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Guilherme de Moerbeke na encruzilhada do macromodelo político moderno

1. Nota Introdutória

No dizer de Harold J. Berman, João de Salisbúria, autor do Policrati‑

cus, é verdadeiramente o fundador da ciência política no Ocidente. Por

três razões, essencialmente. Uma primeira razão, por alimentar a visão pa- triarcal da monarquia, inspirada no direito divino dos reis (prenunciadora do absolutismo pessoal no século XVII); uma outra pela concepção da superioridade de uma lei, imperando sobre todo e qualquer governo (que prefiguraria a ideia da supremacia do poder judiciário segundo Sir Edward Filosofia & Atualidade: Problemas, Métodos, Linguagens, Lisboa, CFUL, 2015, pp. 49-72

Coke); e porque introduziu no pensamento europeu, pela primeira vez, uma perspectiva orgânica do poder secular (antepondo uma visão da co- munidade política fundada na natureza)1.

No século XII acentua-se a descoloração religiosa da lei; de facto, ao mesmo tempo que aumenta a importância do direito romano, começa a desintegrar-se o ideal de uma realeza litúrgica e o rei-autor das leis eclip- sará o rei-protector das leis dos séculos precedentes. Vai assim emergindo uma consciência crescente do carácter transpessoal ou «público» da comu- nidade (i.e., da res publica). João de Salisbúria chega mesmo a designar o príncipe persona publica ou potestas publica2.

E durante cerca de um século o Policraticus haveria de ser considera- do a obra revestindo maior autoridade sobre as questões do poder e do governo (surgiram então cerca de cem manuscritos), enquanto a filosofia política peripatética fora sendo inacessível3.

Com efeito, tal supremacia alterar-se-ia apenas com a tradução latina da Política de Aristoteles, realizada no decénio de sessenta, em pleno sé- culo XIII, pelo dominicano flamengo Guilherme de Moerbeke, primeiro da chamada translatio prior imperfecta (livros I-II, 11) e depois a tradução da obra integral (translatio perfecta) 4, bem como pelos respectivos e abundan-

tes comentários, que rapidamente surgiram5.

Na verdade, Guilherme de Moerbeke foi figura proeminente da trans‑

latio sutudiorum que, no final do século XIII, restitui a quase totalidade

do corpus aristotelicum ao Ocidente a partir do grego6. Contrariamente à

tradição mais tardia, segundo a qual Moerbeke teria realizado as traduções de Aristóteles a rogo de Tomás de Aquino (ad instantiam fratris Thome de 1. Harold J. Berman, 1983, Law and Revolution. The Formation of the Western Legal Tradition, Harvard University Press, pp. 276-286.

2. Vd. o nosso estudo, ROCHA MARTINS, A., 2013, «Origens teológicas do conceito moderno de soberania», in BERNARDO, Luís M. A., et alii (coord.), Representações da República, Famalicão, Edições Húmus, pp. 349-359.

3. Vd. LUSCOMBE, D., 1988, «Introduction: The Formation of Political Thought in the West» e «The Twelfth-Century Renaissance», in J. H. Burns (ed.), The Cambridge History of Medieval Political Thought, c. 350-c.1450, Cambridge, Cambridge University Press; MIETHKE, J., 1993, «Polistische Theorien im Mittelalter», in Hans-Joachim Lieber (hrsg.), Politische Theorien von der

Antike bis zur Gegenwart (Studien zur Geschichte und Politik 299), Bonn, pp. 47-156.

4. Vd. Aristoteles Latinus XXIX. 1, Politica: libri I‑II, 11 (translatio prior imperfecta), in MICHAUD- -QUANTIN, P., (ed.), 1961, Desclée de Brouwer, Bruges-Paris, pp. 3-56; SUSEMIHL, F., 1872, Aris‑

totelis Politicorum Libri Octo cum vetusta translatione Guilelmi de Moerbeka, Leipsiae.

5. Referimo-nos adiante e particularmente aos comentários à Política, compostos entre o fim do século XIII e o princípio do século XIV.

6. Uma sinopse da datação e das diferentes traduções que compõem o Corpus Aristotelicum pode ver-se em B.G. DOD, 1982, «Aristoteles Latinus», em KRETZMANN, N. – KENNY, A. – PINBORG, J. (ed.), STUMP, E. (assoc. ed.), The Cambridge History of Later Medieval Philosophy. From the Redis‑

covery of Aristotle to the Disintegration of Scholasticism, 1100‑1600, Cambridge, Cambridge University

Aquino), o estado actual da investigação permite afirmar – sem invalidar a

colaboração com Tomás – que ele visara rever todas as versões existentes da obra aristotélica e colmatar as lacunas com novas traduções, plano esse que de facto pôde realizar tornando-se, se não pioneiro, aquele que mais con- tribuiu para a criação de um Corpus Aristotelicum medieval. Por outro lado, além do texto aristotélico, a sua efervescente actividade tradutora contem- pla igualmente outros textos considerados fundamentais (v.g., Alexandre de Afrodísias, Galeno, Arquimedes, Eutóquio, Hipócrates, Proclo), e sem- pre a partir do grego, de tal modo que Gudrun Vuillemin-Diem, editora da tradução moerbekeana dos catorze livros da Metafísica (metaphysica nova) do Aristoteles Latinus, vê no tradutor flamengo aspectos que prenunciam o humanismo, motivo pelo qual apelida o frade dominicano «humanista»

ante litteram7.

O advento de Aristoteles no Ocidente Latino ocasionou, como sabe- mos, uma nova época mental, a formação de uma nova racionalidade. O século XIII, denominado em filosofia “século de ouro”, foi o século da referência tutelar de Aristóteles, então denominado «o Filósofo»8, citado

a todos os propósitos, criticado também com insistência e com não menos admiração9.

Van Steenberghen, conhecido estudioso belga, distingue três fases de assimilação do aristotelismo: o «aristotelismo ecléctico» (de Guilherme de Auvergne a Roberto Grosseteste, i.e., a primeira metade do século XIII); o «neo-aristotelismo moderado ou ortodoxo» (Alberto Magno e Tomás de Aquino); e o «neo-aristotelismo heterodoxo ou radical» (Sigério de Bra- bante e quejandos)10.

Não cabe aqui diferenciar as três fases; reconhece-se apenas que elas são concomitantes a uma atitude de crítica receptiva da obra do Estagiri- ta11. E por esta mesma razão desejaríamos acrescentar uma outra fase, a do

«aristotelismo político», motivada precisamente pela tradução da Política de aristotélica12. Pôde então completar-se o conhecimento do esquema tri-

7. BRAMS, J., 1993, La riscoperta di Aristotele in Occidente, (Eredità Medievale, 22) Editorial Jaca Book, Milano, p. 129.

8. Aristóteles é designado «o Filósofo» desde João de Salisbúria (Metalogicon, IV, vii). Mas é signi- ficativo como entre finais do século XIII e o século XV a iconografia deixa progressivamente de o representar como «o Filósofo» para o pintar mais como conselheiro político, eminência parda da vida quotidiana do Reino. Cf. CARVALHO, M. S. de, 2005, «Sobre as origens dos paradigmas modernos do universalismo e do individualismo», Revista Filosófica de Coimbra, 27, p. 59.

9. MEIRINHOS, J. F., 2005, «Comentar Aristóteles na primeira metade do século XIII. A Sententia

cum questionibus in De anima atribuída a Pedro Hispano», Revista da Faculdade de Letras – Série de Filosofia [Porto], 23, p. 127.

10. VAN STEENBERGHEN, F., 1991, La Philosophie au XIIIe siècle, Louvain-Paris, pp. 451 e ss. 11. CARVALHO, M. S. de, 1998, «A Idade Média terá sido aristotélica?», Hvmanitas, vol. L, p. 502. 12. Vd. BERTELLONI, F., 2000, «La tradición medieval prearistotélica y la formación de la ‘poli- tica’ como teoria a partir de 1265», Tópicos, 18, pp. 9-39; J. A. Martins, 2011, «Sobre as origens do

partido da philosophia practica em ethica individualis, oeconomica e politica. E foi a partir daqui que a teoria política medieval produziu bases para novas autonomias, passando a pensar o agir humano aquém (e além) da relação judaico-cristã e dos esquemas do pecado e da graça, da queda e da reden- ção – apesar das condenações oficiais do Bispo de Paris, Estêvão Tempier, e do Arcebispo de Canterbury, Robert Kilwardby13. Em síntese, como re-

conheceriam Alberto Magno, Rogério Bacon e Egídio Romano, a política fora até aí estudada e ensinada apenas “laicamente” (laicaliter) e não “filo- soficamente” (philosophice). Os juristas, comparados com os filósofos, não passavam de mechanici, de idiotae politici, limitando-se a proceder per modum

narrativum et sine arte, ao fazerem uso da política tal como os vulgares, (i.e.,

os laicos) faziam uso da lógica, ou seja, de forma pré-reflexiva, sem noção das suas leis14.

Lembre-se a acção capital de Boécio, que introduziu no Ocidente Latino o termo política como parte da philosophia practica. O esquema da diferenciação da philosophia practica, delegado por Boécio, prolongar-se-á até Hugo de São Vítor, sendo possível distinguir, nos sete séculos que me- deiam ambos os autores, duas tradições similares mas independentes ente si15. Numa como noutra o aspeto que mais se salienta é a identificação de

uma das partes da philosophia practica – a política – com um conteúdo textual concreto de ambos os direitos: as leges do direito romano (iura ciuilia) e os

decreta do direito canónico (iura canonica). Por outras palavras, as divisio‑ nes pré-aristotélicas da philosophia practica fazem situar o espaço da política

exclusivamente num enquadramento jurídico, muito distante do carácter

antropológico‑filosófico que a política reveste no ideário aristotélico16.

vocabulário político medieval», Trans/Form/Ação, Marília, v. 34, n 3, pp. 51-68. 13. Cf. VAN STEENBERGHEN, F., La Philosophie au XIIIe siècle…, pp. 411e passim.

14. FIORAVANTI, G., 1997, «La Politica aristotelica nel Medioevo: linee di una ricezione», Rivista

de Storia della Filosofia, Ano LII, Nuova Serie, 1, pp. 20-21.

15. Entre Boécio (séc. V-VI) e Hugo de São Vítor (séc. XI-XII) medeiam sete séculos, em cujo decurso podemos distinguir duas grandes tradições. Uma primeira, inaugurada justamente por Boécio, que articula a philosophia pratica nesta tripla divisão: cura sui (virtude), cura rei publicae e

dispositio rei familiaris. A segunda linha inicia-se logo depois de Boécio, com Cassiodoro, contem-

porâneo do autor de De consolatione philosophiae; prolonga-se através de Isidoro de Sevilha (séc. VI-VII), culminando em Hugo de São Vítor). Note-se que em Cassiodoro as partes da philosophia

prática são as seguintes: a moralis, que trata do mos vivendi e da virtude; a dispensativa, que se ocupa

com a dispositio da ordo domesticum rerum; e a civilis, identificada com a administratio da utilitas civi‑

tates. Por outras palavras, o princípio aristotélico da diferenciação das ciências foi delegado por

Boécio, Cassiodoro e Isidoro, confirmado pelo avanço do Aristoteles Latinus, em sede política. Cf. BERTELLONI, F., 1998, «El lugar de la politica dentro de la tripartición de la philosophia practica antes de la recepción medieval de la Politica de Aristóteles», Veritas (Porto Alegre), 43, pp. 563- 576; NEDERMAN, C. J., 1991, «Aristotelianism and the Origins of ‘Poltical Science’ in the Twelfth Century» Journal of the History of Ideas, 52, pp. 180-181.

16. Verificava-se uma equivalência semântica entre política e scientia legislativa ou legispositiva, uma vez que a sua única formulação válida encontrava-se estabelecida no Código, no Digesto e no Infor‑