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Kleber Cecon Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho

Resumo

O ponto principal deste trabalho é mostrar como as qualidades sensíveis (cor, odor, gosto, som, calor etc.) integraram sociedades com base na filosofia experimental (como, por exemplo, a The Royal Society of London) através de um processo de reificação destas qualidades, que até então ou eram vistas exclusivamente como qualidades reais pelos escolásticos, ou como meras abstrações da mente pelos filósofos estritamente mecanicistas (como era o caso dos cartesianos). Essa abordagem mais flexível pode ser identificada historicamente nas obras de Robert Boyle, por exemplo, em que o conceito de “textura” permite que as qualidades sensíveis sejam objeto de investigação experimental, gerando questões de fato e integrando a sociedade científica, sem que elas sejam vistas necessariamente como reais.

Abstract

The main goal of this work is to demonstrate how sensible qualities (taste, odor, color, sound, heat, etc.) integrated societies based on experimental philosophies (like  The

Royal Society of London) by a process of reification of these qualities. Such qualities were

previously considered either as real qualities by scholars, or as mere abstractions of mind by the mechanists (like the Cartesians). The new and more flexible approach can be historically identified in the works of Robert Boyle. His concept of “texture” allows sensible qualities to be considered as objects subjected to experimental investigation, creating matters of fact and integrating the scientific society while at the same time not necessarily being considered as real.

Introdução

Uma interessante noção de “questões de fato” é apresentada na obra

Leviatã and the air Pump1 na qual a aceitação de uma dada informação é considerada parte integrante da filosofia natural apenas se ela for compar- tilhada e considerada como verdadeira por todos os integrantes de uma dada comunidade. Esse dado não poderia ser obtido de qualquer forma, não poderia ser obtido por mera autoridade de um texto clássico, nem por especulações silogísticas ou “metafísicas”, era necessário um experimen- to controlado onde a natureza apresenta seu comportamento de forma a torná-la a fonte principal de autoridade natural.

A The Royal Society of London foi uma sociedade fundada visando es- 1. S. Shapin, S. Schaffer, 1985, «Leviathan and the air-pump».

tabelecer novos parâmetros para a filosofia da natureza. Cansados de um processo onde cada filósofo pode estabelecer um sistema isolado, e onde a investigação da natureza tinha forte peso na autoridade de grandes au- tores, imaginou-se uma comunidade baseada na concordância e voltada para os fenômenos naturais artificiais, onde o experimentalista possui um papel ativo e não meramente passivo e intelectual em relação ao mundo físico. Obviamente de forte influência baconiana, tal sociedade deliberou que algo só poderia ser considerado como verdadeiro quando uma ativida- de em ambiente controlado fosse realizada, ela deveria ser observada por muitos (idealmente por todos), seus dados deveriam ser coletados e todos os observadores deveriam concordar com o que foi visto. Só então poderia ser considerada uma informação aceita pela comunidade científica. Só as- sim ela poderia ser considerada uma questão de fato (matter of fact).

A identificação do que é uma questão de fato não é fácil, e não foi algo que ficou estacionado. Durante algum tempo, apenas informações pontuais e singulares de eventos discretos eram tidas como questões de fato. Logo depois regularidades que estabeleciam padrões via raciocínio indutivo foram consideradas como tal. Foi apenas questão de tempo para que hipóteses ou teorias explicativas de tais regularidades também in- gressassem o rol de questões de fato. Porém, seguramente era necessário que a informação fosse ditada pela própria natureza em um experimento controlado, de forma a estabelecer certo consenso entre os integrantes dessa sociedade. Claramente quando um experimento era desenvolvido já se tinha um resultado ou uma teoria em vista, porém, independente das posições dos autores e suas expectativas, a informação gerada no processo deveria ser acatada. Para isso a reprodução dos experimentos era incen- tivada a ponto de ter sido criada uma revista (Philosophical Transactions) como meio de divulgação de experimentos, inclusive com instruções para que os leitores pudessem repeti-los. Isso ampliava o leque de testemunhas do processo o máximo possível, tanto através de leitores que iriam repetir o processo gerando testemunhas de suas atividades, quanto aumentando o número de eventuais testemunhas virtuais.

Um ponto digno de nota é que esse tipo de atividade desenvolvida pela Royal Society (ou qualquer outra sociedade cujo processo auto-orga- nizacional seja baseado no consenso fundamentado em dados experi- mentais) exige um objeto. Conceitos, ideias, impressões, pensamentos e imaginação não são suscetíveis a esse tipo de investigação, visto não confi- gurarem um objeto cujos efeitos se impõem ao agente através de um am- biente artificial. Objetos sendo colocados em uma bomba de vácuo e tendo seus efeitos testados em um ambiente com ausência de ar comum é um bom exemplo deste processo. Esta configuração parece razoável visto o estilo de investigação pretendido pelos filósofos da Royal Society, ou seja, algo restrito ao mundo natural. Este trabalho se foca em uma questão es-

pecífica que concerne às qualidades ditas sensíveis do mundo físico. Uma abordagem mecanicista trará alguns problemas nesse sentido, visto que os objetos deixam de possuir as qualidades sensíveis.