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1. A PROPORCIONALIDADE NA DOUTRINA

1.8. Virgílio Afonso da Silva

De acordo com Virgílio Afonso da Silva, para que os direitos fundamentais possam ser teoricamente sistematizados, deve-se adotar como premissa a distinção necessária entre regras e princípios como sendo as espécies existentes de normas encontradas no ordenamento jurídico.

Para o autor, o principal traço distintivo entre elas é justamente a estrutura dos direitos garantidos por estas normas. Conforme aponta, as regras garantem direitos definitivos, enquanto os princípios garantem direitos prima facie e, portanto, há uma grande diferença entre aquilo que eles garantem ou impõe prima facie e o que será garantido ou imposto definitivamente:

O principal traço distintivo entre regras e princípios, segundo a teoria dos princípios, é a estrutura dos direitos que essas normas garantem. No caso das regras, garantem-se direitos (ou se impõe deveres) definitivos, ao passo que no caso dos princípios são garantidos direitos (ou são impostos deveres) prima facie.57

Note-se que a semelhança existente entre a posição de Virgílio Afonso da Silva e de Robert Alexy não é mera coincidência. Isto se deve ao

56 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 118. 57 SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:

fato do primeiro adotar a teoria do segundo.58 Portanto, também para Virgílio

Afonso da Silva as regras se aplicam por subsunção, sendo que em caso de incompatibilidade entre regras ou uma exclui a outra (incompatibilidade total), ou é instituída uma regra de exceção (incompatibilidade parcial).59

Um ponto interessante é o fato de o autor tratar da colisão entre regras e princípios, hipótese pouco aventada e bastante polêmica, que deixou de ser devidamente explorada por Robert Alexy em sua obra60. Numa análise

inicial, a primeira possibilidade de solução seria a confrontação entre a regra e o princípio dentro do plano da validade, sendo que, ao final, um deles seria excluído do ordenamento jurídico61. A segunda possibilidade, ainda dentro de uma análise inicial, seria a ponderação da regra e do princípio em colisão, possibilidade esta que derrubaria o critério de distinção segundo o qual as regras são normas que garantem ou impõem deveres definitivos.

A solução sugerida por Robert Alexy aponta no sentido de que deveria ser feita uma ponderação não entre a regra (R) e o princípio (P) que estão em colisão, mas sim entre o princípio no qual se fundamenta a regra (PR) e o princípio (P) colidente. Contudo, Virgílio Afonso da Silva refuta esta solução, pois entende que referida posição confere ao aplicador uma situação de extrema liberdade diante de qualquer caso e em qualquer situação, o que acarretaria um alto grau de insegurança jurídica.

Segundo o autor a colisão entre regra e princípio não seria uma colisão propriamente dita. Isto porque se estaria diante do produto oriundo da

58 Tanto é assim que Virgílio Afonso da Silva é o tradutor para o português da Teoria dos

Direitos Fundamentais de Robert Alexy.

59 O autor apresenta como exemplo a regra que proíbe a retroação da lei penal e a outra, de

mesma natureza, que determina a retroação em benefício do réu: “Assim, a regra que proíbe a retroação da lei penal tem uma conhecida exceção: a lei deve retroagir quando beneficiar o réu (art. 5°, XL, da CF). A norma (regra) deve, nesse caso, ser compreendida como ‘é proibida a retroação de leis penais, a não ser que sejam mais benéficas para o réu que a lei anterior; nesses casos, deve haver retroação’”. (SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 45)

60 O autor se limita a mencionar a hipótese em nota de rodapé, sugerindo como solução, sem

maiores fundamentações, a ponderação entre o princípio que fundamenta a regra e o princípio com ela colidente. (ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90)

ponderação entre dois princípios realizada pelo legislador, cujo produto é uma regra de direito ordinário. Desta forma, “a relação entre a regra e um dos princípios não é, portanto, uma relação de colisão, mas uma relação de restrição. A regra é a expressão dessa restrição”.62 Assim, a regra deve ser

aplicada por subsunção, conforme as demais normas da mesma espécie. A situação se complica diante de casos em que a colisão entre uma regra e um princípio exige a inclusão de uma determinada conduta para a proteção de um direito fundamental, mas a referida inclusão esbarra no preceito contrário de uma regra. E o autor exemplifica:

Um caso muito frequente nesse sentido é o levantamento dos valores da conta do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço/FGTS para pagar o tratamento de saúde de um dependente do titular da conta. A Lei 7.670/1988, em seu art. 1°, II autorizava esse levantamento para os casos em que o titular da conta era portador do HIV. A partir de determinado momento os juízes passaram a se deparar com pedidos de levantamento dos valores para o pagamento do tratamento de seus dependentes. A regra prevista na lei não poderia ser aplicada ao caso, já que não previa o benefício para a regra que restringia o uso do dinheiro do FGTS. Com base nessa ideia, muitos juízes passaram a permitir o levantamento dos valores, mesmo contra a regra legal.

Como se percebe, essa estratégia pode ser considerada como um sopesamento entre o princípio que sustenta a regra e o princípio com ela colidente, mas quando muito em uma primeira decisão, que, ao menos inicialmente, é uma decisão contra legem. Não é, contudo, um sopesamento que se repete a cada decisão. Isso porque, uma vez consolidado o entendimento em determinado sentido, cria-se uma regra que

institui exceção à regra proibitiva.63

Como se percebe, para Virgílio Afonso da Silva estamos diante de uma regra como qualquer outra da mesma natureza, aplicável como as demais mediante subsunção. A única diferença é que ela não decorre de um dispositivo legal, mas é produto de uma construção jurisprudencial decorrente do sopesamento (em uma primeira análise) entre dois princípios. Atente-se

62 SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:

Malheiros, 2009. p. 52.

63 SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:

que, para o autor, este sopesamento se restringe ao processo de surgimento da regra, mas não diz respeito a sua forma de aplicação.

Além da colisão entre regras e entre regras e princípios, o autor também aborda a colisão entre princípios, sendo que, neste caso, se aproxima bastante – ao menos até este ponto – da posição de Robert Alexy, admitindo, também, que os princípios são mandamentos de otimização, os quais exigem que algo seja realizado na maior medida possível, diante das condições fáticas e jurídicas. Por conta disto, as colisões devem ser solucionadas através de sopesamento.

Para essa finalidade, Virgílio Afonso da Silva também se vale da proporcionalidade. Contudo, segundo pontua, não se trata de um princípio, pois sua forma de aplicação não exige que algo seja aplicado na maior ou na menor medida. Pelo contrário, quando diante da colisão de princípios, deve-se necessariamente utilizar a proporcionalidade para solucionar a colisão. Esta forma de aplicação exprime um dever definitivo e, portanto, de acordo com a teoria apresentada assume a forma de regra.64

Dessa forma, para Virgílio Afonso da Silva não há que se falar em princípio da proporcionalidade, mas sim em regra da proporcionalidade, por conta de sua estrutura normativa e forma de aplicação. Esta regra da proporcionalidade é composta por três sub-regras, quais sejam adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

De acordo com o autor, a sub-regra da adequação é o primeiro passo na escala ascendente de aplicação da regra da proporcionalidade. Conforme o seu entendimento, a adequação consiste em uma primeira indagação: “a medida é adequada para fomentar a realização do objetivo

64 Não obstante sua estrutura seja a de uma regra – de acordo com a teoria por ele adotada –,

o autor ainda enfrenta a questão de utilizar a expressão “máxima da proporcionalidade”, conforme sua tradução do alemão da obra de Robert Alexy: “O problema dessa denominação reside no fato de que, na linguagem jurídica brasileira, ‘máxima’ não é um termo utilizado com freqüência e, mais que isso, pode às vezes dar a impressão de se tratar não de um dever, como é o caso da aplicação da proporcionalidade, mas de uma mera recomendação”. (SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 168)

perseguido?” 65 Neste ponto ele critica aqueles que entendem que na

adequação deve-se analisar se a medida é adequada para realizar por completo o objetivo perseguido, pois, segundo entende, isto é contraproducente, uma vez que dificilmente será possível saber, com certeza, antecipadamente, se uma medida realizará de fato aquilo a que se propõe.

Ultrapassada esta primeira etapa, isto é, o exame da adequação, passa-se à sub-regra da necessidade que, de acordo com o autor, consiste essencialmente em um exame comparativo. Isto porque na análise da necessidade busca-se verificar qual das medias possíveis – a medida adotada (M1) e a outra medida cabível (M2) – atinge o objetivo (O) restringindo menos o direito fundamental (D). Existem, pois, duas variáveis na análise da sub-regra da necessidade, quais sejam a eficiência da medida em atingir o objetivo (O) e o grau de restrição ao direito fundamental (D):

Nessa comparação, como se percebe, duas são as variáveis a serem consideradas: (1) a eficiência das medidas na realização do objetivo proposto; e (2) o grau de restrição ao direito fundamental atingido. É claro que, tratando-se de duas variáveis, é necessário que se decida qual é a mais importante. Em geral fala-se na necessidade como a busca do ‘meio menos gravoso’, o que pode dar a entender que se deva dar sempre preferência à medida que restrinja menos direitos. Mas isso somente é assim caso ambas as medidas sejam igualmente eficazes na realização do objetivo. Nesse caso – e somente nesse caso – deve-se dar preferência à medida menos gravosa.

Como se percebe, para o autor no teste da necessidade não se deve indagar se há medidas mais eficientes que a medida adotada (M1), mas somente se há medidas tão eficientes quanto ela, mas que restrinjam menos o direito afetado.

Vencidas as duas sub-regras anteriores, passa-se então à terceira etapa da regra da proporcionalidade, isto é, o exame da sub-regra da proporcionalidade em sentido estrito. Segundo o autor, esta fase consiste na realização de sopesamento entre os direitos em colisão (D1 e D2), e tem como

65 SILVA, Virgílio. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:

objetivo evitar que medidas, que embora sejam adequadas e necessárias, restrinjam um direito fundamental (D2) além do limite que a realização do objetivo (O) seja capaz de justificar.

Nessa etapa, como se percebe, a análise que deve ser feita não está diante de qualquer espécie de arcabouço fático – estes embasavam as análises das sub-regras anteriores –, mas apenas de elementos jurídicos, e se opera através do sopesamento dos direitos envolvidos (D1 e D2).

Por fim, cumpre mencionar que Virgílio Afonso da Silva admite a aplicação da regra da proporcionalidade com suas três sub-regras (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) sempre que diante de colisão entre direitos fundamentais na qual exista uma regra infraconstitucional. Afinal, nestes casos a regra se apresenta como produto de um sopesamento de princípios feito legislador, a qual se submeterá análise da adequação e da necessidade.

Todavia, há hipóteses em que não existirá qualquer regra infraconstitucional e que, portanto, estaremos diante de colisão direita de princípios constitucionais diretamente aplicáveis ao caso concreto. Nestas hipóteses, tendo em vista a falta de suporte fático essencial à aplicação das sub-regras da adequação e da necessidade, deverá ocorrer apenas o sopesamento dos princípios aplicáveis ao caso concreto.