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2. CIÊNCIA E TÉCNICA JURÍDICA

2.1. O paradigma dominante da ciência

Em se tratando de filosofia da ciência, sabe-se que, inclusive nos dias atuais, vigora um conceito de cientificidade pautado essencialmente nas premissas analítico-científicas das ciências naturais, as quais se pautam na linguagem matemática. Isto, como afirma Ernst Cassirer, se deve à descoberta pelos gregos da linguagem dos números:

Em seus primeiros estágios, a ciência tinha ainda de aceitar os nomes das coisas no sentido em que eram usados na fala cotidiana. Podia usá-los para descrever os elementos fundamentais ou as qualidades das coisas. Nos primeiros sistemas gregos de filosofia natural, em Aristóteles, vemos que esses nomes comuns ainda exercem grande influência sobre o pensamento científico. Mas no pensamento grego esse poder já não é o único, nem o predominante. Na época de Pitágoras e dos primeiros pitagóricos, a filosofia grega havia descoberto uma nova linguagem, a dos números. Essa descoberta marcou o momento do nascimento da nossa moderna concepção de ciência.119

A partir dos gregos, a linguagem matemática começou a aforar-se no posto de linguagem oficial da ciência, não admitindo a atribuição dos contornos de cientificidade para outra espécie de linguagem que não ela

119 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana.

própria. Daí o porquê de Ernst Cassirer afirmar que “a ciência não fala mais a língua da experiência sensorial comum, mas o idioma pitagórico”.120 Ou seja, a

partir da apropriação da linguagem científica pela matemática, os dados analisados e interpretados precisam ser sistematizados dentro dos parâmetros da linguagem matemática, sob pena de receberem a alcunha de anticientíficos. Neste sentido, a afirmação de Boaventura de Souza Santos é emblemática:

Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida me que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas

regras metodológicas.121

Foi justamente essa lógica científico-matemática que levou Platão a conceber um mundo das ideias concebido por conceitos absolutos (seres em si) e formas ideais perfeitas, tendo destacado entre estas os números da aritmética122 e as formas geométricas123, na medida em que somente eles são

concebíveis no plano da pura intelecção racional – ideia esta que, tempos depois, influenciou a criação do método cartesiano.

Entretanto, a partir do século XVI, esse modelo de racionalidade científica de cunho lógico-matemático encontra maior difusão com a superação do período medieval e o advento do renascimento, no qual ocorre a redescoberta da filosofia grega antiga, assim como a mudança de foco da atividade intelectual, que passa do teocentrismo para o heliocentrismo. É justamente neste cenário que a racionalidade científico-matemática atinge seu clímax, e passa a deter, então, o monopólio da lógica e da linguagem da ciência.

Por sua vez, ao restringir-se à lógica e à linguagem da matemática, esse modelo de racionalidade dá à luz a dicotomia entre ciências naturais e

120 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana.

São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 349.

121 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo:

Cortez, 2005. p. 21.

122 PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 237-238. (Coleção os

pensadores).

123 PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 2000. p. 239-240. (Coleção os

humanidades124, na medida em que estas últimas seriam incompatíveis com o

paradigma científico dominante. Isto, aliás, é frisado por Boaventura de Souza Santos:

Esta nova visão do mundo e da vida reconduz-se a duas distinções fundamentais, entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro. Ao contrário da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia sistematicamente das

evidências da nossa experiência imediata.125

E prossegue mais a frente o autor:

As ideias que presidem à observação e à experimentação são as ideias claras e simples a partir das quais se pode ascender de um conhecimento mais profundo e rigoroso da natureza. Essas ideias são as ideias matemáticas. A matemática fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o

modelo de representação da própria estrutura da matéria.126

Essa abordagem segmentária, própria da lógica matemática do paradigma científico dominante, chegou às humanidades. Se até então a aplicação das premissas lógicas na atividade científica se restringia às ciências naturais, a partir de um dado momento ela passou a ser aplicada às humanidades, fazendo surgir, assim, as chamadas ciências sociais. Afinal, se era possível através desta abordagem metodológica descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade. Esta vertente filosófico-científica é assim sintetizada por Boaventura de Souza Santos:

A primeira variante – cujo compromisso epistemológico está bem simbolizado no nome de ‘física social’ com que inicialmente se designaram os estudos científicos da sociedade – parte do pressuposto que as ciências naturais são uma

124 Aqui usamos a expressão “humanidades” e não ciências humanas de forma proposital. Isto

porque a discussão sobre a cientificidade dos problemas do homem seria ainda combatida por muito tempo, à luz do modelo científico oferecido pelo paradigma dominante.

125 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo:

Cortez, 2005. p. 24.

126 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo:

aplicação ou concretização de um modelo de conhecimento

universalmente válido e, de resto, o único valido.127

Dessa forma, surge no âmbito da filosofia o positivismo, que outra coisa não faz senão apropriar-se de todos os princípios epistemológicos e metodológicos do paradigma científico dominante – que foram desenvolvidos no âmbito das ciências naturais – e aplicá-los às ciências sociais.128

Todavia, tempos depois uma parte da filosofia da ciência começa a romper com a aplicação indistinta do estatuto científico das ciências naturais às humanidades. Isto porque seus defensores entendem que a análise científica estruturada nos padrões lógico-matemáticos, que se pauta por premissas estáticas no que toca aos quesitos espacial e temporal, é ineficaz para a análise e explicação dos fenômenos inerentes ao homem como indivíduo e em sociedade. Nesse sentido é a crítica de Jürgen Habermas ao positivismo:

A autocompreensão positiva amplamente dominante entre os pesquisadores adotou a tese da unidade das ciências positivas: o dualismo científico que deveria estar fundamentado na lógica da pesquisa é atrofiado segundo os critérios do positivismo e transformado em uma diferença relativa ao estado de

desenvolvimento.129

Isso posto, passa-se a buscar o estabelecimento de um estatuto epistemológico e metodológico próprio das ciências sociais, o qual deve se pautar na especificidade do ser humano e na distinção essencial que existe entre ele e a natureza. Sobre esta segunda vertente, assim preceitua Boaventura da Souza Santos:

A ciência social será sempre uma ciência subjetiva e não objetiva como as ciências naturais; tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas ações, para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes dos correntes nas ciências naturais,

127 SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo:

Cortez, 2005. p. 34.

128 Foi justamente essa concepção científico-filosófica que inspirou Hans Kelsen na criação de

sua Teoria Pura do Direito. Afinal, toda sua construção teórica se pauta exclusivamente na lógica formal da matemática.

métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em vez de um conhecimento objetivo,

explicativo e nomotécnico.130

No entanto, para que se desenvolva este conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo das ciências sociais proposto por Boaventura de Souza Santos, é imprescindível a utilização de procedimentos analíticos e hermenêuticos, os quais se relacionam durante o processo de pesquisa próprio das ciências sociais. Esta relação, contudo, existe em constante tensão, e deve, como aponta Jürgen Habermas, ser equilibrada:

Enquanto as ciências naturais e as ciências humanas, que em outras circunstâncias se mostram como mutuamente indiferentes, podem viver em uma coexistência mais hostil do que pacífica, as ciências sociais precisam equilibrar internamente a tensão entre as abordagens divergentes; aqui, a própria práxis de pesquisa impõe a reflexão sobre a relação

entre modos de procedimento analíticos e hermenêuticos.131

Não obstante a diferença entre essas duas vertentes científicas, quais sejam, aquela que impõe a lógica matemática a toda a atividade científica e a que propõe o estabelecimento de um estatuto científico próprio para as ciências sociais, é preciso ter em mente o fato de que ambas integram o paradigma científico dominante.