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contra os Neoplatónicos

3. Kant, intérprete e advogado de Platão

Como foi dito, o ensaio confronta também duas interpretações da fi- losofia de Platão: a de Kant, segundo a qual a proposta de Platão, genuina- mente filosófica, se corretamente entendida, pode até ser recuperada pela filosofia crítica, e a do «neoplatónico» Schlosser e de outros «neoplatóni- cos», que macaqueiam Platão e dão da filosofia deste uma interpretação mística que promove a exaltação (Schwärmerei) sendo incapaz de reconhe- cer o seu genuíno alcance e valor filosófico. Do ponto de vista do assunto que diretamente nos ocupa aqui, o que sobretudo releva é este confronto entre duas interpretações do platonismo, a de Kant e a de Schlosser e de outros «neoplatónicos» afins. O filósofo crítico, que tinha a sua própria leitura do importante significado filosófico da proposta platónica e que estava mesmo convicto de ter entendido o profundo sentido filosófico da doutrina platónica das ideias melhor até, porventura, do que o próprio Platão o alcançara entender (KrV A 314/B370), considerava-se também au- torizado a discutir algumas interpretações do platonismo reeditadas na sua época, mas que na verdade se podem considerar de proveniência antiga, as quais remetiam o pensamento do fundador da Academia para formas de misticismo, de fanatismo exaltado e de dogmatismo especulativo, todas elas filosoficamente estéreis ou até mesmo nocivas para os verdadeiros in- teresses da razão e da própria humanidade.

O tópico da relação de Kant com Platão e com o Platonismo foi um dos cultivados pela interpretação neokantiana do Kantismo, sendo o Pla- tonismo e o Kantismo lidos aí preferentemente no âmbito de uma conce- ção de filosofia entendida sobretudo como «Erkenntnistheorie». Outros intérpretes houve, porém, que sublinharam a inspiração metafísica tanto da filosofia platónica como da kantiana, pondo em realce a afinidade entre ambos os filósofos também enquanto metafísicos. Outros, enfim, destaca- rão a originária inspiração ética de uma e outra filosofia. Não pretendo nem é possível reeditar aqui esses debates e confrontos hermenêuticos. Partindo do texto do ensaio de 1796, vou recapitular alguns dos principais

loci platonici da obra de Kant e identificar e interpretar a leitura que Kant

fazia de Platão e o que da filosofia platónica ele salva ou resgata e assume até na sua própria filosofia crítica. Por outras palavras: em que medida a filosofia crítica, sendo uma crítica do Platonismo, que é identificado re-

correntemente ora com o dogmatismo, ora até com o fanatismo exaltado (Schwärmerei) ou o misticismo, se apresenta também como uma radical- mente nova interpretação do Platonismo e, nesse sentido, representa ao mesmo tempo, histórica e filosoficamente falando, um efetivo resgate do seu núcleo filosófico mais importante – a doutrina das ideias –, não, por certo, como tendo um valor cognoscitivo do mundo inteligível, mas como tendo um inequívoco e indispensável valor ético-prático e também um não negligenciável significado estético e teleológico. Assim, da mesma forma que, na sua Resposta a Eberhard, Kant concluíra que, mais do que o pretenso fiel discípulo de Leibniz, é o filósofo crítico quem consegue ser o melhor intérprete das teses do filósofo da harmonia e da monadologia, assim ago- ra, contra Schlosser e outros «neoplatónicos», Kant mostra que aquele que melhor sabe identificar o real valor filosófico do platonismo é, na verdade, o filósofo crítico, o qual, pelo paciente trabalho da razão, desfaz as ilusões da metafísica e denuncia os vícios que se ocultam na invocação fácil da intuição intelectual e do sentimento como pedras-de-toque da verdade ou como credenciais para garantir o acesso a ela ou a posse dela.

Como acima disse, Kant encontra-se num momento de viragem no qual, por um lado, se deu um importante passo na recuperação do pen- samento platónico e do Platonismo na cultura filosófica alemã, antes de mais, através da apropriação dos escritos platónicos, processo que culmina na tradução da obra completa do corpus platónico levada a cabo por Sch- leiermacher (já precedida de outras tentativas mais ou menos extensas) e, ao mesmo tempo, pelo reconhecimento da identidade do Neoplatonismo como sendo uma filosofia com características próprias, a princípio apre- ciada negativamente como uma forma degenerada de filosofia eclética (Brucker) que oferecia uma interpretação deficiente do Platonismo, mas no final do século XVIII e princípios do século XIX reconhecida já, pelos grandes representantes do Idealismo alemão, como uma filosofia dotada de um alto poder especulativo e sistemático. Com a sua severa crítica aos «neoplatónicos» ou filo-neoplatónicos do seu tempo, Kant contribuiu para esta divisão de águas e, no seu caso, sem dúvida, mais para recuperar o significado filosófico do Platonismo do que para que se viesse a reconhe- cer o potencial especulativo e filosófico do Neoplatonismo antigo, que, enquanto tal e diretamente, estava relativamente fora do seu horizonte de interesses.

Apesar de não ser muito extenso, o primeiro ensaio contra Schlosser traz à liça quase todos ou mesmo todos os tópicos relevantes de debate de Kant com o pensamento de Platão. E nesse recorrente debate releva, em primeiro lugar, a tese da originária inspiração matemático-geométrica da filosofia platónica e a perversa passagem feita pelo filósofo antigo das matemáticas às ideias e ao mundo inteligível (metafísico). Essa origem ma- temático-geométrica é a verdadeira matriz do platonismo. E igualmente to-

dos os seus vícios arrancam dessa sua inspiração, a qual, todavia, segundo o filósofo crítico, labora num equívoco: o de pensar que o mundo das ideias metafísicas é da mesma natureza do das ideias matemáticas. Segundo Kant, as matemáticas são relativas ao mundo sensível, ao contrário do que pen- sava Platão. Ainda assim Platão teria visto com acerto que o significado das ideias e o seu alcance residiam sobretudo no plano prático. Kant propõe na verdade uma exposição genética da filosofia de Platão, como que res- pondendo à questão: O que é que Platão quis e qual a genuína inspiração geral da sua filosofia? Tudo na filosofia platónica decorre da interpretação do conhecimento geométrico e do que nele está envolvido. Isso já se podia ler numa famosa página da Introdução à KrV sobre a qual se passa muito rapidamente sem se advertir que é um dos principais loci platonici: aquele mesmo onde se diz que «a filosofia carece de uma ciência que determine a possibilidade, os princípios e a extensão de todo o conhecimento a priori». A questão é: porque é que a razão é impelida a ir com os seus conceitos para além do campo da experiência? A resposta é simples e óbvia: porque ela tem, num certo tipo dos seus conhecimentos ou ciências, uma feliz amostra do êxito dessa possibilidade, que a justifica nessa sua pretensão: a matemática. Ela sente-se assim autorizada a estender esse mesmo pro- cedimento aos objetos metafísicos, ao mundo supra-sensível das ideias da metafísica. Como se lê na Crítica:

«A matemática oferece-nos um exemplo brilhante de quanto se pode ir lon- ge no conhecimento a priori, independentemente da experiência. É certo que se ocupa de objectos e de conhecimentos, apenas na medida em que se podem representar na intuição. Mas facilmente se deixa de reparar nesta circ8nstância, porque essa intuição mesma pode ser dada a priori e, por- tanto, mal se distingue de um simples conceito puro. Seduzido (A: Encora- jado] por uma tal prova de força da razão, o impulso de ir mais além não vê limites. A leve pomba, ao sulcar livremente o ar, cuja resistência sente, poderia crer que no vazio melhor ainda conseguiria desferir o seu voo. Foi precisamente assim que Platão abandonou o mundo dos sentidos, porque esse mundo opunha ao entendimento limites tão estreitos e, nas asas das ideias, abalançou-se no espaço vazio do entendimento puro. Não reparou que os seus esforços não logravam abrir caminho, porque não tinham um ponto de apoio, como que um suporte, em que se pudesse firmar e aplicar as suas forças para mover o entendimento.» (KrV B 8-9)

Este passo da Crítica é como que explicitado no ensaio de 1796, como segue:

«Platão, tanto matemático quanto filósofo, admirava nas propriedades de certas figuras geométricas, por exemplo, do círculo, uma espécie de con- formidade finalística, isto é, uma aptidão para a resolução de uma multipli- cidade de problemas, ou uma multiplicidade de resolução de um e mesmo problema (como por exemplo, na doutrina da geometria espacial) a partir

de um princípio, exatamente como se as exigências para a construção de certos conceitos de grandeza fossem postos intencionalmente neles, embora deles se pudesse ter a priori uma visão (Einsicht) e uma prova como necessá- rias. Porém, conformidade finalística é apenas pensável mediante <referên- cia> do objeto a um entendimento como causa. Ora, como nós com nosso entendimento, enquanto faculdade de conhecer mediante conceitos, não podemos ampliar a priori o conhecimento além de nosso conceito (o que, contudo, na matemática efetivamente acontece): assim Platão tinha de ad- mitir para nós seres humanos intuições a priori, as quais, porém, não teriam a sua origem primeira no nosso entendimento (pois o nosso entendimento não é uma faculdade de intuir, mas somente uma faculdade discursiva ou de pensar), mas num entendimento que seria ao mesmo tempo o fundamento originário de todas as coisas, isto é, no entendimento divino, cujas intuições mereceriam então ser chamadas diretamente arquétipos (ideias). Mas a nos- sa intuição destas ideias divinas (pois nós teríamos de pelo menos ter uma intuição a priori, se quiséssemos tornar compreensível para nós a faculdade de proposições sintéticas a priori na matemática pura) nos teria sido conce- dida apenas indiretamente com o nosso nascimento, como a cópia (ectypa), por assim dizer o perfil de todas as coisas, que conhecemos sinteticamente a priori. Mas que ao mesmo tempo teria comportado um obscurecimento des- sas ideias mediante o esquecimento de sua origem: como uma consequência disso, o nosso espírito (doravante chamado alma) teria sido confinado num corpo, de cujos grilhões libertar-se gradualmente teria de ser agora a nobre ocupação da filosofia.» (AA 08:391)

Até aqui Kant retoma uma apresentação do pensamento de Platão que, quanto ao essencial, encontramos também na KrV (no já citado ca- pítulo sobre as “Ideias”). A exposição explicita-se numa longa nota, que merece ser transcrita:

«Em todas essas inferências Platão procede pelo menos consequentemen- te. Ele indubitavelmente pensava, embora de modo obscuro, a questão que apenas há pouco tempo se expressou claramente: “Como são possíveis pro- posições sintéticas a priori?” Se ele pudesse ter adivinhado naquele tempo o que apenas mais tarde foi encontrado – de que certamente haveria intui- ções a priori, mas não do entendimento humano, contudo sensíveis (sob o nome de espaço e tempo); que por isso todos os objetos dos sentidos são para nós meramente fenómenos, e que mesmo as suas formas, que pode- mos determinar a priori na matemática, não são as das coisas em si mesmas, mas formas (subjetivas) de nossa sensibilidade, que portanto valem para todos os objetos de uma experiência possível, mas não também para um passo adiante – assim ele não teria procurado a intuição pura (a qual ele precisava para tornar o conhecimento sintético a priori compreensível a si mesmo) no entendimento divino e nos seus arquétipos de todas as coisas como objetos independentes; e então por exaltação ter acendido a tocha. – Pois ele teve muito bem a visão de que se ele na intuição, que se encontra na base da geometria, quisesse afirmar que se pode intuir empiricamente o

objeto em si mesmo, então o juízo geométrico e toda a matemática seriam simples ciência da experiência; o que contradiz a necessidade que (ao lado da intuibilidade) justamente é o que lhe assegura uma posição tão elevada entre todas as ciências.» (AA 08:391-392)

Em suma: Platão viu bem o problema e pensou-o com consequência e coerência: o problema é o de como são possíveis proposições sintéticas a

priori. Mas foi a filosofia crítica que pela primeira vez formulou claramente

a verdadeira questão platónica e lhe deu uma solução que Platão não po- dia dar, pela razão que a seguir se expõe. Kant auto-inscreve-se assim e e inscreve a sua filosofia na linha da solução do problema platónico, como sendo aquele que pela primeira vez formula com clareza um problema com o qual Platão se ocupara e como aquele que apresenta para ele a solução que o filósofo antigo não estava em condição de poder dar. E isto pela razão de que, se o filósofo antigo percebeu bem como funcionava o pensamento matemático, interpretou erradamente a natureza deste e o nível da realidade – a ontologia – a que ele se refere: ele não se refere ao mundo inteligível, mas ao mundo sensível. A intuição que se invoca no pensamento matemático e geométrico não é uma intuição intelectual, mas uma intuição sensível, embora por certo a priori. Daqui as teses de Kant, opostas às de Platão: a geometria e a matemática são ciências do mundo sensível, que por certo supõem as intuições a priori do espaço e do tempo:

sensualium <igitur> datur scientia; intellectualium <autem> non datur scientia.

Só há, para os humanos, ciência das coisas do mundo sensível; mas não há para eles ciência dos objetos do mundo inteligível.

Num outro passo do ensaio, Kant interpreta a filosofia de Platão na linha inaugurada por Pitágoras: o filósofo ateniense fez com as figuras da geometria o mesmo que o filósofo de Samos fizera com os números da aritmética. E conclui:

«Portanto, era sobre a matemática que tanto Pitágoras quanto Platão filoso- favam, na medida em que eles consideravam todo o conhecimento a priori (quer contivesse intuição ou conceito) como algo intelectual, e mediante esta filosofia acreditavam encontrar um segredo onde não há segredo al- gum: não porque a razão possa responder a todas as questões concernentes a ela, mas porque seu oráculo emudece quando a questão se eleva a um ponto tão alto que não tenha mais nenhum sentido.» (AA 08:392-393)

É dessa matriz matemático-geométrica e da ilusão que ela proporcio- nava de uma possibilidade de extensão indefinida do conhecimento que decorre o erro original dos dois filósofos antigos: o de estenderem à filoso- fia o que haviam descoberto nas matemáticas e de procederem em relação aos objetos metafísicos como se procede em relação aos matemáticos. E, da mesma forma; o de pensarem que a alma tem acesso direto aos arquétipos das coisas, à essência destas. Isso seriam precisamente as ideias. É esse livre-

-trânsito entre matemática e filosofia (metafísica) que está na base de todo o dogmatismo (e que fomenta também toda a exaltação e o misticismo): a pretensão de conhecer as coisas em si e de ter um conhecimento do mundo hiperfísico ou das realidades do mundo inteligível ou do mundo supra-sensível. Kant ocupou-se amiúde em apontar e denunciar esse erro. A Crítica da razão pura tem isso como viso principal (KrV B 740-766).

Um outro importante lugar platónico da obra de Kant é aquele em que o autor da KrV procede a uma singular interpretação das ideias de Pla- tão, resgatando-as e recuperando-as para a sua filosofia crítica, mas mudan- do-lhe a função e a natureza (segundo eram tidas na tradição filosófica). Esse passo é bem significativo pelo seu conteúdo e pela forma: isto é pelo que revela do modo como Kant interpreta e se relaciona com a filosofia platónica (o seu principal tópico) e pelo que nela substantivamente valori- za e aprecia. É bem conhecido o passo da Crítica, mas não será descabido citá-lo:

«Platão servia-se da palavra ideia de tal modo que bem se vê que por ela en- tendi algo que não só nunca provém dos sentidos, mas até mesmo ultrapassa largamente os conceitos do entendimento de que Aristóteles se ocupou, na medida em que nunca na experiência se encontrou algo que lhe fosse correspondente. As ideias são para ele arquétipos das próprias coisas e não apenas chaves de experiências possíveis, como as categorias. Em sua opinião derivam da razão suprema, de onde passaram à razão humana, mas esta já não se encontra no seu estado originário, e só com esforço pode evocar pela reminiscência (que se chama filosofia) essas antigas ideias agora muito obscurecidas.» (KrV B 370)

E prossegue:

«Não pretendo aqui empreender uma investigação literária para apurar o sentido que o siblime filósofo atribuía à sua expressão. Observo apenas que não raro acontece, tanto na conversação corrente, como em escritos, compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre o seu objecto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque não determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por evzes, falou ou até pensou contra a sua própria intenção.» (KrV B 370)

E depois desta consideração geral de hermenêutica filosófica, segue a interpretação:

«Platão observou muito bem que a nossa faculdade de conhecimento sente uma necessidade muito mais alta que o soletrar de simples fenómenos pela unidade sintética para os poder ler como experiência, e que a nossa razão se eleva naturalmente a conhecimentos demasiado altos para que qualquer objeto dado pela experiência lhes possa corresponder, mas que, têm a sua realidade e não são simples quimeras. Platão encontrava as suas ideias prin- cipalmente em tudo o que é prático, isto é, que assenta na liberdade, a qual,

por seu turno, depende de conhecimentos que são um produto próprio da razão… Assim é a ideia de virtude.» (KrV B 371)

Por conseguinte, as ideias para Platão têm um campo imediato e justo de aplicação que é o plano ético. Mas é claro que Kant sabe bem – observa- -o numa nota – que o filósofo antigo «estendeu também o seu conceito aos conhecimentos especulativos, desde que fossem dados puros e completa- mente a priori, e mesmo à matemática, embora esta não tivesse o seu objeto noutra parte que não fosse a experiência possível.» Mas aí o filósofo crítico distancia-se do filósofo antigo, dizendo:

«Não posso segui-lo nisso, nem tão pouco na dedução mística dessas ideias ou nos exageros pelos quais, de certa maneira, as hipostasiou; se bem que a linguagem elevada, de que se serve nesse campo, seja perfeitamente suscetí- vel de uma interpretação mais moderada e adaptada à natureza das coisas.» (KrV B 371)

Na mesma linha, como já vimos, por várias vezes ao longo do ensaio de 1796, Kant desculpa Platão até de seus erros (que assim minimiza), pre- ferindo sublinhar o seu genuíno mérito e assacando antes a exageros ou arroubos de linguagem os seus excessos, os quais seriam porém agravados pelos seus seguidores e nestes por certo já sem o talento filosófico do no- bre antepassado que invocam. E assim escreve, apontando, uma pequena mas incomensurável diferença entre Platão e os novos platónicos como Schlosser:

«Platão, o académico, foi, embora sem culpa sua, o pai de toda a exaltação na filosofia (pois ele usou as suas intuições intelectuais só regressivamen- te, para explicar a possibilidade de um conhecimento sintético a priori, e não progressivamente, para ampliá-lo mediante aquelas ideias legíveis no entendimento divino. Mas eu não gostaria de confundir o Platão das Cartas (recentemente traduzidas ao alemão) com o primeiro. Este quer, além “das quatro coisas pertencentes ao conhecimento: o nome do objeto, a descri- ção, a exposição, e a ciência, ainda uma quinta [roda do carro], a saber, ainda o próprio objeto e o seu verdadeiro ser.” (AA 08:398)

E Kant cita Schlosser, expondo a experiência platónica:

“Ele <como filósofo exaltado> pretende ter apreendido essa essência imu- tável, que somente se deixa intuir na alma e pela alma e que nesta, porém, acende por si mesma uma luz como uma centelha que saltasse do fogo; do que ao mesmo tempo não se poderia falar, pelo menos ao povo, pois quem o fizesse imediatamente seria convencido da sua ignorância: pois toda a tentativa dessa espécie já seria perigosa, em parte pelo facto de que essas elevadas verdades <seriam> votadas a um grotesco desprezo, em parte pelo facto <que é aqui o único racional> que se permitiria à alma ser excitada por vãs esperanças e pela presunçosa ilusão de conhecimento de grandes segredos.” (AA 08:398)

Mas perante tal apresentação do platonismo feita pelo discípulo de Platão, o filósofo crítico pergunta:

«Quem não vê aqui o mistagogo, que não se exalta simplesmente por si mas ao mesmo tempo é um clubista [Klubbist] e, enquanto fala aos seus adeptos, torna-os distintos [vornehm] com sua pretensa filosofia, em contra-