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contra os Neoplatónicos

2. A coisa e o tom em Filosofia

No ano de 1796, Kant publica um artigo com o estranho título «De um recentemente enaltecido tom de distinção na Filosofia» (Von einem

neuerdings erhobenen vornehmen Ton in der Philosophie).15 Redigido com subtil

toque de ironia e como uma espécie de resenha crítica da obra de J. G. Schlosser – Platos Briefe über die syrakusanische Staatsrevolution, nebst einer his‑

torischen Einleitung und Anmerkungen, Königsberg, 1795)16 –, o ensaio consti- tui uma súmula recapitulativa dos principais tópicos do confronto de Kant 14. Veja-se: Werner Beierwaltes, «Plotin im deutschen Idealismus», in Idem, Platonismus und Idea‑

lismus, Frankfurt am Main: Klostermann, 20042, pp.83-153 (especialmente: pp.83,145-146). Veja-se

também, do mesmo Beierwaltes, o capítulo «Hegel und Proklos», ibidem, pp.154-187.

15. O artigo foi publicado no número de Maio da revista Berlinische Monatschrift, XXVII, pp.387- 426 (AA 08: 387-406). Uma tradução portuguesa do artigo foi feita sob coordenação de Valerio Rohden e publicada em Studia Kantiana, 10, 2010, pp.152-170, .

16. Trata-se da tradução das Cartas do filósofo antigo, com Introdução e Anotações do tradutor. Visadas seriam também outras publicações no mesmo tom, designadamente, a tradução de al- guns diálogos de Platão, de Friedrich Leopold Graf zu Stolberg (Auserlesene Gespräche des Platons, 1.Theil, Einleitung, Gesammelte Werke der Brüder Stolberg, 17.Band) e também, do mesmo, Reise in

com a doutrina de Platão e nesse confronto podemos reconhecer como o filósofo crítico, sendo um intérprete de Platão, é também um restaurador do platonismo e pode mesmo considerar-se como sendo verdadeiramente um platónico em muitos aspetos da sua filosofia.17 Mas, ao mesmo tempo, o ensaio revela como o filósofo crítico contribuiu a seu modo para a de- marcação hermenêutica, que na época estava em curso, entre a doutrina de Platão e a dos “platónicos” antigos ou mais recentes. É efetivamente em vida de Kant que estes últimos passam a ser definitivamente identificados como uma forma de pensamento com características próprias, não todas imputáveis a Platão, e que os neologismos “Neoplatonismo”, “Filosofia Neoplatónica” ou “Escola Neoplatónica” e “Neoplatónicos” passam a ser usados para os designar. Kant é mesmo um dos primeiros que faz uso dos termos “Escola Neoplatónica” (Neuplatonische Schule) e “Neoplatónicos” (die Neuplatoniker).

A primeira designação – “Escola Neoplatónica” – ocorre já numa re- flexão presumivelmente da fase final de redação da Crítica da Razão Pura (do início dos anos 80, ou dos finais dos anos 70).18 Essa reflexão, apesar da grande distância temporal, tem muito de comum com o ensaio de 1796, nomeadamente, na separação estabelecida entre o que seria a genuína fi- losofia de Platão e os “devaneios” dos seus pretensos seguidores tardios. Procedendo a uma reconstrução da linha lógica que orienta o pensamento 17. A literatura sobre a relação de Kant com Platão é vasta e não cabe aqui recenseá-la. Ela versa ora sobre a peculiar interpretação de Platão por parte de Kant, ora sobre o confronto das duas filosofias a respeito de diversos tópicos: a metafísica, o conhecimento, a ética, a estética, a política. Para um ponto da situação, veja-se: Rafael Farber, «Platon und Kant», in: Ada Neschke-Hentschke (Ed.), Argumenta in Dialogos Platonis. Teil 1: Platoninterpretation und ihre Hermeneutik von der Antike

bis zum Beginn des 19. Jahrhunderts, Akten des Internationalen Symposions von 27.-29. April 2006

im Instituto Svizzero di Roma, Basel: Schwabe, 2010, pp.371-390.

18. Trata-se da já referida Refl. 6050, que leva por título «Von der philosophischen Schwärmerei» (AA 18: 434-438) e é datável do início dos anos 1780, ou do final dos anos 70 (fase ψ ?). Kant traça nela uma genealogia e fenomenologia da Schwärmerei em Filosofia, nas seguintes etapas: Platão Escola Neoplatónica – Espinosismo. Aquilo que, em Platão, era uma genuína questão filosófica, viria a desbordar para a exaltação mística, já na “Escola Neoplatónica”, e por fim para o dogmatismo, no Espinosismo. A expressão «Neu-platonische Philosophie» fora usada por A. F. Büsching (Grundriss einer Geschichte der Philosophie 2, 1774, 471 ss.) e por Chr. Meiners (Grundriss

der Geschichte der Weltweisheit,1786). Já a expressão «Neu-Platonisch» é usada por J. A. Eberhard

(Allgemeine Geschichte der Philosophie zum Gebrauch academischer Vorlesungen, 1788, 211 ss). E a confir- mação da designação – «Neuplatonische Philosophie» –, dá-se com G. G. Fülleborn (Beyträge zur

Geschichte der Philosophie, 3, 1793, pp.70-85) e com J. G. Buhle (Lehrbuch der Geschichte der Philosophie und einer kritischen Literatur derselben,1796-1801, 4. Theil, p. 211). Neste mesmo ano de 1796, no

ensaio aqui em apreço, Kant usa a expressão «die Neuplatoniker» para caracterizar Schlosser e outros a ele afins. Não se deve todavia pensar que queria com isso relacionar explicitamente o autor, cuja obra discute, com o Neoplatonismo antigo, mas apenas que o toma como expoente ou exemplo de uma recentíssima maneira (pseudo-)platonisante de filosofar, que se acoitava sob a tutela e autoridade de Platão, interpretando a filosofia deste de uma forma tal que só a desquali- ficava filosoficamente.

platónico a respeito das ideias e do respetivo envolvimento, Kant mostra como o que era, no filósofo antigo, uma importante questão filosófica cor- retamente enunciada, degenera para um sentido místico e para a o entu- siasmo fanático (Schwärmerey) com a “Escola Neoplatónica” e, por fim, com o Espinosismo. Vale a pena citar essa exposição:

«Platão advertiu corretamente que nós mediante a experiência não conhe- cemos as coisas, como elas são em si mesmas, mas apenas aprendemos a ligar segundo uma lei as suas aparências [Erscheinungen]. (Além disso ele viu que conhecer as coisas segundo aquilo que elas são em si mesmas exige também uma intuição das coisas em si mesmas, isto é, uma pura intuição intelectual, da qual não somos capazes.) Ele notou que para que a nossa representação concorde com o objeto, ou ela é produzida pelo objeto ou ela tem de ser pensada como produzindo o objeto. A última seria a repre- sentação originária (idea archetypa), da qual nós homens, se ela tem de ser originária em todos os aspetos, não somos capazes. Por conseguinte, pode- riam as ideias encontrar-se apenas no ser originário. Porém, as ideias deste entendimento originário não podem ser conceitos, mas apenas intuições, e contudo intelectuais. Então ele acreditou que todos os conhecimentos a priori são conhecimentos das coisas em si mesmas, e dado que somos parti- cipantes daqueles, também o somos destas, e entre esses contou ele a Mate- mática. Mas a partir de nós próprios não podemos ser participantes deles, por conseguinte, apenas o podemos ser mediante participação [Mittheilung] das ideias divinas. Como, porém, somos conscientes de que elas não nos são historicamente partilhadas e transmitidas, mas são vistas de modo imediato: então elas não devem ser conceitos implantados [eingepflanzte], nos quais se crê, mas intuições imediatas, que nós temos a partir das imagens originárias [Urbildern] que estão no entendimento divino. Nós só podemos desenvolvê- -las com esforço. Por conseguinte, elas são meras reminiscências [Wiedere‑

rinnerungen] das antigas ideias a partir da comunidade com Deus [aus der Gemeinschaft mit Gott].» (Reflexion 6050, AA 18:434)

Estas considerações estão próximas de outras bem conhecidas da Crí‑

tica (KrV A 19, 314-315) e devem ter constituído material preparatório para

essa obra. Na mesma Reflexão, Kant desculpa mesmo a linguagem de Pla- tão, não a tomando propriamente como expressão de um entusiasmo fa- nático, mas apenas como «uma mera maneira de esclarecer a possibilidade dos conhecimentos a priori» (Nun wäre dieses noch nicht Schwärmerey, sondern

blosse Erklärungsart der Möglichkeit der Erkenntnisse a priori), o que também

bate com afirmações da Crítica. Nesta obra, com efeito, o filósofo crítico faz notar que o filósofo antigo estendeu o seu conceito de conhecimen- to sintético a priori, que descobrira na matemática, também aos conheci- mentos especulativos da metafísica, porque interpretara mal a natureza do conhecimento matemático. Este, verdadeiramente, não trata do mundo inteligível ou supra-sensível, mas sim do mundo sensível e do que pode ser objeto de uma experiência. Nisso, declara Kant não poder seguir Platão,

nem na dedução mística das ideias e nos exageros com que as hipostasia, concedendo embora que «a elevada linguagem de que ele se serve para falar desse s domínio, é bem suscetível de uma interpretação mais mode- rada e mais conforme com a natureza das coisas» (wiewohl die hohe Sprache,

deren er sich in diesem Felde bediente, einer milderen und der Natur der Dinge ange‑ messenen Auslegung ganz wohl fähig ist).19 Mas no texto da Reflexão que estou comentando, Kant não deixa de fazer notar que a linguagem usada por Platão – a história por ele construída e contada para dar conta da natureza das ideias e do modo como elas ocorrem à mente humana ou nela estão presentes – dava facilmente azo a uma inflexão no sentido de se tomar por realidade de feição místico-religiosa o que no filósofo antigo seria somente o invólucro da sua doutrina genuinamente filosófica.20 E foi assim – conti- nua Kant – que, posteriormente, alguns pensadores de linhagem platónica

«começaram a presumir a realidade de uma comunidade atual com Deus e a possibilidade de os homens serem participantes de uma intuição imediata das ideias (intuição mística), e desse modo encontrarem o objeto imediato de todas as suas tendências [Neigungen]. E, sendo verosímil que entre nós e Deus exista uma grande escada gradual de criaturas [eine Grosse Stufenleiter

Geschopfe], que se estende desde nós até ele (os génios [genii]), os espíritos

astrais, os eões, seria possível alcançar assim a comunidade com eles e ter um prelúdio [Vorspiel] das originárias intuições intelectuais. E, uma vez que as ideias originárias são a causa da realidade do seu objeto, assim se poderia mediante elas esperar ter um poder soberano sobre a natureza; e foi assim que a Escola Neoplatónica, a qual se chamava eclética, porque afirmava que a sua sabedoria se encontrava em todos os antigos, pois lhes atribuía os seus devaneios [Träumereyen], depressa povoou o mundo com todo o furioso en- tusiasmo fanático [mit aller rasenden Schwärmerey]. (finalmente o espinosis- mo. (teosofia mediante o intuir [Theosophie durch Anschauen])).» (Refl. 6050, AA 18:435)21

19. KrV A 315.

20. Na verdade, não é descabido pensar que aquilo a que Kant chama a Schwärmerei poderia apoiar- -se em certos passos de Platão (veja-se: Fedro 244a5 – 245a5), onde se invoca a inspiração divina – o delírio ou a exaltação extática, que pode chegar a uma espécie de loucura, de divina loucura – (mania) –, graças à qual e sem esforço (isto é, por dádiva divina) chegariam aos humanos os maiores dos bens (tà mégista tôn agathôn hemîn gígnetai dia manias, …théia méntoi dósei didoménes); foi por esse modo (através dos seus delírios) que as profetisas em Delfos e as sacerdotisas em Dodona prestaram inestimáveis serviços à Hélade, ao passo que em perfeito juízo (sophronoûsai) pouco ou nada fizeram. A esse saber divino, de inspiração, Sócrates contrapõe o saber meramente humano, por leitura de sinais.

21. Todavia, a Refl. 6051 (AA 18:437), embora pareça ser continuação da anterior, é bem mais perentória na responsabilização de Platão pela Schwärmerei. Pois nela se lê: «A origem de toda a exaltação filosófica reside nas originárias intuições divinas de todos os objetos possíveis, isto é, nas ideias, pois nós só as intuímos mediante os fenómenos, por conseguinte apenas passiva- mente. Nisso se funda em primeiro lugar a opinião de Platão de que todo o nosso conhecimento a priori (Matemática) principalmente as perfeições provém da recordação destas intuições de outrora e que nós agora só temos de procurar desenvolvê-las; daí surge porém o segundo passo

Ressalte-se do texto a caracterização da Escola Neoplatónica, na linha de Brucker, como “eclética” (pois que assume todas as antigas doutrinas e se concebe a si mesma não como uma nova filosofia mas como herdei- ra de uma arcaíssima tradição de pensamento dos prisci theologi – Orfeu, Hermes Trimegisto, Zoroastro, Aglaofemo, Pitágoras), que teria sido suces- sivamente interpretada por Platão e reinterpretada por Plotino) e como schwärmerisch22, e a apresentação em sumário dos respetivos “devaneios” (Träumereyen): a de uma intuição imediata das ideias no sentido de uma intuição mística, a de uma união não só intelectual mas mística com a cau- sa das ideias (Deus), a da efetiva comunidade do homem com os espíritos que lhe estão acima, a da crença no poder que o homem exerce sobre a natureza (por certo, mediante a astrologia e a magia), e, enfim, a respon- sabilização dessa Escola pela infeção do entusiasmo fanático (Schwärmerey) em filosofia, cuja derradeira expressão seria o Espinosismo. Nesta carate- rização estão presentes os tópicos centrais que vamos encontrar também no ensaio de 1796. E é neste ensaio que ocorre o termo “Neoplatónicos”, embora aparentemente não para nomear diretamente os neoplatónicos antigos, e sim para nomear os neoplatonisantes contemporâneos, os quais não só propunham uma interpretação do platonismo de feição mística, hermética e poética, como invocavam uma “distinta” e “nobre” ascendên- cia ou genealogia “platónica” para granjear crédito para as suas ideias.

A polémica de Kant com Schlosser não terminaria por aqui. Embora no final do seu ensaio, Kant, como que minimizando o alcance polémico e crítico deste, evocando, aliás, um conhecido passo da Crítica da Razão Pura (A744/B772), declare, algo desportivamente, que no debate não estivera em causa propriamente um conflito que revelasse desunião entre dois par- tidos, que, na verdade têm o mesmo propósito de tornar os homens sábios e honestos, por conseguinte, não um litígio acerca da coisa (Sache) ou da do misticismo, segundo qual se intui ainda agora tudo em Deus, o que torna desnecessária toda a investigação do conhecimento sintético a priori, na medida em que o lemos em Deus; em terceiro lugar, dado que outros seres podem estar mais próximos de Deus, nós, por assim dizer, podemos primeiramente conhecer aquelas ideias talvez mediante reflexão, por conseguinte ter relação com as naturezas espirituais, e assim por diante.»[«Der Ursprung aller philosophischen Schwärmerey liegt in Platons ursprünglichen gottlichen Anschauungen aller möglichen obiecte, d.i. den Ideen, da wir nur sie durch ihre Erscheinungen anschauen, also nur passiv. Nun gründet sich darauf erstlich Platons Meynung, dass alle unsre Erkenntnis a priori (Mathematic), vornehmlich die der Vollkommenheiten, aus der Erinnerung dieser ehemaligen Anschauungen abstamme und wir diese jetzt (nur) immer mehr zu entwickeln suchen müssten; hieraus aber entspringt der zweyte Schritt des Mysticisms, alles noch jetzt in Gott anzuschauen, der denn alle Nachforschung synthe- tischer Erkenntnis a priori unnothig macht, indem wir sie in Gott lesen, drittens, da andere Wesen Gotte näher seyn mögen, wir, so zu sagen, jene Ideen vielleicht durch reflexion zuerst mussen kennen lernen, folglich mit Geistigen Naturen umgehen u.s.w.»

22. Jakob Brucker, Historia critica philosophiae, Leipzig, 1742, II. Band, 217 ss (:’de secta ecletica’). A apreciação negativa de Plotino e do Neoplatonismo, era seguida por outros historiadores da filo- sofia contemporâneos de Kant:, por ex., D. Tiedemann, Geist der spekulativen Philosophie, Marburg, 1793, 3. Bd. (a difamação de Plotino pode ler-se aí nas pp.373,382,402,431 ss).

causa mesma, mas tão-só acerca do tom (Tone) como ela é proposta ou enunciada23 e visando apenas proporcionar um esclarecimento recíproco que tornasse possível firmar um acordo capaz de garantir uma harmonia futura, a verdade é que Schlosser logo lhe replicou com um novo ensaio – «Carta a um jovem que quisesse estudar a filosofia crítica» (Schreiben an

einen jungen Mann, der die kritische Philosophie studiren wollte, 1796) –, ao qual

Kant, por sua vez, responderia com o seu «Anúncio da próxima assinatu- ra de um tratado de paz perpétua na Filosofia» (Verkündigung des nahem

Abschlusses eines Tractats zum ewigen Frieden in der Philosophie), escrito igual-

mente num registo entre o irónico e o desportivo, publicado na mesma

Berlinische Monatschrift, no número de Dezembro de 1796. Schlosser veio

a replicar também a este com um novo ensaio (Zweites Schreiben an einem

jungen Mann…, Lübeck/Leipzig, 1798), ao qual Kant já não daria resposta.

Se, no primeiro ensaio de Kant, diretamente visado é Schlosser e a sua interpretação místico-poética da filosofia platónica, também é verdade que o filósofo crítico pretende igualmente atingir de forma mais vasta toda uma recente forma de filosofar emergente na Alemanha por esses anos finais do século, a qual invocava a tutela do platonismo e era representada não só por Schlosser mas também por outros, como o Conde Leopold Stolberg (na «Introdução» à sua tradução do Fedro, Íon e Simpósio)24, e J. F. Kleuker (que traduzira ao alemão quase todos os diálogos de Platão)25. E, para além disso, pode considerar-se como sendo também visadas no en- saio kantiano outras filosofias emergentes na época de feição idealista, que afinavam pelo mesmo tom neoplatonisante de exaltação e dogmatismo es- peculativo, invocando, tal como aqueles “neoplatónicos”, ora a intuição intelectual ora o sentimento como formas diretas de acesso à verdade, o que, para Kant, representava a subversão completa da filosofia crítica e, a bem dizer, de toda a filosofia entendida como o paciente trabalho do con- ceito e da reflexão. Seriam assim visadas também, ao menos indiretamen- te, as filosofias de Jacobi e de Fichte. Por conseguinte, o ensaio de Kant é também uma defesa da sua própria filosofia crítica frente a todas as formas de pensamento romântico-idealista emergentes, que, engalanando-se com o nobre nome de filosofia, na verdade, protagonizavam uma farsa filosó- fica e anunciavam, segundo o filósofo crítico, mais propriamente a efetiva eutanásia da filosofia. Assim, o que proporcionou ocasião para o ensaio poderia bem considerar-se como um episódio de bem pouca importância 23. Ver KrV B 652-653 (AA 03:416): «...und es kann der guten Sache keinesweges schaden, die dogmatische Sprache eines hohnsprechenden Vernünftlers auf den Ton der Mässigung und Bes- cheidenheit eines zur Beruhigung hinreichenden, obgleich eben nicht unbedingte Unterwerfung gebietenden Glaubens herabzustimmen.» Se a circunstância para o ensaio de 1796 foi a referida obra de Schlosser, o mote que o inspira estava já dado neste passo da Crítica.

24. Auserlesene Gespräche des Platons, 1. Theil, Königsberg 1796 ( 2.u.3 Theile, 1797). Kant também cita deste a obra Reise in Deutschland der Schweiz, Italien und Sizilien, 2. Theil, 1794.

para poder perturbar a pacata velhice do Professor Kant e o ensaio mes- mo poderia ser visto como um mero escrito de circunstância na imensa produção literária do já septuagenário filósofo. Poderemos até achar estra- nho que o velho filósofo se desse ao trabalho de se ocupar com uma peça menor de literatura histórico-filosófica, como era a tradução proposta por Schlosser da Carta VII de Platão, acompanhada dos comentários interpre- tativos do tradutor. Na verdade, porém, tratava-se para Kant de defender a sua própria filosofia perante as ameaças percebidas no horizonte, onde se perfilavam já as palavras de ordem de um novo espírito do tempo – o do Romantismo e do Idealismo –, invocando, um, o sentimento, e o ou- tro, a intuição intelectual, como sendo as verdadeiras pedras-de-toque da filosofia. Defender a própria filosofia crítica significava também para Kant defender Platão, tal como este fora interpretado no âmbito daquela e, por essa via, também por ela e para ela de algum modo recuperado na sua genuína inspiração filosófica. Ora, o Platão, de que se reivindicavam como legítimos herdeiros e intérpretes também os novos filósofos da intuição intelectual e do sentimento, não era compatível com o Platão da filosofia crítica. Assim, no ensaio de 1796, ao mesmo tempo que são repisadas te- ses nucleares da filosofia crítica, são também revisitados os loci platonici da obra de Kant e recapitulados os principais tópicos da interpretação kantia- na do platonismo.26

O ensaio tem uma estrutura complexa, devida, quer ao seu estilo crítico e irónico (por vezes, raiando o sarcástico), quer aos comentários entremeados de textos de Schlosser, quer às digressões das longas notas, tudo isso à mistura com exposições-síntese de tópicos centrais da própria filosofia crítica e com interpretações de Platão (ou, associado a este, de Pitágoras). O fio condutor é o do confronto a vários níveis, que se entre- cruzam. Mas o ensaio é significativo (e original) já pelo seu título: pois que ele trata do tom em Filosofia.27 O tópico, como referido, sob a forma da 26. Assistia-se na época, sobretudo na Alemanha, a uma verdadeira redescoberta e intensa apropria- ção do pensamento platónico, para o que também Kant e alguns kantianos contribuíram de modo decisivo. Tenha-se presente, nomeadamente, a obra do kantiano Wilhelm Gottlieb Tennemann,

System der platonischen Philosophie, 4 Bde., Leipzig/Jena, 1792-1795. Sobre esse amplo movimento,

veja-se: Max Wundt, «Die Wiederentdeckung Platons im 18. Jahrhundert», Blätter für deutsche Philo‑

sophie, 15 (1941), pp.149-158; J.-L. Vieillard-Baron, Platon et l’Idéalisme allemand (1770‑1830), Paris:

Beauchesne, 1979; Jacques Taminiaux, La nostalgie de la Grèce à l’aube de l’Idéalisme allemand. Kant

et les Grecs dans l’itinéraire de Schiller, de Hölderlin et de Hegel, The Hague/La Haye:Martinus Nijhoff,

1967; e Werner Beierwaltes, Platonismus und Idealismus, Frankfurt am Main: V. Klostermann, 20042.

27. Veja-se o ensaio de Nuria Sánchez Madrid, «Filosofia, tom e música em Kant. Vivificação so- nora do ânimo e receção do tom da razão», in: Idem, A civilização como destino. Kant e as formas da

reflexão, cap. 2 (no prelo); Tommaso Tuppini, «La Metafora, la Libertà: Kant, Derrida e il Tono de-