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Guilherme de Moerbeke na encruzilhada do macromodelo político moderno

2. A Política – tradição e tradução

Se a tradução latina da Política e o avanço do respectivo ideário políti- co aristotélico inspiraram uma nova concepção do Político, o veículo desta inspiração foi certamente o trabalho do tradutor flamengo que, tornando acessível o texto, permitiu transformar muito a interpretação da ideia de política. Supera-se uma tradição formada sobretudo por Cícero (De officiis e De inventione), Santo Agostinho (a ideia de que o poder deriva do pecado original), João de Salisbúria (Policraticus), pelos postilistas (como João de Gales) ou pelo complexo dos specula regam (tais como a Chronica de Heli- nando de Froidmont ou Speculum naturale de Vicente de Beauvais)17.

Entretanto, o avanço do Aristoteles Latinus, em sede política, permiti- ria também colmatar os esquemas pré-aristotélicos da philosophia practica, quer quanto às relações entre as respectivas partes (divisiones philosophiae) quer quanto à tipificação do respectivo conteúdo, e em particular a política. É, pois, Guilherme de Moerbeke quem, de modo mais imediato e complexivo, nos introduz na novel questão do Político, debatida nuclear- mente na e com a centúria «aristotélica». Numa nova linguagem (nova ver‑

ba), revestindo novos significados, advém uma novel visão do ser humano,

do poder e da liberdade nos sucessivos impactos modelares do real: por um lado, a esfera pública (i.e., o governo da comunidade) impõe-se à es- fera privada (i.e., o domínio doméstico); e, por outro lado, a civitas adqui- re uma injunção semântica que fora perdida na diluição jurídica da polis (representada significativamente por iuris societas). Por outro lado ainda, as concepções políticas de governo enfatizam vectores a partir da pessoa e do local – distintas entre si e não já como que coexistindo em combinação umas com as outras18.

Vejamos, portanto, mais particularmente os elementos que tornam patente o nascimento de um novo macromodelo político.

É consabido que algumas obras de Aristóteles, cuja primeira tradu- ção realizada a partir do árabe, ou cuja tradução a partir do árabe haviam de imperar até ao aparecimento dos trabalhos de Moerbeke19. Como tam-

bém sabemos, ao lado das traduções, a fim de beneficiar o procedimento interpretativo do ‘difícil’ texto aristotélico, os cristãos ocidentais foram igualmente traduzindo os comentadores do Estagirita, tanto gregos como árabes20.

17. CARVALHO, M. S. de, «Sobre as origens dos paradigmas modernos...», p. 58; COLEMAN, J., 2000, A Historical of Political Thought. From the Middle Ages to the Renaissance, Oxford, Blacwell, p. 61. 18. BERMAN, Harold J., Law and Revolution…, p. 278.

19. Recordemos os exemplos do De caelo (traduções de Gerardo de Cremona e Miguel Escoto), dos Metereologica (traduções de Gerardo e de Henrique Arístipo), do De animalibus (tradução de Miguel Escoto). A tradução árabe da Metafísica, levada a cabo por Miguel Escoto, não sendo a primeira foi a mais importante e a mais divulgada até à tradução de Moerbeke.

Ora, é o momento de sublinhar que esse não é o caso da tradução latina medieval da Política. De facto, foi realizada originalmente e a partir do grego, sem qualquer tradição ou tradução anteriores (escólio, glosa, co- mentário literal, sentença, problema)21. Mesmo no mundo árabe, Averróis

(1126-1198), que justificou o epíteto de «o Comentador» por antonomá- sia, não terá chegado a conhecer este texto aristotélico, uma vez que, em termos políticos, ele apenas refere a República de Platão22.

Como referimos, Guilherme de Moerbeke levou a cabo duas tradu- ções (denominadas translatio imperfecta, ou prior, que contém o Livro I e parte do Livro II, e translatio perfecta). A primeira tradução, como ele pró- prio no-lo diz, foi realizada a partir de um manuscrito do qual não havia sido ainda encontrada uma versão completa («Reliqua huius operis in gre- co nondum inveni»). Terá encontrado a ‘parte restante’ do manuscrito em 1260, aquando da sua passagem por Niceia – capital do Império Bizantino – e onde terminou a versão latina do comentário de Alexandre de Afrodí- sias sobre os Meteorológicos de Aristóteles. Fez a revisão da primeira tradução e traduziu o resto23.

Não nos interessa, neste momento, estabelecer comparações entre ambas as traduções. Registamos apenas o facto de o tradutor não deixar es- paços vazios perante o verdadeiro Aristóteles, apresentando a segunda, to- davia, menos termos transliterados do que a primeira, sugerindo-se aí um certo aperfeiçoamento hermenêutico; ambas, em todo o caso, denotando amplo (e profundo) conhecimento da filosofia política do Estagirita24.

Conhecer a Política tornara-se imperativo, pois ela era ‘pressentida’ e ‘como que se fazia esperar’, sobretudo após o aparecimento da versão Seguiram-se, entre outros, Porfírio, Temístio, Simplício e João Filopono. Na Idade Média cabe mencionar o caso típico da Ética a Nicómaco, cuja tradução vem acompanhada pelos comentários de Eustrácio e Miguel de Éfeso. Note-se ainda que do De anima foram traduzidos os comentários de Filopono, Temístio e Averróis; da Metafísica, o importante Livro da ciência divina de Avicena e os comentários de Averróis. Árabes, judeus e cristãos prologaram o género dos comentários e pa- ráfrases pelo menos até ao século XVII. (DE BONI, L. A., 2010, A Entrada de Aristóteles no Ocidente

Medieval, Ulysses, Porto Alegre).

21. Desde o século XII encontramos fixados nas suas linhas gerais os diferentes modelos de co- mentário (escólio e glosa, comentário literal, sentença, problema) e mesmo a sua combinação com a discussão de questões. Na Faculdade de Artes a generalidade das obras de Aristóteles será submetida a este esquema de discussão exegética.

22. RIEDEL, M., 1975, Metaphysik und Metapolitik. Studien zu Aristoteles und zur politische Sprache der neuzeitliche Philosophie, Frankfurt-am-Main, Suhrkamp, p. 112.

23. Cf. VERBEKE, G., 1989, «Moerbeke, traducteur et interprète; un texte et un pensée», in J. Brahms; W. Vanhamel (ed.), Guillaume de Moerbeke: Recueil d’études à l’occasion du 700e centenaire de

sa mort (1286), Leuven: Leuven University Press, pp. 6-7.

24. Um estudo comparativo entre as duas traduções pode ver-se em VERBEKE, G., «Moerbeke, traducteur et interprète…», pp. 1-21. Como exemplo de conceito-chave, transliterado nas duas traduções em nome do verdadeiro pensamento de Aristóteles, Verbeke faz notar o termo δδδδ. (Cf. Ibid., p. 7).

integral da Ética Nicomaqueia em 1246-124725, da responsabilidade de Ro-

berto de Grosseteste e cuja revisão pertence exactamente a Guilherme de Moerbeke26.

Sublinhámos que Aristóteles foi traduzido e retraduzido. Na verdade, a tradução de Grosseteste, também conhecida por translatio lincolniensis, é, em parte (os primeiros três livros), uma revisão da antiquor translatio, chamada «ethica vetus», realizada no século XII por Burgúndio de Pisa27.

A translatio lincolniensis tornou-se um texto clássico a partir do uso que dela fez Alberto Magno no seu primeiro curso (1248-1252) – i.e., bastante antes de conhecer a Política – dedicado ao ensino (expositio litterae e quaestiones) da ethica, de que resultará o respectivo Comentário à Ética a Nicómaco, mais conhecido por Super Ethica. Moerbeke terá acompanhado pelo menos par- te do ensino de Alberto, em Colónia, tal como Tomás de Aquino28.

Na verdade, era impossível passar pela Ética e não apontar para a Po‑

lítica, em virtude da singularidade e da possível – pressentida – cientificida-

de desta, como também referem Alberto Magno, Rogério Bacon e Egídio Romano29.

Eis, pois, o destino medieval da filosofia política: substituir um con- teúdo marcadamente jurídico e despolitizado (v.g., civis) pelo respectivo conteúdo filosófico-antropológico aristotélico (v.g., polites); desvincular a própria natureza humana da instância do pecado através da realização da comunidade política (polis).

25. BERTELLONI, F., 1998, «El lugar de la politica dentro de la tripartición de la philosophia prac‑

tica...», p. 573.

26. Cf. J. BRAMS, J., 1994, «The Revised Version of Grosseteste’s Translation of the Nicomachean Ethics», Bulletin de philosophie médiévale 36 (1994), pp. 45-55.

27. Aristoteles Latinus, Burgundius Pisanus translator Aristotelis, XXVI, fas. Secundus, GAUTHIER, R. A. (ed.), 1972-1974, Leiden-Brucelles, E. J. Brill (Corpus Philosophorum Medii Aevi), pp. 99-124. Como se sabe, há duas primeiras versões latinas, cronologicamente distintas, da Ética Nicomaqueia: a «ethica vetus» (livros II-III, até 1119a 34) e a «ethica nova» (livro I e excertos de outros livros). Tradicionalmente ambas são atribuídas a autores anónimos mas actualmente sabemos que as duas foram realizadas por Burgúndio de Pisa. (Vd. BRAMS, J., 1997, «The Latin Aristotle and the Me- dieval Latin Commentaries», Bulletin de philosophie médiévale 39, p. 16).

28. Note-se que Alberto Magno era então o mais prestigiado dos «mestres» dominica- nos. Cf. VERGER, J., 2008, «Istituzioni e Sapere nel XIII secolo», in IBIFFI, I; MARABE- LLI, C., (dir.), La Nuova Razinalità, XIII Secolo, Figure del Pensiero Medieval, v. 4, Editorial Jaca Book, Milano, p. 54.

Segundo testemunho manuscritos, pelo menos Tomás de Aquino, aquando da sua es- tadia em Colónia, acompanhou o comentário de Alberto Magno à Ética a Nicómaco. Cf. GRABMANN, M., 1970, Guglielmo Di Moerbeke O. P., il traduttore delle opera di Aristotele, Pontificia Università Gregoriana, Roma, p. 105.

29. FIORAVANTI, G., «La Politica aristotelica nel Medioevo....», p. 20. Cabe observar que a pró- pria Ética menciona explicitamente a política: em I, 1, 1094 a 25 e passim, quando refere que a política é a mais arquitectónica das ciências; em VI, 8, 1141 b 24 e passim, reiterando a função ar- quitectónica da política; em VIII, 11 e 12, 1160 a 30 e passim, onde expõe, sucintamente, as formas de constituição de Estado; em X, 10, 1179 a 33 e passim, ao referir o papel da lei e do legislador.

Mas o decénio de 60 do século XIII, que alterou de facto o quadro mental sobre a política e o político, a respectiva linguagem e horizontes, também deve ser lido à luz da prioridade cronológica do contacto com a Ética Nicomaqueia (quer através de Roberto Grosseteste quer possivelmente de Alberto Magno), visto que, como veremos, esse conhecimento surge como tributário da descrição e tradução da Política.

Vamos por partes.

Como sublinhámos, em contraste com o pensamento político clássico, segundo o qual os diversos tipos de autoridade (monarquia, aristocracia, democracia) constituem alternativas mutuamente exclusivas, a tradição política medieval vê estes diferentes tipos de autoridade como coexistindo e em combinação uns com os outros. Agora, no entanto, perante uma nova linguagem, a requerer novos significados, vemos reaparecer essa classifica- ção clássica.

É assim que, na translatio lincolniensis, e na passagem respectiva do texto aristotélico acerca das «três formas de regimes políticos», podemos encontrar, entre outros, os termos aristocratia, timocratia, monarchie, democra‑

tia. Ou seja, termos transliterados, neologismos, portanto. Com efeito, são

palavras de Grosseteste:

Politie autem, sunt species tres. Equales autem et transgressiones, puta cor- ruptiones harum. Sunt autem politie quidem regnum, et aristocratia, tertia autem que a preciis, quam timocratiam dicere conveniens videtur, politiam autem consueverunt ipsam plures vocare. Harum autem optima quidem regnum, pessima autem timocratia. Transgressio autem regni quidem, tira- nis. Ambo enim monarchie. [...] Ex aristocratia autem in oligarchiam [...] Ex

timocratiam autem utique, in democratiam. Conterminales enim sunt hee.

Multitudinis enim vult et timocratia esse, et equales omnes qui in honora- cione. Minimum autem malum est democratia30.

Na verdade, trata-se, no essencial, de uma terminologia já cunhada por Burgúndio de Pisa e que Grosseteste, não meramente replicando, antes revelando, viabiliza e implica sistematicamente, fazendo salientar a ideia de que as novas injunções semânticas careceriam de facto de um vo- cabulário correspondente31.

Outras passagens poderiam ser referidas32; mas é suficiente para mos-

30. Aristoteles Latinus, Ethica Nicomachea. Translatio Roberti Grosseteste Lincolniensis sive ‘Liber Ethico‑

rum’, XXVI. 1-3, fasc. tertitus, GAUTHIER, R. A. (ed.), 1972, Leiden-Bruxelles, p. 313 [1160 a 31

e passim]. Itálico nosso.

31. Na «ética vetus» já encontramos, por exemplo, os seguintes termos: «timogratiam», «dimo- cratiam», «domocratia», «tirannide» (v.g. 1160b 16; 1160b 19; e 1161a 32). Observa Brams que, em virtude de uma contante procura em encontrar os termos latinos mais adequados, Burgúndio de Pisa e Roberto Grosseteste contribuem decisivamente para a elaboração de uma terminologia filosófica, teológica e moral no Ocidente. Vd. BRAMS, J., 1993, La riscoperta di Aristotele..., p. 60 e 83 e passim.

trar que estamos perante um processo de descrição e fixação de uma nova linguagem, o surgimento de novos conceitos que revestem significados até então inéditos, os quais passariam a ser estruturantes no pensar e no agir medievos como de algum modo se assinala em todos os tratados políticos escritos antes de 1325 por autores sensíveis à influência aristotélica, unin- do o naturalismo a um moralismo sem compromisso33.

Isso mesmo é-nos igualmente documentado por Alberto Magno. Com efeito, reportando-se a esse trecho específico da Ética (De speciebus poli‑

tiarum in communi, penes quas amicitiae species accipiuntur), Alberto utiliza

idêntica terminologia, apresentado, no entanto, aqui e ali, termos latinos correlatos dos termos gregos transliterados que explica no decurso do seu próprio texto.

Assim, começa por afirmar que «a política distingue-se em três partes, cada uma das quais dividida em duas», segundo a respectiva «transgressão ou corrupção», que, «totalmente ou em parte, corrompe a urbanidade»34.

E «urbanidade» significa «a integração de um certo poder segundo o regi- me da justiça»35. Deste modo, essas «três partes ou espécies de políticas» são

as seguintes: monarchia, aristocratia e timocratia36.

Estas formas de governo são essenciais à felicidade; só elas podem re- ger e conservar a felicidade. Pelo que à politexam também podemos chamar

politicam ou urbanitatem37.

Os respectivos desvios (transgressiones sive corruptiones) denominam-se

obligarchia, democratia e tyrannia. Ao longo do capítulo, o Doctor Universalis

chega mesmo a utilizar os próprios termos gregos, explicando, nestes mo- mentos, o significado desses termos. Por exemplo, distinguindo entre o bom monarca e o mau rei (i.e. aquele rei que olha pelos interesses dos seus súbditos e aquele que é rei «por lhe ter calhado em sorte»), diz Alberto: da política (civilis scientia) ou quando usa o termo epieikees para introduzir a noção do equitativo e recto (ex bono et aequo), quanto à forma de governo, ou de que se dispõe de tudo o que parece tornar os homens bons a fim se de poder tomar parte na excelência (1094a 25-28 e 1179b 19-20, respectivamente).

33. LAGARDE, G., 1970, La Naissance de l’Esprit Laïque au déclin du Moyen Age. Le ‘Defensor Pacis’, vol. 3, Louvain-Paris, p. 306.

34. «Politicae autem sive politexae species, quibus omnis politexa perfecta perficitur, sunt tres, ex quibus perfecta constituitur urbanitas: et tres aequaliter sunt transgressiones earum sive corrptiones, quibus vel in totum vel in parte corrumpitur urbanitas.» (ALBERTO MAGNO, Ethico‑

rum Lib. X, Opera Omnia, vol. VII, BORGNET, A., (ed.), 1891, Paris, p. 539).

35. «Urbanitas enim quamdam integram sonat potestatem secundum regímen justitiae.» (ALBER- TO MAGNO, Ethicorum Lib. X, p. 539)

36. «Et ideo tres sunt politicae species: duae quidem simpliciter species, regnum scilicet et aristo- cratia. Tertia autem a facultate pretiorum est et exteriorum bonorum, secundum aliquid species urbanitatis est, quam conveniens est dicere timocratiam.» (ALBERTO MAGNO, Ethicorum Lib. X, p. 540).

37. «[...] tamen quia est in his sine quibus cives ad felicitatem non reguntur, plures consueverunt eam appellare politexam sive urbanitatem.» (ALBERTO MAGNO, Ethicorum Lib. X, p. 540)

«ϰλήροτηϛ enim a ϰλήροϛ Graece dcitur, quod apud nos sortem sonat». É

por isso que o tirano (tyrannus) difere do ϰλήροτει; porque o ϰλήροτηϛ (i.e.,

o rei de extracção) recebe o nome por um defeito, em razão do bem e da virtude régia (o rei, que nada necessita que já não possua, deve olhar ape- nas para o que pode ser vantajoso para os seus); o tirano está nos antípodas do rei, pois perverte a realeza não procurando outro bem senão o seu38.

3. Guilherme de Moerbeke – novas referências, novos conceitos