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1. A PROPORCIONALIDADE NA DOUTRINA

1.11. Marcelo Neves

104 Nesse sentido vide: SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6ª ed. Rio de

Janeiro: Civilização Braisleira, 2012; AMARTYA, Sen. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011;MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Bauru: EDUSC, 2001.

105 Aqui o autor não deixa claro se admite que estes postulados sejam normas jurídicas (de

primeiro ou de segundo grau). Contudo, como se refere à posição de Humberto Ávila sem que faça oposição expressa neste sentido, nos parece que o autor acompanha este último no entendimento de se trata de normas de segundo grau.

106 Quando o autor afirma que a equidade assumiu inicialmente o nome de razoabilidade e,

mais recentemente, o de proporcionalidade, dá a entender que ambas seriam a mesma coisa (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 193). No entanto, o autor adota na mesma obra, em momento anterior, o critério de diferenciação entre proporcionalidade e razoabilidade (como equivalência) apresentado por Humberto Ávila (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a

interpretação/aplicação do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 190-191).

Assim como ocorre na obra de Humberto Ávila, Marcelo Neves também rompe com a tradicional conceituação de regras e princípios. Isto não quer dizer que ele afaste o reconhecimento destas duas espécies do gênero norma jurídica, mas apenas que adota outro critério de diferenciação.

Inicialmente, o autor estabelece como premissa que somente quando existir uma controvérsia sobre a norma a aplicar, no plano concreto, diante do dever de proferir decisão para um conflito interpessoal, ou quando diante do controle abstrato de normas, é que terá relevância prática e teórica a diferenciação entre regras e princípios. Quer dizer que esta diferenciação somente admite problematização no plano da argumentação jurídica.107 Desta forma, “a distinção entre regras e princípios só pode ser tematizada no plano discursivo”.108

Entretanto, o autor não para simplesmente na teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas, mas analisa os dois planos (da ação e do discurso) sob uma noção sistêmica – especialmente o segundo, que para a finalidade de sua obra é o que mais lhe interessa –, pois é justamente esta abordagem sistêmica que permite a discussão sobre a validade, o sentido, as condições de cumprimento, etc. das normas a serem aplicadas. Disto decorre que os princípios e regras são normas constantemente reconstruídas pelo processo de argumentação jurídica.

107 Ao relegar ao plano da argumentação jurídica a discussão a respeito da diferenciação entre

regras e princípios o autor se pauta na teoria de Jürgen Habermas do agir comunicativo. De acordo com esta teoria existe uma diferença entre ação e discurso, a qual é explicada pelo próprio autor: “Segundo essa concepção, no plano da ação, que faz parte de nossa prática cotidiana, as pretensões de validade são aceitas ingenuamente, não sendo problematizadas. A ação, nesse sentido, desenvolve-se na prática cotidiana, tendo como pano de fundo o ‘mundo da vida’, que constitui o ‘horizonte em que os agentes comunicativos movimentam-se’, partilhando recíproca e tacitamente as pretensões de validade envolvidas em suas manifestações e afirmações, sem questioná-las. (...) Quando, porém, as pretensões de validade sustentadas implicitamente em ações ou atos de fala são problematizadas na interação concreta e exige-se justificação do respectivo agente ou falante, entra-se no plano do discurso, no qual, diversamente do plano da ação, não se ganham novas informações, mas há intercâmbio de argumentos. Então, as próprias pretensões de validade que foram problematizadas tornam-se o objeto ou tema da discussão e precisam ser fundamentadas. O que era ingenuamente suposto como verdadeiro ou justo no plano da ação passa a ser suscetível de questionamento e crítica”. (NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 96-97)

108 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

No que toca ao momento da argumentação jurídica, assim dispõe o autor:

A argumentação jurídica ocorre na intersecção entre a justificação e a aplicação das normas. Com ela, ao contrário do que pretende Günther, saímos do plano da mera aplicação ou observância (que também ocorre em modos e condições diversas conforme a situação) e procuramos dar uma nova luz à aplicação mediante a discussão sobre a justificação

sistêmico-interna das normas a aplicar. 109

Todavia, poder-se-ia – com base na teoria sistêmica – terminar por levar a distinção entre regras e princípios a uma síntese dicotômica, o que o autor chama de forma de dois lados, isto é, assim como temos no âmbito do sistema as dicotomias validade/invalidade, lícito/ilícito, igualdade/desigualdade, teríamos também a dicotomia regra/princípio. Contudo, o autor afirma que a diferença entre regra e princípio se constrói e operacionaliza a partir de dois conceitos de conteúdo e, por isto, não seria passível de enquadramento como forma de dois lados, isto é, não constituiria uma dicotomia no âmbito do sistema. Pelo contrário, para explicar sistematicamente a diferença entre regra e princípio o autor se aproxima do conceito de tipo-ideal, conforme utilizado por Max Weber.110 A diferença é que, enquanto Max Weber constrói o conceito de tipo-ideal a partir da noção de sujeito transcendental, o autor concebe o tipo- ideal “como estrutura cognitiva de seleção das ciências sociais em relação à realidade ambiente, que, diante delas, apresenta-se mais complexa e desestruturada”.111

No entanto, no âmbito normativo, os tipos ideais não orientam expectativas cognitivas mas, pelo contrário, estabilizam expectativas

109 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

WMF Martins Fontes, 2013. p. 100-101.

110 “Os tipos ideais, definidos por Weber como ‘utopias’ gnosiológicas, nunca são encontrados

em forma pura na realidade social, servindo antes como esquemas de sua interpretação com ênfase unilateral em determinados elementos mais relevantes ao conhecimento que se pretende obter. Na concepção weberiana de tipo ideal, ‘os elementos considerados não essenciais ou casuais para a constituição da hipótese’ não são tomados em conta”. (NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 101-102)

111 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

normativas, destinando-se, assim, à ordenação seletiva das disposições e enunciados normativos oferecidos pelo direito positivo.112 E, conforme conclui,

“princípios e regras desempenham este papel no plano da argumentação jurídica”.113

Diante do exposto, Marcelo Neves estabelece que os princípios são normas no plano reflexivo, as quais possibilitam o balizamento, a construção ou a reconstrução de regras. Já as regras são condições de aplicação dos princípios à solução do caso, pois figuram como razões imediatas para normas de decisão. A afirmação de que uma norma figura como princípio ou como regra ocorrerá exclusivamente na cadeia argumentativa, e dependerá do modo mediante o qual a norma será incorporada do ponto de vista funcional- estrutural no processo argumentativo, isto é, durante o processo de argumentação, que ocorre no plano do discurso, a estrutura e a função da norma in aplicando no sistema é que definirá se ela é uma regra ou um princípio, sendo impossível realizar esta aferição fora do plano do discurso, ou seja, fora da argumentação jurídica.

O problema é que, por se tratar de conceitos normativos análogos aos tipos-ideais, cuja aferição ocorre no âmbito argumentativo em meio à dinâmica jurídica114, não há como imunizá-los de qualquer contaminação recíproca. Daí a razão de o autor admitir a existência de uma terceira categoria, à qual ele nega o status de tipo-ideal de norma jurídica, mas da qual ele não pode retirar a normatividade (força normativa). Estes são os híbridos:

O enquadramento conceitual proposto no presente trabalho não comporta um terceiro ‘tipo-ideal’ de normas (sem que se negue aqui a existência de outros padrões no sistema jurídico além das normas). Ou as normas estão no nível reflexivo da ordem jurídica, servindo tanto para o balizamento ou a construção hermenêutica de outras normas, mas não sendo

112 Note-se que o autor inclui aqui não apenas o repertório de legislação, mas também a

jurisprudência, o que é rechaçado por alguns autores.

113 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

WMF Martins Fontes, 2013. p. 103.

114 O próprio autor se vale da noção de dinâmica jurídica apresentada na Teoria Pura do Direito

de Hans Kelsen, ressalvando, contudo, não adotar a teoria positivista kelseniana. (NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 117, nota 80)

razão definitiva para uma norma de decisão de questões jurídicas, e, portanto, devem ser classificadas primariamente como princípios; ou elas são normas suscetíveis de atuar como razão definitiva de questões jurídicas, não atuando como mecanismo reflexivo, e, portanto, devem ser classificadas primariamente como regras. Se não for possível enquadrá-la primariamente em nenhuma das categorias, cabe falar de híbridos.115

Temos, portanto, de acordo com Marcelo Neves, dois tipos-ideais de normas que servem para estabilizar as expectativas normativas: regras e princípios. Contudo, sempre que a análise sistêmica, ocorrida no processo argumentativo, do ponto de vista funcional-estrutural, não permitir que se classifique primariamente uma norma jurídica como regra ou como princípio, estaremos diante de um híbrido que, em que pese não corresponda a um tipo- ideal, por uma questão de lógica sistemática, deve ser encarado como uma categoria de norma jurídica. Desta forma, existem dois tipos ideais de normas jurídicas que são as regras e os princípios, mas, de outro lado, há três espécies normativas, que são as regras, os princípios e os híbridos.

Pois bem, a partir da classificação de regras, princípios e híbridos, Marcelo Neves passa à questão da proporcionalidade. Segundo afirma, a proporcionalidade se apresenta como “uma condição de funcionamento efetivo e consistente de uma ordem de regras e princípios”.116 Por se tratar de uma

condição de funcionamento poderia parecer inadequado, num primeiro momento, enquadrá-la com norma jurídica. Mas, uma vez que dentro do sistema jurídico a utilização desta condição de funcionamento passe a ser concebida como um dever para os encarregados da interpretação/aplicação, então, diante da imposição deste dever, ela passa a ser enquadrada como uma norma do sistema. Neste caso a condição de funcionamento do ordenamento passa a ser norma do ordenamento através do instituto do reentry, que é justamente aquele que permite acolhida pelo ordenamento jurídico, na condição de norma, de uma condição de funcionamento – ou condição de possibilidade de funcionamento, como também chamada pelo autor – da ordem

115 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

WMF Martins Fontes, 2013. p. 109.

116 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

normativa sistematizada, seja no tocante a organização coerente do sistema ou no que diz respeito à aplicação de normas.117

No que toca ao uso dos critérios de adequação e necessidade, estas são “normas que exigem a racionalidade pragmática de meios e fins em relação à aplicação dos direitos fundamentais”118 e, portanto, são claramente enquadradas como regras. Afinal, servem imediatamente à solução da controvérsia, e se apresentam como razões definitivas para a decisão da medida adotada na restrição de direitos fundamentais – se é adequada e necessária ao fim que busca realizar.

Já no que diz respeito à proporcionalidade em sentido estrito, a qual traz consigo o mandamento da ponderação – embora com ele não se confunda – a situação muda de figura. Isto porque, sob o ponto de vista estrutural, é uma regra, na medida em que se apresenta como um critério ou uma razão definitiva para a solução do caso, mas no aspecto funcional é um princípio, pois atua no nível reflexivo do sistema jurídico, articulado com os princípios em via de sopesamento. Desta forma, conclui que a proporcionalidade em sentido estrito é um híbrido.

Com vistas ao exposto é possível concluir que, para Marcelo Neves, proporcionalidade é um critério que funciona como condição de funcionamento do sistema, na medida em que viabiliza a aplicação de normas – notadamente dos direitos fundamentais –, e que foi incorporado ao ordenamento com o status de norma jurídica através do instituto do reentry.

117 “Por fim, cabe observar que nem todas as condições de possibilidade do funcionamento de

uma ordem normativa ou da aplicação de uma norma passam a ser normas mediante reentry. Assim como os conceitos de matéria e energia enquanto condições de possibilidade da própria física não constituem uma lei física, o princípio lógico da não contradição enquanto condição de possibilidade da aplicação consistente de normas (pois eu não posso fazer e não fazer algo ao mesmo tempo), não é, em sim mesmo, norma, atuando antes como critério para que se definam normas para a solução de conflitos normativos”. (NEVES, Marcelo. Entre hidra e

Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 111-

112)

118 NEVES, Marcelo. Entre hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo:

Entretanto, não fica claro se, uma vez incorporada ao ordenamento, a proporcionalidade assume o caráter de norma do tipo híbrido, na medida em que as normas dela decorrentes são enquadradas em categorias diversas, quais sejam, a adequação e a necessidade são regras, enquanto a proporcionalidade em sentido estrito é um híbrido; ou se, não obstante a natureza específica da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, o critério da proporcionalidade em si, analisado isoladamente, seria por seu enquadramento funcional uma regra, na medida em que serve imediatamente à solução da controvérsia, apresentando-se como razão definitiva para decisão da medida a ser adotada.