• Nenhum resultado encontrado

Ecos imediatos e mediatos da Política – a «comunidade política» Entre Alberto Magno e Tomás de Aquino, os primeiros comentadores

Guilherme de Moerbeke na encruzilhada do macromodelo político moderno

4. Ecos imediatos e mediatos da Política – a «comunidade política» Entre Alberto Magno e Tomás de Aquino, os primeiros comentadores

da Política, como sabemos, desenham-se linhas de continuidade mas tam- bém diferenças teoréticas.

Se tomarmos como indicação a pars prooemialis do Commentarium in

Octo Libros Politicorum Aristotelis, observamos que Alberto Magno, referindo

os livros IV e VI da Ética, explica o aparecimento do termo «política» de acordo com as divisiones da philosophia pratica (in seipso, in domo et in civi‑

tates). A Política dá a conhecer a «política», que é parte imprescindível da

virtude (sufficientia moralis doctrina), da felicidade moral e contemplativa (utraque felicitas, moralis scilicet et contemplativa). O termo «política» corres- ponde assim à realização da comunidade civil segundo a ordem do recto e do justo (communicatio civilis secundum ordinem recti e justi). Depois, no desenvolvimento do seu comentário, entre «cidade» (civitas) e «comuni- dade» (communicatio), Alberto insiste sobretudo na ideia de comunidade. Esta é não só naturalissima como é também condição da própria cidade (propter quod omnis civitas)55.

Referindo particularmente o livro VIII da Ética, distingue entre duas espécies de comunidade, geradoras de uma terceira: 1. a comunidade do-

52. VERBEKE, «Moerbeke, traducteur et interprète…», pp. 8-9 e passim.

53. LAGARDE, G. (1958), La Naissance de L’Esprit Laïque au déclin du Moyen Age. Secteur Social de la

Scolastique, vol. 2, Louvain-Paris, p. 16.

54. LAGARDE, G., 1970, La Naissance de l’Esprit Laïque…, p. 306.

55. ALBERTO MAGNO, Commentari in Octo libros Politicorum Aristotelis, BORGNET, A. (ed.), 1891,

méstica explica-se porque o homem é naturalmente um animal conjugal; 2. a comunidade com base na amizade (philanthropia), constituída seme- lhantemente à amizade do pai pelo filho e do filho pelo pai; 3. a comuni- dade política, ou civil, que se ocupa primordialmente da justiça56.

E são ainda quatro os aspectos que caracterizam a comunidade políti- ca: 1. é auto-suficiente (sufficientissima), 2. é natural (naturalissima) porque é condição da própria cidade (propter quod omnis civitas); 3. é, por isso, an- terior à cidade (prius itaque civitas); 4. e visa o melhor dos bens: a justiça57.

De facto, explica-nos Alberto, todo a comunidade visa a suficiência da vida e da vida boa pela qual justamente é ordenada segundo a justiça, tornando-se expressão política da justiça. É neste sentido que toda a comu- nidade reúne e compreende todas as outras, visto ser auto-suficiente (su‑

fficientissima et perfectissima). Vida boa (bene vivere) e vida segundo a justiça

são, pois, termos equivalentes. Por isso, pôde Avicena dizer, nota Alberto, que uma vida só é a pior vida que se pode ter. Sem os outros não há comu- nidade e sem comunidade não há vida boa nem justiça. Mas é também por isso que a comunidade, ao mesmo tempo que é auto-suficiente e perfeita, tem primazia sobre a cidade. Citando o primeiro livro da Metafísica, Alber- to afirma que o fim não está subordinado senão a si mesmo, pelo que a comunidade civil, sendo a última determinação do homem, é igualmente a primeira de todas as determinações teleológicas. Com efeito, o fim está sempre de acordo com a natureza (finis est sempre natura), pelo que nada é mais natural ao homem do que a comunidade civil, que é a determinação teleológica mais elevada de todas, onde os diferentes indivíduos, além de partilharem algo, estão em interacção, complementando-se58. É assim que

a comunidade civil é naturalissima no homem. E é assim que homem é por natureza um animal civil, e não incivilis, que significaria uma natureza deficiente, comparável à das aves de rapina, como as águias, os acípitres e os falcões, que corrompem a comunidade natural das aves. Como também diriam Boécio e Homero, seria infinitamente espantoso e inaudito admitir

56. Et communicatio domus generatione prima est, et est naturalis homini secundum naturam qua homo conjugale animal est: et communicatio vici secunda communicatio est: et est item na- turalis homini secundum quod homo per philanthropiam conjungitur suis. Dicit enim in VIII

Ethicorum, quod ‘pater propinquor est filio quam filius patri:’ eo quod pater aliquid sui habet in

filio, filius autem nihil sui habet in patre. Ex his autem duabus communicationibus generatur tertia...» (ALBERTO MAGNO, Commentari in Octo libros Politicorum..., p. 12a).

57. «Primo, quod est suficientíssima... Secundo quod est naturalissima; Tertio quod secundum na- turam est prima [...] Quarto quod optimorum bonorum gratia est instituta. (ALBERTO MAGNO,

Commentari in Octo libros Politicorum..., p. 12b).

58. «Et hoc dicit Aristoteles, ibi [I Metaphysica], Finis enim, ipsa scilicet communicatio est illarum, scilicet communicationum. Finis autem semper natura est (et est natura ablativi casus): nihil enim est ita naturale sicut finis uniuscujusque: quia in hoc est complemendum, unde in vita hominis ni- hil est ita naturale sicut communicatio civilis, quia finis est et communicationum omnium comple- mendum: hoc enim dicimus naturam uniuscujusque, in quo complemendum sui est». (ALBERTO MAGNO, Commentari in Octo libros Politicorum…, p. 13a)

a superioridade da pior das partes; o homem tornar-se-ia então uma natu- reza destituída, ferida na racionalidade59.

Em síntese, o “homem é um animal civil” porque tende naturalmente, e teleologicamente, para a comunidade civil, que subordina tudo o resto.

Na continuação do seu comentário, Alberto, quanto fidelius, manter- -se-á constantemente cingido e fiel ao texto aristotélico. É a comunidade que produz a cidade (et prius itaque civitas). A comunidade civil possui prio- ridade de natureza, de tal modo que, onde não há comunidade, também não há singularidade60. O elemento fundamental da comunidade é a justi-

ça; são os homens justos (dίkaios) que compõem toda a comunidade civil

(civilis communitatis), porque só eles comunicam através da justiça (dίke)

civil. Díkaios, recorda Alberto, significa justo juízo (justi judicium)61.

A política não é ordenável senão segundo a justiça. Onde a justiça não existe, reinam os bárbaros62. Colocada a questão nestes termos, isto é,

visto que a comunidade política é a forma que é melhor para os que são capazes de viver de modo mais conforme ao que desejam e que, por isso mesmo, ela reveste prioridade de natureza face à cidade 63, importa exami-

nar as constituições, pois são estas que vão conferir a uma polis/cidade a sua identidade específica. Quando o quadro constitucional muda, a polis já não é a mesma, especificamente, mantendo, contudo, a unidade genéri- ca polis. Por outras palavras, a respectiva constituição torna-se o elemento fundamental da cidade.

Sem nos determos nas diferentes tipologias de Aristóteles, referidas por Alberto Magno, importa fazer notar a permanecência deste critério po- lítico aristotélico no comentário de Alberto. É assim que, depois de aludir à tensão entre os dois significados principais de cidade, ou seja, enquanto comunidade dos residentes (civis secundum quid) e enquanto comunidade política (civis simpliciter), Alberto sublinha que a forma da cidade é a forma da comunidade, alterando esta o ser daquela64. A comunidade é, assim, o

59. ALBERTO MAGNO, Commentari in Octo libros Politicorum..., p. 13b.

60. Et ex hoc concludit, quod impeditur commune et communicatio, ibi, Quare omnes similiter

negligent, supple, eo quod nullum singulariter pertinet». (ALBERTO MAGNO, Commentari in Octo libros Politicorum..., p. 97a).

61. «E contra autem justitia efficitur civile: et hoc probatur per primos impositores nominum: illi enim ab antiquo dicebantur δίϰαιοι: δίϰαιοι enim dicuntur civilis communitatis homines: et hoc no-

mine vocantur, quia per justitiam communicant, et δίϰη civilis communicationis ordo est. Δίϰαιοϛ

autem justi judicium est.» (ALBERTO MAGNO, Commentari in Octo libros Politicorum..., p. 15b).

62. «Non est politia, quae non sit ordinabilis legibus justitiae, sicut sunt barbarorum civitates.» (ALBERTO MAGNO, Commentari in Octo libros Politicorum..., p. 91b).

63. É de referir que Aristoteles distingue entre prioridade genética (ghenesei proteron) e prioridade de natureza (physei proteron). Vd. RIEDEL, M., 1975, Metaphysik und Metapolitik…, p. 57.

64. «[…] forma enim civitatis forma communicationis est, quae dicitur politia. Politia enim, sicut parum ante dixit, ordo civium est: et ideo secundum differentiam harum formarum videntur habere differentiam formalem.» (ALBERTO MAGNO, Commentari in Octo libros Politicorum..., p. 213a-b).

critério que determina a identidade da cidade.

Em síntese, salientando o valor da comunidade, Alberto Magno dis- tingue e preserva, talvez sub-repticiamente, isto é, pensando ele próprio através do texto de Aristóteles, proporcionado por e nos termos de Gui- lherme de Moerbeke, os critérios pré-político e político, orientado a carac- terização da cidade, constituída pela comunidade, sobretudo para a «cons- tituição». Para Alberto, tal como para Aristóteles, uma da racionalidade prática, constitutiva da vida feliz, só pode exercer-se num contexto social e político.

Considerados estes aspectos do comentário à Política de Alberto Mag- no, vejamos, agora, o respectivo comentário de Tomás de Aquino.

Como é sabido, a obra Sententia libri Politicorum, redigido entre 1268 e 1271, é um dos textos propriamente políticos da última fase da vida de To- más de Aquino65, ao lado da I pars da Summa theologiae (1268) e do De regno

(1271-1273), em todos eles aludindo à sociedade e à política.

Reportando-se à Ethica Nicomacheia, Tomás de Aquino começa por afirmar que, visando por si a suficiência da vida boa (civitatis ordinata ad

per se sufficientia vitae humanae), a cidade é a mais perfeita das comunida- des humanas (inter omnes communitates humanas ipsa est perfectissima). Na continuação caracteriza a «política» em quatro pontos: 1. é uma ciência complementar da filosofia sobre a cidade, e por isso pode chamar-se pro- priamente ciência civil (civilis scientia); 2. é uma ciência prática porque versa sobre o agir, tal como deliberar, eleger, querer e outros actos semelhantes; 3. é a ciência arquitectónica entre as demais ciências práticas porque visa naturalmente o bem do homem, tal como naturalmente a cidade precede todas as comunidades humanas; 4. é a ciência que considera a cidade a par‑

tir dos singulares que a compõem66. Porque a cidade reveste uma prioridade

natural sobre as suas partes e porque a cidade não é senão a congregação dos homens segundo a natureza, o homem é naturalmente um animal ci- vil (cum civitas non sit nisi congregatio hominum, sequitur, quod homo sit animal naturaliter civile)67.

Vemos, assim, que o ponto de partida reflexivo de Tomás de Aquino é muito diferente do de Alberto Magno. Enquanto o Alberto acentua o valor da comunidade, sem a qual a cidade não pode existir, Tomás toma como referência a cidade, orientado a caracterização da política para as respecti- 65. Usamos aqui a Edição de Marietti: S. Tomae Aquinatis, Doctoris Angelici, In Libros Politicorum

Aristotelis Expositio, Introductio Editoris: Hoc in libros tantum I-III, lect. 6 fecimus, qui ad S. Tho-

mam pertinent; reliquae Commentarii partis, quae a Petro de Alvernia finem habuit. S. Thomas in suo opere explendo a Guillelmo de Moerbeke de Brabantia, p. xxiv, Marietti, Taurini-Romae, 1966. Na Edição Leonina, este texto intutula-se: Sententia libri Politicorum, Opera omnia, iussu Leonis XIII edita, T. XLVIII, Romæ, ad s. Sabinae, 1971.

66. TOMÁS DE AQUINO, In Libros Politicorum Aristotelis Expositio, Marietti, Taurini-Romae, 1966, pp. 1-2 [Prooemium].

vas “partes” da cidade, isto é, os cidadãos68.

É assim que a cidade vai polarizar o desenvolvimento do comentário de Tomás de Aquino. Cidade não difere de comunidade. Melhor, a comu- nidade está inserida na cidade. A cidade forma-se a partir da comunidade doméstica (communitate domus), passando pelos vizinhos (vici)69. Diz-se que

uma comunidade é uma comunidade perfeita quando se organiza em fun- ção das necessidades da vida e do bem viver. E tal comunidade equivale à cidade70. Ou seja, a cidade, incluindo todas as comunidades por razões

associadas à manutenção da vida, é a principal comunidade política. Ora, como referimos, em Aristóteles só parcialmente podemos falar de uma exacta equivalência entre ambos os termos. Socialmente, a cidade determina a comunidade; politicamente, a comunidade determina a cidade.

Com efeito, é no domínio da comunidade, enquanto forma da cida- de, que se estabelece o nexo com o político mediante a participação dos cidadãos no “governo” (politeuma) e a procura do regime mais favorável à vida virtuosa e feliz, domínio esse que Alberto distingue e Aquino circuns- creve à cidade e à boa conservação da vida.

Na definição do homem como animal civil (homo est naturaliter animal civile), Tomás de Aquino substitui, portanto, o critério «político» pelo cité-

rio «pré-político». A naturalidade civil do homem decorre da naturalidade da cidade, que é de facto uma forma peculiar da sociedade. Neste sentido, o «político» converte-se em «civil», isto é, social. É por isso que os cidadãos (cives), e não as formas de governo (species principatus), constituem o ele- mento primordial da cidade (civitas), de dal modo que conhecer os cida- dãos significa conhecer a cidade71.

O homem é naturalmente um animal civil porque deseja viver co- munitariamente e não solitariamente. Levar uma vida política (vita civilis) significa participar na vida social (vitae socialis), segundo duas ordens de razão: 1. para viver bem (bene vivere), uma vez que viver bem é o fim primor- dial da cidade ou de qualquer comunidade política: 2. e porque a vida em comum é útil até para o viver próprio (utilis est vita communis etiam propter

ipsum vivere), pois aqueles que dela participam ajudam-se mutuamente no

sustento da vida e contra os perigos da morte. Pelo que a conservação da 68. «[...] sic et haec scientia principia et partes civitatis considerans de ipsa notitiam tradit, partes et passiones et operationes eius manifestans: et quia practica est, manifestat insuper quomodo singula perfici possunt: quod est necessarium in omni practica scientia.» (TOMÁS DE AQUINO,

In Libros Politicorum Aristotelis..., p. 6).

69. TOMÁS DE AQUINO, In Libros Politicorum Aristotelis..., p. 9.

70. «[...] civitas est communitas perfecta: quod ex hoc probat, quia cum omnis communicatio omnium hominum ordinetur ad aliquid necessarium vitae, illa erit perfecta communitas, quae ordinatur ad hoc quod homo habeat sufficienter quicquid est necessarium ad vitam: talis autem est communitas civitatis.» (TOMÁS DE AQUINO, In Libros Politicorum Aristotelis..., p. 10). 71. TOMÁS DE AQUINO, In Libros Politicorum Aristotelis..., p. 136.

sociedade política significa igualmente a conservação da vida72.

Em síntese, pensamos que Tomás de Aquino considera os cidadãos como elemento primordial da cidade, orientando-se, por isso, para a ca- racterização social do homem. Já Alberto Magno privilegia a comunidade, cuja diversidade confere à cidade a sua identidade específica. Podemos, portanto, dizer que os respectivos comentários oferecem uma visão com- plementar da Política aristotélica.

Mas, entretanto, o debate prossegue, fazendo avançar o ideário aris- totélico e inspirando rapidamente inúmeros outros comentários73, bem

como tratados políticos – estes de cariz mais doutrinal, visando respon- der a questões políticas do momento – com o decisivo contributo, entre outros, além de Alberto Magno, Tomás de Aquino e Pedro de Auvergne, de Nicolau Oresme, Egídio Romano, Guilherme de Ockham, Marsílio de Pádua, João Buridano, Guido Vernani74.

De tal modo estes autores foram sensíveis à influência peripatética que, independentemente do sentido que tenham dado à doutrina política aristotélica, por exemplo, a naturalidade da cidade, a origem do Estado, a 72. «[…] quod dictum est in primo libro, in quo determinatum est de oeconomia et despotia, quod homo naturaliter est animal civile; et ideo homines appetunt adinvicem convivere et non esse solitarii, etiam si in nullo unus alio indigeret ad hoc quod ducerent vitam politicam: sed tamen magna utilitas est communis in communione vitae socialis… Primo quidem quantum ad bene vivere: ad quod unusquisque affert suam partem, sicut videmus in qualibet communitate, quod unus servit communitati de uno officio, alius de alio, et sic omnes communiter bene vivunt. Hoc igitur, scilicet bene vivere, maxime est finis civitatis vel politiae et communiter quantum ad omnes et sigillatim quantum ad unumquemque. Secundo utilis est vita communis etiam propter ipsum vivere, dum unus in communitate vitae existentium alii subvenit ad sustentationem vitae et contra pericula mortis. Et propter hoc homines ad invicem conveniunt et conservant politicam communionem, quia etiam ipsum vivere secundum se consideratum absque aliis quae faciunt ad bene vivendum est quiddam bonum et diligibile, nisi forte homo in vita sua patiatur aliqua valde gravia et crudelia». (TOMÁS DE AQUINO, In Libros Politicorum Aristotelis..., p. 137).

73. O trabalho sistemático sobre a recepção da Política de Aristóteles na Idade Média iniciou-se com a obra de CFLÜELER, C., 1993, Rezeption und Interpretation der Aristotelischen Politica im späten

Mittelalter, Amsterdam–Philadelphia; presentemente desenvolve-se em estudos de especialistas tais

como: M. RIEDEL, J. DUNBAIN, F. BERTELLONI, D. LUSCOMBE, C. NEDERMAN, G. FIORA- VANTI, R. LAMBERTINI, J. R. PIERPAULI, J. SCHMIFT... Um por todos: LUSCOMBE, D., 1997, «Commentaries on Politics: Paris and Oxford, XIII-XVth Centuries», in L. Holtz — O. Weijers (eds.), L’enseignment des disciplines à la Faculté des Arts. Paris et Oxford, XIIIe‑XVe siècles, Bre- pols, Turnhout, pp. 313-327.

74. A tradução latina da Política de Aristóteles inspirou rapidamente inúmeros comentários e tra- tados políticos. Entre os primeiros, cabe referir os de Alberto Magno, Tomás de Aquino e Pedro de Auvergne, um anónimo (Bibl. Ambrosiana, Ms. A 100 Inf.), o Compenditun philosophiae do monge bebeditino Engelberto de Admont, uma Lectura de Sigerio de Brabante (perdida) e três outros anónimos. Já no século XIV deverão mencionar-se os de: Walter Burleigh, Guido Vernani de Rimini (1324-30), Henrique Totting de Oyta, João de Legnano (c. 1320-83), João Vath (XIII- -XIV), João de Praga (XIV), Nicolau Oresme (1371-4), Nicolau de Waudemont (1379-87), Paulo de Veneza (c. 1387-90). Entre os tratados políticos, importa mencionar os nomes de Egídio Roma- no (De regime principium), Marsílio de Pádua (Defensor Pacis) e Bártolo de Sassoferrato (De regime

definição de cidadão, a distinção entre virtude ética e virtude política ou a autonomia política e do Estado, tornou-se claro que foi com entusiasmo que eles descobriram no texto grego a ideia de que, se o «Homem era uma animal político e civil», isso ficava-se a dever ao facto de se encontrar na na- tureza uma sede de justiça e de comunicação com o ‘outro’ cuja satisfação apenas seria facilitada pela sociedade política75.

É assim que a acção de Guilherme de Moerbeke, traduzindo, inter- pretando, inovando semanticamente, figura como pensamento matricial nos debates posteriores, positivamente mas também negativamente.

Entre aqueles que mais fortemente reagiram ao trabalho do tradutor flamengo, cabe mencionar alguns humanistas de Quatrocentos, à cabeça dos quais Leonardo Bruni, que traduziu, em 1438, a Política de Aristóte- les para latim (à época, a segunda tradução da Política a partir do gre- go). Insurgindo-se contra os «barbarismos» de muitos dos textos latinos de Aristóteles, proponha-se, agora, torná-los «verdadeiramente latinos» e restituir-lhes a sua «originária pureza e elegância». O humanista de Are- zzo, admirador da retórica ciceroniana, indica expressamente o nome de Roberto Grosseteste, apontando o exemplo de transliterações como eutra‑

pelia, bomolchia (vocábulos então comuns), ou democratia e politica. Depois,

apontando a tradução moerbeckena da Política, interroga: «Que dizer das palavras em grego, que são muitíssimas, a ponto de a sua tradução parecer semigrega? E afirma: «No entanto, nada foi dito em grego que não possa ser dito em latim»76. Bruni, que já traduzira a Ética (1418), defende, peran-

te a tradução de Moerbeke, que se adoptem os seguintes termos: optima‑

tes, em vez de aristocratia; paucorum statum, em vez de oligarchia; populorum statum, em vez de democractia; respublica, em vez de politica. São palavras de

Leonardo Bruni:

Enim vero, quorum optima habemus vocabula, ea in greco relinquere igno- rantissimum est. Quid enim tu mihi «politiam» relinquis in greco, cum possis et debeas latino verbo «rem publicam» dicere? Cur tu mihi «oligarchiam» et

«democratiam» et «aristocratiam» mille locis inculcas et aures legentium insua-

sissimis et ignotissimisque nominibus offendis, cum illorum omnium opti- ma et usitatissima vocabula in latino habeamus? Latini enim nostri «pauco‑

rum potentiam» et «popularem statum» et «optimorum gubernationem» dixerunt. Vtrum igiturhoc modo Latine praestat dicere, anuerba illa, ut iacent, in Graeco relinquere?77

75. LAGARDE, G., 1970, La Naissance de l’Esprit Laïque…, vol. 3, p. 306.

76. «Quid de uerbis in Graeco relictis dicam, quae tam multa sunt, ut semigraeca quaedam eius interpretatio uideatur? Atqui nihil Graece dictum est, quod Latine dici non possit!» (LEONARDO BRUNI, «De interpretatione recta», BARON, H., (ed.), 1969, Leonardo Bruni Aretino Humanist‑

tisch‑Philosophische Schrifen, reprint Wiesbaben, M. Sandig, 1969, pp. 86-90 e 95).

77. BRUNI, «De interpretatione recta», § 43: «É claro que é da máxima ignorância deixar em grego vocábulos para os quais temos óptimos vocábulos. Com efeito, porque me deixas em grego

Bruni propõe ainda a que se substitua communicatio politica por civilis

societas78.

Este momento ficou registado por ser a primeira vez, após a viragem aristotélica, em que aparece textualmente a expressão civilis societas, moti- vo pelo qual podemos dizer que o conceito de «sociedade civil» também foi verdadeiramente cunhado no trabalho da recepção da Política. Em abono da verdade, importa dizer que Egídio Romano, por volta de 1279, empregara já a expressão societas civilis como sinónimo de civitatis; todavia, ela, neste momento, não pôde vingar. Eis por que, neste contexto, é em Bruni que o sintagma aparece. Não pode dizer-se, no entanto, que tal cor- responda a uma inovação semântica, visto esta expressão provir de Cícero e em especial de Santo Agostinho79.

Em síntese, o propósito de Bruni de substituir a nova terminologia latina revelou-se claramente infrutífero, pois não só não gozou de acolhi- mento particular entre os seus próprios contemporâneos como estes con- tinuariam a fazer passar os termos cunhados no século XIII.

A posição de Bruni, com efeito, suscitaria imediatas reacções. Alfonso