• Nenhum resultado encontrado

É costume argumentar que a atitude de Kant em relação à interferên- cia do Estado na liberdade do indivíduo e em relação ao papel da religião nesta relação é, no mínimo, ambígua. Por um lado, em várias ocasiões, Kant manifesta de facto a esperança de que o soberano não se torne invasi- vo como um tirano20 e refere-se à pura racionalidade para minar o modelo da “lei natural” utilizado pelos conservadores. Por outro lado, no entanto, Kant nunca toma uma posição explícita contra a censura (da qual ele mes- mo é vítima). Esta ambiguidade pode ser em parte esclarecida conside- rando que ele vive entre os reinados de dois importantes réis prussianos: 18. Cf. I. Kant, MdS, GS 6, p. 337 e Nachlass (Vorarbeiten zu: Die Metaphysik der Sitten), GS 23, pp. 347-348.

19. G. W. F. Hegel, Grundlinien, TWA 7, §§ 270 (nota), 282.

Frederico o Grande, que controlando o Oberkonzistorium tinha garantido o apoio da autoridade religiosa para as políticas estaduais, e Frederico Gui- lherme II, cujo ministro da educação J. C. Wöllner, a partir de 1786, tinha acentuado ainda mais a política conservadora. Kant, no entanto, está bem consciente dos riscos decorrentes da politização da religião pelo Estado, como se torna claro recorrendo ao exemplo no texto Resposta à pergunta:

Que é o Iluminismo?21.

A fé religiosa será reconhecida come um instrumento de emancipa- ção da consciência do dogmatismo, não apesar de mas exatamente como fé «reflexionante» [reflektierend]22, ou seja, uma fé baseada no reconhecimen- to por parte do homem dos seus próprios limites e na consciente assunção da responsabilidade na qual se traduz a moralidade. Este fundamento da fé sobre a moralidade é um desenvolvimento posterior, mas já em 1784 a fé pode também ter um valor submetido a um exercício livre e independente da razão, que Kant identifica com o uso público da razão, oposto ao privado, que coincide com o uso da razão condicionado por uma função oficial rea- lizada no interior da máquina do Estado. Em Resposta à pergunta: Que é o Ilu‑

minismo? este binómio é aplicado especialmente ao fundamento religioso

da soberania (a que se juntam o militar e o financeiro). Não há contraindi- cações sobre o facto de, no exercício privado da razão, um religioso operar de acordo com as diretivas estaduais, porque a «Igreja visível», como Kant a designa em a Religião23, é apenas uma forma transitória do diálogo aber- to entre a liberdade religiosa e o Iluminismo ao longo do caminho para alcançar a liberdade que coincide com a bem conhecida «saída do homem da sua menoridade»24. Portanto, mesmo se Kant não ataca expressamente o aparelho estatal do qual na Ideia de uma história universal com um propósito

cosmopolita reconhece a necessidade jurídica e pragmática25, ele rejeita com firmeza a visão mecanicista do Estado e, nesse sentido, antecipa, ou talvez inspire, a aspiração comum a toda a filosofia clássica alemã de superar a “casualidade” tanto no mundo físico como no moral. Um dos pontos em que o papel pragmático-jurídico do Estado se pode compreender clara- mente diz precisamente respeito à relação entre política e religião. Dado que os homens podem pertencer a um Estado civil jurídico (político) e, no entanto, permanecem, no que diz respeito a condição ética, num estado de «incessante assédio pelo mal, que se encontra no homem»26, é do inte- resse de uma sociedade civil jurídica que os seus membros se tornem parte 21. I. Kant, WiA, GS 8, p. 41.

22. I. Kant, 1794, Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft [Religion], GS 6, p. 52 (nota); trad. p. 58 (nota 19).

23. CF., por exemplo, I. Kant, Religion, GS 6, pp. 101, 122, 157-158, 175 (nota). 24. I. Kant, WiA, GS 8, p. 35; trad. 11, 36-38.

25. I. Kant,1784, Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht, GS 8, p. 22. 26. I. Kant, Religion, GS 6, pp. 96-97; trad. 103.

de um corpo ético. Entre as condições para esta constituição do corpo ético Kant também indica a necessidade de o Estado não permitir «que na discórdia interna ou no conflito recíproco entre as diversas Igrejas corra perigo a concórdia civil»27.

Uma alternativa a essa visão está representada pelo «sistema da eti- cidade» hegeliano, que é especulativo, e portanto a religião também tem de ser nele configurada especulativamente28. Hegel considera a vida ética numa perspetiva diferente da de Kant: o seu objetivo é uma pedagogia nacional ou popular, que propõe inserir os homens na sua comunidade e, nesse sentido, a religião desempenha um indubitável papel de valor polí- tico. Então, como elemento de coesão social, a religião do amor, baseada num sentimento totalizador, dissolvendo a distinção entre público e priva- do, compromete também a distinção entre moralidade e legalidade, pelo menos como ela se encontra em Kant até ao final dos anos ’80. Nos Princí‑

pios da filosofia do direito, no começo da discussão sobre o Estado, o Espírito do povo [Volksgeist] é caracterizado como a divindade “que se conhece e se

quer”, e é totalmente desenvolvido no Estado29, mas a verdade e a liber- dade alcançadas no Estado exigem a construção e a particularização disso na história universal, como extensão desta verdade e desta liberdade ao Espírito absoluto. O § 340 dos Princípios da filosofia do direito, que precede o início da História universal, mostra que a liberdade, alcançada no Estado como desenvolvimento do direito na eticidade, é só ainda um grau de liber- dade, e é inferior à mais verdadeira e mais completa atingida pelas formas supremas do Espírito absoluto, às quais alude a religião.

O ponto essencial de divergência entre os dois autores é que, para Kant, a religião, embora filosoficamente fundada sobre a moralidade, não pode ser considerada como estando submetida à razão pura prática (e muito menos à especulativa), porque o próprio conceito de religião coloca-a além das manifestações da racionalidade: «A religião é algo que se funda na razão e não no sofisma [...] mas permitir que na religião só a razão especulativa seja líder é sofisma»30. Para Hegel a religião, mesmo na sua forma revelada, tem um caráter especulativo, ou seja, é funcional para a manifestação do Espírito e, portanto, constitui uma parte concreta e ativa do tecido político e social do Estado, a ponto de o superar. Esta divergência é claramente visível no facto de os tratamentos kantianos da religião esta- 27. I. Kant, MdS, GS 6, p. 327; trad. Parte I: Princípios metafísicos da doutrina do direito, p. 142. Vd. igualmente L. Gallois, 2008, Le souverain bien chez Kant, p. 207.

28. Sobre a analogia entre teologia especulativa e eticidade insiste C. Hodgson, 1993, «Hegel’s Philosophy of Religion», p. 248. Para uma discussão de como as circunstâncias históricas, e espe- cialmente a Revolução Francesa, influenciam a conceção hegeliana da relação entre a dimensão religiosa, a antropológica e a filosofia especulativa, vd. L. Dickey, 1993, «Hegel on Religion and Philosophy», pp. 307-308.

29. G. W. F. Hegel, Grundlinien, TWA 7, § 257 (nota). 30. I. Kant, 1784/85, Moralphilosophie Collins, GS 27, p. 313.

rem limitados a obras específicas, enquanto em Hegel, com raras exceções, esta discussão se espalha por diferentes partes do sistema. Se já no final de 1794 Hegel podia escrever a Schelling dizendo que certamente a doutri- na kantiana da religião ainda é silenciosa e só com o tempo ela vai estar em plena luz31, isso acontece porque ele considerava necessário colocar a religião firmemente no «açougue» [Schlachtbank], como posteriormente designou a história universal nas Liçoes sobre a filosofia da historia32. Desta forma, a religião desempenha um papel central na abordagem hegeliana à história porque age como reforço dos motivos da eticidade moderna que se realiza na história: «A verdadeira religião e a verdadeira religiosidade promanam apenas da eticidade, e é a eticidade pensante, ou seja, a que se torna consciente da livre universalidade da sua essência concreta»33. A eticidade de facto, como saber objetivo no interior do Estado, permite ler o caminho da providência divina através do negativo e das tragédias da história, e leva a considerá-las não apenas segundo os critérios do juízo mo- ral. Na opinião de Hegel, Kant compreendeu a conexão entre eticidade e religião, mas, em seguida, cometeu o erro de reduzir a elevação a Deus ao grau de simples postulado34, um postulado da razão pura prática, da qual são excluídos todos os motivos sensíveis, os que por sua vez Hegel admite, criticando fortemente Kant sobre este ponto35.

Por seu turno, Kant, com a exclusão de qualquer possível motivo sen- sível para a ação moral, descreve o desenvolvimento da história por meio da única categoria que lhe permite sair da parcialidade e das limitações do mundo físico, ou seja, o direito, que ao contrário de religião é imanente à realidade. Então, Kant e Hegel, na conceção de história, concordam quan- to ao reconhecimento de uma componente jurídica fundamental, porque a história, se não é mera crónica, é antes de tudo a história da liberdade e se não há lei, então, também não há liberdade. Mas que tipo de liberdade é esta que estamos a discutir? Se por um lado, com Kant, o desenvolvimento histórico desta liberdade apela a uma razão universal e distinta tanto do que a transcende como do que não é puro como ela; e se, por outro lado, 31. Cf. Hegel à Schelling, 24 Dezembro 1794, in J. Hoffmeister (edição), 1952, Briefe von und an

Hegel: 1785 bis 1812, p. 12.

32. G. W. F. Hegel, 1821/24/27/31, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte [VPG], TWA 12, p. 35; trad. p. 73.

33. G. W. F. Hegel, 1817/27/30, Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse [Enzy‑

klopädie], TWA 10, § 552 (nota).

34. G. W. F. Hegel, Enzyklopädie, TWA 10, § 552 (nota).

35. G. Prauss defende que a pretendida solução hegeliana dos problemas kantianos relacionados com a determinação das esferas de influência da moralidade e do direito, ou seja, a dissolução da tensão entre as duas disciplinas no âmbito da eticidade, tenha como consequência direta a valorização do papel da religião na ciência do Estado. G. Prauss interpreta esta valorização como uma debilidade da proposta hegeliana: cf. G. Prauss, 2008, Moral und Recht im Staat nach Kant und

com Hegel, nesta liberdade “suja-se as mãos” com a terra e o sangue para se manifestar?