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Uma questão de metafilosofia

1. As divisões curriculares: perdas e ganhos

A questão da relação da filosofia com as suas diferenças internas é uma questão metafilosófica que atinge profundamente o cerne da própria filosofia: trata-se da questão de saber se a filosofia é una ou múltipla, ou, em suma, da questão da unidade ou multiplicidade da filosofia.

Extremando os lados da questão, podemos formulá-la assim: a filoso- fia é uma só ou há irredutivelmente várias e até muitas?

Talvez fosse mais fácil abordá-la e estudá-la, se a filosofia fosse uma só, mas a verdade é que, quando começamos a estudá-la, deparamos com uma realidade múltipla e diversificada: a pluralidade de disciplinas filosóficas e também a pluralidade de escolas e correntes filosóficas, i.e., de modos diferentes de encarar e conceber a própria filosofia.

Como lidar, então, com a diferença em filosofia: é ela acidental, fun- cional e, no fundo, subsumível numa unidade essencial? Ou, pelo contrá- rio, as diferenças em filosofia são irredutíveis e constituintes do modo de ser próprio dessa forma de saber, ou de aspiração ao saber, que é a filosofia?

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Retomemos a inspiração dos nossos antepassados gregos, que nos en- sinaram a filosofar, e que começaram por indagar os princípios primor- diais da realidade: o que era, para eles, a filosofia? Tendo em conta que esses princípios começaram por ser identificados com elementos materiais do mundo sensível e natural, a filosofia grega mais antiga era, sobretudo, uma física, ou uma filosofia da natureza.

Costumamos reconhecer que Sócrates transformou em máxima filo- sófica a inscrição délfica – “conhece-te a ti mesmo” –, recomendando a seguinte cautela: não devemos presumir saber sobre o mundo à nossa volta se nos ignorarmos a nós próprios.

A filosofia descobriu, então, o caminho da introspecção, do qual a fi- losofia de Platão é já uma expressão resultante: o conhecimento inteligível do mundo das formas é um conhecimento introspectivo, que a linguagem apenas pode estimular, bem como a experiência sensível, se não for para distrair.

A filosofia de Platão pode ter motivos ou temas privilegiados, como a virtude e a cidade, mas não tem propriamente divisões. Platão apenas reco- mendava a aprendizagem das disciplinas matemáticas como propedêutica adequada para a filosofia, pelo treino de abstracção ou desprendimento do sensível, que elas facultam.

No entanto, Platão fundou uma escola, a Academia, e, nela cedo terá nascido uma das mais antigas divisões curriculares da filosofia (julga-se que, com Xenócrates): a divisão em lógica, física e ética.

Esta divisão da filosofia teve bastante sucesso na Antiguidade tardia, tendo-se tornado uma divisão corrente1, para o que terá contribuído o fac-

to de ter sido especialmente adoptada pela escola estóica.

Qual o significado desta divisão e, porventura, a razão do seu sucesso? Se bem atentarmos, trata-se de uma divisão que assinala certa dife- renciação de campos, que não afecta a unidade da filosofia. Acalentando a crença fundamental na racionalidade do real, a filosofia era, então, o cami- nho de apreensão da razão em todas as coisas: desde logo, no pensamento humano, e é a lógica; mas também no mundo da natureza, e é a física; e, 1. «Cada um sabe que todas as filosofias helenísticas aceitaram moldar-se no quadro tripartido – lógica, física, ética – que apareceu, segundo se julga [de acordo com Sexto Empírico], na Antiga Academia com Xenócrates; ora se compararmos este programa com aquele muito mais vasto que a filosofia verdadeiramente enciclopédica de Aristóteles abrangia, apercebemo-nos de que ele deixa de fora aquilo que este designava, como vimos, as “ciências poiéticas” (retórica, poesia e, num certo sentido, dialéctica) e nas “ciências teoréticas”, as matemáticas; dito de outro modo, o programa das artes liberais torna-se, falando propriamente, exterior ao da filosofia, mas esta supõe, exige o estudo prévio daquelas.» H.-I. MARROU, «Les Arts Libéraux dans l’Antiquité Classique», in Arts Libéraux et Philosophie au Moyen Âge. Actes du Quatrième Congrès International de

Philosophie Médiévale (Montréal, 1967), Montréal/ Paris, Institut d’Études Médiévales – Vrin, 1969,

ainda, nos comportamentos e costumes humanos, e é a ética. O princípio de unidade da filosofia é a razão, que não está apenas naquele que pensa mas também naquilo que é pensado.

O que aconteceu, até hoje, a tal divisão da filosofia e às disciplinas que a compõem?

A divisão perdurou durante a Idade Média. A física desprendeu-se e autonomizou-se da filosofia na Idade Moderna, nomeadamente com Newton, a quem atribuímos habitualmente a fundação da física moderna. A lógica permanece dentro do currículo da filosofia, mas também já se desprendeu da filosofia no seu desenvolvimento autónomo, como ciência matemática. Da antiga divisão tripartida da filosofia, permanece, como dis- ciplina irredutivelmente filosófica, a ética.

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A ética, entretanto, também faz parte de uma outra divisão da filo- sofia, igualmente antiga, que remonta a Aristóteles2, e que foi ainda mais

influente a longo prazo no destino da filosofia e da cultura dos saberes em geral: a divisão da filosofia em teorética e prática.

Esta divisão aristotélica deixa a lógica de fora, como uma disciplina propedêutica e instrumental para todo o saber. Neste sentido, de disci- plina propedêutica e instrumental, a lógica continua a ter cabimento no currículo das disciplinas de filosofia, mesmo que já não confine com o teor da lógica aristotélica.

Mas a filosofia era, para Aristóteles, um grande projecto de saber, ver- dadeiramente, enciclopédico. Com efeito, a filosofia teorética e a filoso- fia prática não eram simplesmente duas disciplinas distintas, mas sim dois grupos ordenados de disciplinas, que cobriam todo o domínio dos saberes humanos mais elaborados.

A filosofia teorética, por um lado, incluía a física, as ciências matemá- ticas e a teologia, numa progressão das causas particulares e próximas para as causas universais e primeiras, que é também uma progressão em abstrac- ção, i.e., um processo de separação relativamente ao particular e imediato.

O que é que aconteceu a estas disciplinas até ao presente?

A física, como já referimos, autonomizou-se da filosofia na Idade Moderna. As ciências matemáticas sempre tiveram um desenvolvimento próprio, fosse qual fosse o tipo de interesse que nelas tivesse a filosofia – fosse como ciências propedêuticas (Platão), fosse como partes integrantes (Aristóteles), ou, ainda, como objecto de estudo epistemológico (filosofia da matemática). A teologia, por seu turno, sendo uma disciplina origina- riamente filosófica, migrou para o domínio da religião. Ficou no seu lu- 2. Cf. Metafísica VI, 1025 b 1 – 1026 a 30; Ética Nicomaqueia VI, 1139 a 27.

gar a metafísica, também chamada “ontologia” a partir do séc. XVII, que trata do ser, não só sensível mas também inteligível, não só material mas também imaterial, não só existente mas também possível, não só particu- lar mas também universal, não só finito mas também infinito, etc. Deste modo, a metafísica trata de todos os contrários em que se pode dividir o ser, nem que seja apenas conceptualmente, e, por isso, é uma disciplina mais ampla do que qualquer ciência específica, e permanece no terreno da filosofia, apesar das múltiplas desconstruções e proclamações de morte na filosofia posterior a Kant.

Entretanto, para além da filosofia teorética, pertence ao legado aris- totélico a separação e divisão da filosofia prática. Esta incluía a ética in- dividual, a economia doméstica e a política, numa progressão óbvia do domínio do individual para o colectivo.

O que é que aconteceu a estas disciplinas até ao presente?

A política autonomizou-se e desprendeu-se da filosofia na Idade Mo- derna, nomeadamente com Maquiavel, a quem atribuímos habitualmen- te a separação da política. A economia não só se ampliou a novas esca- las, como a dos Estados nacionais, ou, mesmo, a escala global (economia mundial), como se autonomizou também como ciência. A ética, de novo, permanece como disciplina filosófica, mas ampliando o alcance do valor moral da acção humana para além da relação do homem consigo próprio e com o seu semelhante, à relação com a vida em todas as suas formas (bio- ética e ética animal) e à relação com o ambiente e a Terra (ética ambien- tal). Estes desenvolvimentos exigem pontes interdisciplinares.

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As duas antigas divisões curriculares da filosofia, a divisão tripartida e a divisão aristotélica, são aquelas que ainda hoje se repercutem nos cur- rículos dos cursos de Filosofia, ao nível das disciplinas nucleares. Assim, conserva-se a lógica, de acordo com as duas tradições, mas com o carácter instrumental que Aristóteles, sobretudo, lhe conferiu, e não obstante a au- tonomia científica que, entretanto, adquiriu. Igualmente de acordo com as duas tradições, conserva-se a ética, porventura a disciplina que permanece mais irredutivelmente filosófica, não obstante ser desde sempre um campo de interesse partilhado pela religião. De acordo com a tradição aristotélica, preserva-se a metafísica, mesmo que no fio da navalha, isto é, em exercício constante de auto-questionamento. E na continuidade da viragem socráti- ca para a introspecção, desenvolveu-se a psicologia, que veio a conquistar autonomia científica desde o séc. XVIII, embora a filosofia nunca tenha deixado de reivindicar a sua abordagem no âmbito de disciplinas, como a epistemologia, ou a filosofia do conhecimento e da mente. Acresce ainda

a estética, com autonomia disciplinar adquirida desde o séc. XVIII3, que

figura hoje entre as divisões curriculares da filosofia, embora partilhando o seu campo de interesse com todas as artes.

Esta é, aliás, uma característica dos saberes no nosso tempo: por es- pecializados que sejam, eles são sempre perspectivas que nunca esgotam o conhecimento do campo de interesses que partilham entre si, o que torna a interdisciplinaridade inevitável. A filosofia, que também tem experimen- tado os rumos da especialização, não pode deixar de confrontar-se com esta inevitabilidade. A interdisciplinaridade inevitável significa, sobretudo, que o saber se caracteriza não só pelo seu objecto próprio como também pela perspectiva que constitui. É certo que a filosofia sofreu a perda de disciplinas que outrora lhe pertenceram e se autonomizaram como ciên- cias, como a física e a lógica. Todavia, mais do que disciplinas, a filosofia perdeu a exclusividade nos seus tradicionais campos de interesse. Esta não exclusividade é, porém, um traço comum a todos os saberes especializados. Se é uma perda para a filosofia, trata-se de uma perda que a filosofia tem condições de suportar sem se perder a si mesma, dado o largo espectro de interesses que tem integrado ao longo da sua história – que vão da ordem física à ordem social, passando pelo domínio da interioridade humana – e que é, por isso mesmo, capaz de partilhar com outros saberes.

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Entretanto, a filosofia tem desenvolvido, pelo menos desde o séc. XVIII, um conhecimento sistemático da sua história, que veio para ficar, e que se estratifica, nos actuais currículos de filosofia, em quatro disciplinas de história da filosofia, filosofia antiga, medieval, moderna e contemporâ- nea. Com as disciplinas de história da filosofia, que estudam a tradição e o património do pensamento filosófico, percebe-se que já não é só o mundo da natureza que interessa à filosofia, mas também o mundo da cultura, ao qual pertence o legado patrimonial da filosofia.

Mas, entendamo-nos: ainda que as produções do pensamento filosó- fico pertençam especificamente ao foro da cultura intelectual, esta é uma camada que se integra, por sua vez, num sentido mais amplo de cultura, que abrange tudo aquilo que com homem advém e se acrescenta à na- tureza. É este sentido mais amplo de cultura, segundo o qual cultura e civilização são conceitos muito afins, que nos permite compreender o des- dobramento actual da filosofia em múltiplas novas divisões curriculares, que são fundamentalmente divisões de filosofia da cultura, no seu sentido mais amplo.

Na verdade, a mediação do mundo civilizacional entre o homem e 3. Pela mão de Alexander Gottlieb Baumgarten, autor de Aesthetica, t.I, 1750.

a natureza tem vindo a ganhar cada vez mais expressão em filosofia. São aquisições do mundo civilizacional humano, a linguagem, a história, a so- ciedade. Daí que estas realidades da civilização humana mereçam a aten- ção da filosofia, através de disciplinas temáticas, como a filosofia da lingua- gem, a filosofia da história e a filosofia social e política.

São também aquisições civilizacionais, a própria filosofia, a ciência, a religião e a arte. A reflexão sobre estas realidades do mundo da cultura ou da civilização humana deu origem a novas disciplinas temáticas.

A filosofia perdeu a física, mas tem agora, mesmo que de forma par- tilhada com as ciências autónomas, a filosofia da ciência ou epistemolo- gia, que solicita novas divisões ou diferenças internas: seja a filosofia das ciências da natureza e da vida, no âmbito da qual voltam a ter cabimento questões clássicas da filosofia, como a da origem do universo ou a da es- sência da vida; seja a filosofia das ciências matemáticas, isto é, das ciências que já foram propedêuticas e integrantes da filosofia, e continuam a forne- cer matéria de reflexão filosófica, nomeadamente, sobre a natureza do co- nhecimento a priori; seja a filosofia da técnica e da tecnologia, que obtém hoje uma premência nunca antes sentida, e, nessa medida, pode dizer-se “nova”, devido ao imenso progresso tecnológico da ciência moderna; seja, ainda, a filosofia das ciências humanas, que continua a reivindicar para estas ciências uma dignidade própria, irredutível às ciências da natureza4.

A filosofia perdeu a teologia, mas tem agora a filosofia da religião. No âmbito da estética, ganhou ênfase a filosofia da arte.

O desenvolvimento autónomo das ciências que se desprenderam da filosofia não causou o fim da filosofia, pois foi compensado por uma trans- formação nos interesses da própria filosofia: uma nova viragem no seu olhar – da natureza para a cultura – porque entre nós e a natureza medeia uma camada de realidade incontornável, que é a da cultura científica, re- ligiosa, artística, etc.

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Entretanto, no domínio da ciência, formaram-se novas dualidades que desafiam a unidade da filosofia, tal como já a dualidade de filosofia teorética e prática punha em causa a unidade da filosofia aristotélica.

Quando há dualidades irresolúveis ou irredutíveis, a solução de uni- dade é habitualmente a da ordenação que estabelece o primado de um lado sobre o outro. Assim fez Aristóteles, ao ordenar à filosofia teorética a filosofia prática sob a filosofia teorética, assumindo a superioridade da- quela.

4. Pelo menos desde Wilhelm Dilthey (1833-1911), filósofo da vida, do espírito e da historicidade, que defendeu a irredutibilidade das ciências do espírito.

Uma questão que a cultura científica contemporânea coloca à filoso- fia é a da redução ou ordenação da dualidade de ciências duras (exactas, naturais e tecnológicas) e moles (sociais e humanas), herdeira e continua- dora da dualidade de ciências da natureza e do espírito (sécs. XIX e XX). A sociedade tem debatido esta questão, reflectindo-se nas políticas públi- cas de educação e ciência, que têm privilegiado as ciências “duras” em detrimento das ciências humanas.

Há, no entanto, uma questão antiga, que remonta pelo menos aos clássicos Platão e Aristóteles, e que emerge enfaticamente em Kant – que perguntou por que é que a metafísica não pode ser uma ciência? – e que pode obter agora a seguinte formulação: por que é que a filosofia não é uma ciência dura?

A filosofia não é nem pode ser uma ciência dura, não por limite ou imperfeição própria, mas porque o seu universo de compreensão não con- fina com o de alguma ciência exacta, dada a pluralidade e abrangência dos seus motivos de interesse e reflexão, que vão das ciências às religiões e às artes.

A filosofia tem, pois, de situar-se no meio de uma dualidade irredutí- vel: a objectividade máxima das ciências exactas e a singularidade máxima das obras de arte. Uma vez que a filosofia não pode ignorar tanto a objec- tividade da ciência quanto a singularidade da arte, ela deve ser simultanea- mente objectiva e singular (única, pessoal).

Devido a esta dupla condição, difícil de gerir sem contradição, a fi- losofia não pode constituir um corpo circunscrito e objectivo de ciência, mas é capaz de constituir um corpo diferenciado de doutrinas, segundo a disseminação dos pontos de vista singulares e situados da razão humana, como atesta, aliás, o curso da sua história.

2. A pluralidade de correntes filosóficas: uma profilaxia anti-