• Nenhum resultado encontrado

A razoabilidade como imperativo de razão prática

4. O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

4.1. A razoabilidade como imperativo de razão prática

Tivemos a oportunidade de verificar no item 2.4 que, segundo Eros Roberto Grau, a atividade jurídica pode ser dividida em duas espécies: a jusrisciência e a jurisprudência. A primeira é a dogmática jurídica, atividade científica que tem por finalidade sistematizar e organizar o direito positivo (epistéme). A segunda é a jurisprudência prática, atividade prudencial que tem como intuito oferecer uma decisão socialmente aceitável para a solução de um conflito concreto (phrónesis).

Como bem apontado pelo autor, a atividade científica do direito se opera no âmbito da organização sistemática do direito positivo, adotando, para tanto, uma determinada metodologia. Esta atuação segue o parâmetro lógico de causa e conseqüência. Como resultado produz uma tecnologia que será

311 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de

uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 224.

312 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da proporcionalidade e teoria do direito. In.

GRAU, Eros Roberto. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 283.

utilizada pelo aplicador do direito. Todavia, o momento da decisão, da escolha de uma determinada técnica e/ou de certa linha de argumentação, o aplicador do direito atua no plano da prudência, pois leva em consideração diversos fatores, das mais diversas ordens – fáticos, normativos, axiológicos, políticos etc. –, buscando criar uma norma de decisão, agindo, pois, segundo uma lógica de preferência. É o que decorre das suas palavras:

O interprete autêntico, ao produzir normas jurídicas, pratica júris prudentia e não júris scientia. O interprete autêntico, então, atua segundo a lógica da preferência, e não conforme a lógica da conseqüência (Comparato 1979/127): a lógica jurídica é a da escolha entre várias possibilidades corretas. Interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias interpretações possíveis, de modo que a escolha seja apresentada como adequada (Larenz 1983/86). A norma não é

objeto de demonstração, mas de justificação.313

Isso se deve ao fato de que o direito, por sua natureza especifica, não oferece uma estrutura lógica calcada sobre uma relação causal, composta por um número limitado de variáveis, que lhe permita apresentar um único resultado objetivo ao problema apresentado, ao contrário do que ocorre com as ciências naturais, ao menos até o advento do novo paradigma científico. Desta forma, a interpretação e a aplicação do direito pressupõem a existência de um agente catalisador, que agrega às variáveis do problema, os seus próprios pré- conceitos, os quais serão utilizados na interpretação destas variáveis, trazendo, assim, uma inevitável carga de subjetividade à operação. Isto posto, assiste razão a Eros Roberto Grau quando afirma que a lógica formal da ciência não incide sobre a interpretação e a aplicação do direito. Neste ponto, ele segue a mesma linha de Lourival Vilanova, que assim pontua:

Por isso, quando os juristas da escola dogmática da exegese pensavam que somente com a Lógica o juiz podia decidir os casos controvertidos da vida cotidiana, não precediam como Mr. Jourdan, que fazia prosa sem o saber: acreditavam fazer Lógica, mas faziam outra coisa sem o saber. Faziam interpretação e aplicação do Direito positivo, que se não

313 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5ª ed. São Paulo:

consomem no formal do silogismo, sem valorações e sem

referências à realidade social subjacente.314

Por óbvio a atuação do aplicador não é atividade científica. Trata-se, pois, de atividade técnico-prudencial. Afinal, se por um lado o aplicador tem a liberdade de escolha, de outro esta escolha é limitada pelo arcabouço técnico disponibilizado – o qual exige coerência na sua utilização –, assim como pela racionalidade exigida no processo de interpretação e aplicação do direito.315

Contudo, somente o aparato técnico e a racionalidade não são suficientes para se atingir a aceitabilidade social e para preencher o sentimento de justiça. É justamente aí que entra a prudência, manifestada pela razoabilidade. Nesse sentido Goffredo Telles Jr., quando trata da lógica do jurista, afirma o que segue:

O que, sobre este assunto, devemos dizer é que o verdadeiro jurista, ao relacionar a lei ao caso concreto, é levado a

conscienciosamente acrisolar a lógica do racional,

aprimorando-a com a lógica do razoável.316

E prossegue mais a frente em sua obra:

A verdadeira compreensão das leis, a sábia interpretação delas, a sua aplicação prudente ao caso concreto, não depende de erudição apenas, mas da sabedoria, ‘not knowledg, but Wisdom’, daquela ‘sabedoria profunda e silenciosa’, de que falam os pensadores.

Valendo-se da lógica do razoável, o juiz fará uma justiça que ‘excede a justiça dos escribas e dos fariseus’, a que se referiu

Jesus, no Sermão da Montanha.317

Percebe-se, pois, que a lógica do razoável pertence à esfera da phrónesis e, enquanto atividade prudencial, não se confunde com a

314 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo:

Noeses, 2005. pp. 299-300.

315 Ao contrário de Eros Roberto Grau, que entende que interpretação e aplicação ocorrem

sempre simultaneamente, somos da opinião de que toda a aplicação pressupõe interpretação, mas a última pode ocorrer sem a primeira.

316 TELLES JR., Goffredo. Iniciação na ciência do direito. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.

366.

317 TELLES JR., Goffredo. Iniciação na ciência do direito. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.

racionalidade. Desta forma, assiste razão a John Rawls quando afirma que racionalidade e razoabilidade são coisas distintas:

Ao longo deste trabalho farei uma distinção entre o razoável e o racional, como vou me referir a eles. Estas são as idéias básicas e complementares que entram na idéia fundamental da sociedade como um sistema justo de cooperação social. Quando aplicada ao caso mais simples, ou seja, pessoas envolvidas em cooperação e situadas como iguais em aspectos relevantes (ou simetricamente, para abreviar), pessoas razoáveis estão prontas para propor, ou reconhecer quando propostos por outras, os princípios necessários para especificar o que pode ser visto por todos como os termos justos de cooperação. Pessoas razoáveis também entendem que eles devem honrar esses princípios, mesmo à custa de seus próprios interesses, conforme as circunstâncias podem exigir,

haja vista que os outros também deverão honrá-los.318

Reconhecemos que a diferenciação apontada pelo autor está fundada sobre as premissas de sua própria teoria, na medida em que se refere à aplicação dos dois princípios de justiça por ele propostos. Contudo, mesmo fora da teoria do autor a diferença entre racionalidade e razoabilidade deve ser reconhecida. Afinal, a conexão entre a racionalidade de determinada escolha e a sustentabilidade de suas razões depende da justamente da razoabilidade. A respeito da relação entre racionalidade e razoabilidade assim se manifesta Amartya Sen:

A racionalidade é, de fato, uma disciplina bastante permissiva, que exige a prova do raciocínio, mas permite que o autoescrutínio arrazoado assuma formas bastante diferentes, sem necessariamente impor qualquer grande uniformidade de critérios. Se a racionalidade fosse uma igreja, seria uma igreja bastante ampla. De fato, as exigências da razoabilidade, assim como caracterizada por Rawls, tendem a ser mais rigorosas do

que as exigências da mera racionalidade.319

Disso decorre que a racionalidade, conforme demonstrado no item 3.4.5, apresenta a exigência de que a argumentação jurídica seja estruturada dentro dos parâmetros da razão. No entanto, em que pese o fato da racionalidade agregar transparência e afastar arbitrariedade na fundamentação

318 RAWLS, John. Justice as fairness: a restatement. Massachusetts: Harvard Univerty Press,

2001. pp. 6-7 (tradução livre).

das decisões, ela sozinha não garante a aceitabilidade social da escolha racionalmente realizada pelo aplicador do direito. Isto porque, a aplicação do direito se opera no âmbito da prudência e, desta forma, exige que a escolha do aplicador seja aquela que melhor atenda aos anseios de justiça e pacificação social. Daí porque o autor afirmar que “isto pode muito bem ser a moralidade social, mas é em última análise uma moralidade social prudencial”.320 Nesse ponto nos parecem apropriadas as palavras de Chaïm Perelman, que afirma:

Enquanto as noções de ‘razão’ e de ‘racionalidade’ se reportam a critérios bem conhecidos da tradição filosófica, tais como as idéias de verdade, de coerência e de eficácia, o razoável e o desarrazoado são ligados a uma margem de apreciação admissível e ao que, indo além dos limites permitidos, parece

socialmente aceitável.321

Como se percebe, existe uma relação bastante íntima entre prudência e razoabilidade. Afinal, se a aplicação do direito é uma atividade técnico-prudencial que exige a racionalidade como forma de transparência para afastar a arbitrariedade, e sabendo que a racionalidade sozinha não atende aos anseios de justiça e aceitabilidade social, torna-se necessário o recurso à razoabilidade. Esta necessidade decorre do caráter eminentemente prático da aplicação do direito enquanto atividade técnico-prudencial de caráter racional. Portanto, é possível concluir que a razoabilidade é um imperativo de razão prática. Não é outra a conclusão apresentada por John Finnis, em sua releitura da teoria do direito natural de Tomás de Aquino:

O discernimento, a inferência e a elaboração dos princípios morais é uma tarefa para a razoabilidade prática. Os julgamentos que alguém faz quando age assim, todos juntos, são chamados de sua consciência, num sentido anterior ao sentido em que a consciência é o julgamento que passa ou poderia passar nos seus próprios atos considerados retrospectivamente. Alguém, cuja consciência é sadia, tem no lugar os elementos básicos do julgamento correto e da razoabilidade prática, que é da virtude intelectual e moral que Tomás de Aquino chama de prudentia. A prudentia plena requer que alguém coloque seu julgamento adequado em ação em todos os sentidos, isto é, nos detalhes da escolha e da

320 SEN, Amartya. A idéia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 236. 321 PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 436.

ação em face das tentações alternativas irrazoáveis, mas

talvez não ininteligíveis.322

Também Amartya Sen – fora da ótima do direito natural – reconhece que a razoabilidade possui um papel fundamental no âmbito da razão prática. Tanto é assim que o autor diz o que segue:

Como foi discutido no capítulo 5, a idéia de objetividade na razão prática e no comportamento pode ser sistematicamente vinculada às exigências de imparcialidade. Partindo disso, podemos assumir que o padrão relevante de objetividade dos princípios éticos está ligado a sua defensibilidade em uma estrutura aberta e livre de argumentação pública. As perspectivas e avaliações de outras pessoas, bem como seus interesses, teriam um papel aqui de forma que a racionalidade

por si não necessita exigir.323

Como se abstrai do trecho citado, ao atribuir à razoabilidade o papel de concretizadora da racionalidade no âmbito da prudência, o autor enxerga que a aceitabilidade social da racionalidade só se opera no plano prático, pois em tese qualquer argumento racional seria suficiente, mas na realidade a aceitabilidade deve ser analisada com vistas ao resultado prático.

Isso posto, é fácil concluir que a razoabilidade é um imperativo de razão prática, na medida em que sem ela faltará à racionalidade o parâmetro concreto que acarreta a aceitabilidade social e o sentimento de justiça, os quais só podem ser concebidos com vistas a determinado resultado prático.