assim como a racionalidade não apresenta um único resultado objetivo, também não existe uma única técnica aplicável em detrimento das demais quando diante de determinada hipótese concreta.

Diante disso, podemos abstrair duas conclusões: a primeira reside no fato de que a racionalidade é uma condição estrutural da argumentação jurídica; a segunda consiste na constatação de que toda a técnica de aplicação do direito funciona também como instrumento de motivação de decisões e, portanto, é simultaneamente técnica de argumentação racional.

Dessa forma, a proporcionalidade enquanto técnica de aplicação do direito é também uma técnica de argumentação racional, pois atua também na

295 SEN, Amartya. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 216-217. 296 Parâmetros racionalizados porque decorrentes da atividade racional realizada pelo cientista

do direito. Poderíamos normalmente utilizar a expressão racionais, pois eles de fato são, mas preferimos ressaltar o primeiro aspecto por entendermos ser neste momento mais pertinente.

297 Por estruturação da decisão entenda-se o enfrentamento do problema e a fundamentação

motivação das decisões, através do oferecimento de parâmetros racionalizados para a estruturação da decisão. No entanto, em que pese tenha sido concebida especificamente para solucionar as hipóteses de colisão entre princípios no caso concreto, por se tratar de uma técnica, a proporcionalidade não é dotada de força cogente e, portanto, sua utilização pelo aplicador do direito não é obrigatória.