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contra os Neoplatónicos

1. Kant e o Neoplatonismo: despropósito ou desafio?

Se o tema da relação de Kant com o pensamento de Platão tem ampla e provada sustentação nos escritos de Kant e até na literatura sobre este, já a explícita referência de Kant ao Neoplatonismo ou aos pensadores neo- platónicos, se não é inexistente, é manifestamente escassa e também não tem relevante literatura.1 Em face disso, associar Kant ao Neoplatonismo 1. Na literatura kantiana, só muito excecionalmente o tema tem sido objeto de alguma atenção. Mas, quando tal acontece, ou se toma o “Neoplatonismo” numa aceção excessivamente lata e não em referência ao Neoplatonismo histórico, como acontece, por exemplo, no artigo de Nicholas Rescher, «Kant’s Neoplatonism: Kant and Plato on Mathematical and Philosophical Method» (Me‑

taphilosophy, vol. 44, jan. 2013, 69-78), cujo propósito, na verdade, é apenas mostrar a similitude dos

dois filósofos – Kant e Platão – na recusa do método axiomático da matemática em filosofia e em propor a filosofia como exercício de teorização onde as questões de fundamento e os pressupostos não são dados à partida, mas se revelam já no próprio processo de investigação. Ou, então, em sentido oposto, a tese que se defende é não só a de que «Kant é um anti-neoplatónico», mas que ele é mesmo «o mais significativo não-platónico de toda a história da filosofia» e a Crítica da Razão

Pura é vista «como uma refutação do Neoplatonismo» (als eine Widerlegung des Neuplatonismus).

só pode soar a despropósito. A inexistência ou escassez de literatura não é, porém, inequívoca prova de não-existência da coisa mesma, e talvez não fosse completamente frustrada uma inquirição que tentasse encontrar na obra e pensamento de Kant não só referências ao Neoplatonismo ou à Escola Neoplatónica, como até, no cerne das propostas filosóficas kantia- nas, a efetiva presença de elementos ou vestígios de temas e motivos, que atualmente são tidos como fazendo parte do património especulativo do Neoplatonismo, considerado este como um caraterístico paradigma filosó- fico. E, então, o que, à primeira vista, parecia ser apenas um despropósito poderia tornar-se um estimulante desafio.

Não é isso, contudo, o que me proponho fazer neste ensaio. Ainda assim, deixo aqui um breve elenco de alguns desses tópicos ou vestígios, que mereceriam que algum dia alguém os explorasse ou os seguisse. Eis os que me parecem mais relevantes: o imanentismo expressionista, que se diz sob a forma de «criação contínua» no ensaio kantiano de cosmogonia do ano 1755 (Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels); a ideia Assim acontece na obra ainda recente de Constantin Rauer (Wahn und Wahrheit. Kants Auseinan‑

dersetzung mit dem Irrationalen, Berlin: Akademie Verlag, 2007, pp.220-225), onde, numa secção sob

o título «Kants Anti‑Neuplatonismus», se identifica Neoplatonismo e Maniqueísmo, considerando- os como sendo formas de pensamento da cisão (Spaltung) – entre corpo e alma, entre matéria e espírito, entre este mundo e o outro mundo –, que todavia logo passam ao «paranóide monismo universal». Para este autor, estariam na mesma linha o sistema de Plotino (o Uno), o de Sweden- borg (mundus spirituum) e o de Hegel (Geisterreich) –, em que tudo se transforma em tudo (seja por emanação, por um sistema de correspondências ou de analogias que tudo liga com tudo, ou pela dialética que dissolve as contradições e os opostos na identidade do mesmo). Todos esses sis- temas da cisão seriam, segundo Rauer, formas de pensamento “esquizo-paranóide”, aos quais Kant contrapõe a estratégia da divisão (Teilung); assim, ainda segundo Rauer, o sistema kantiano, sendo embora também “paranóico” (!), tenta, porém, evitar a cisão, substituindo-a pela divisão, do que resulta o dualismo, em vez do maniqueísmo, e a aparição ou o fenómeno (Erscheinung), em vez da aparência ou ilusão (Schein). Em Kant, não se trataria de cindir o ser mesmo na sua síntese, mas de dividir a nossa representação do ser. Eis algumas das surpreendentes conclusões deste intérprete: «Assim também Kant, com a sua teoria da paranóia não trata de saber se uma cisão existe ou não, mas como deve ela ser separada para que uma cisão seja evitada. Divisão em vez de cisão, dualismo em vez de maniqueísmo, „fenómeno“ em vez de „ilusão“, esta é a fórmula “antineoplatónica“ de Kant… Pois o ponto mais alto do dualismo kantiano consiste não, como o neoplatóncio maniqueista, em cindir o ser mesmo na sua síntese, mas apenas em dividir analiticamente a nossa representação do ser.» [So geht es Kant auch bei seiner Paranoiatheorie nicht darum, ob eine Spaltung vorliegt oder nicht, sondern darum, wie getrennt werden muss, damit eine Spaltung ver- mieden werden kann. Teilung anstatt Spaltung, Dualismus anstatt Manichäismus, “Erscheinung” statt “Schein”, dies ist die – antineuplatonische – Formel Kants…. Denn der Clou des Kantischen Dualismus besteht doch darin, nicht, wie die manichaïstischen Neuplatoniker, das Sein selbst in dessen Synthesis zu spalten, sondern nur unsere Vorstellung vom Sein analytisch zu teilen.].(Ib., pp.221-222). Não cabe aqui uma crítica nem à estranha interpretação que Rauer faz do Neopla- tonismo, identificando-o com o Maniqueísmo, nem à sua não menos estranha interpretação da filosofia de Kant, em registo de nosologia psíquica, como uma “Paranoiatheorie”. Há, todavia, na interpretação de Rauer, alguns ingredientes que merecem atenção, nomeadamente, o apontar para a importância dos Träume, obra onde ele quer ver já uma efetiva refutação por Kant dos pres- supostos do Neoplatonismo, de que, segundo ele, se nutria o pensamento de Swedenborg e que andavam difusos na cultura filosófica pós-renascentista e moderna.

da «grande cadeia do ser», que nesse mesmo ensaio se glosa tomando o tópico de An Essay on Man de Alexander Pope2, mas que vai reaparecer, na segunda parte da Crítica do Juízo, transfigurada sob a ideia de uma recípro- ca “teleoformidade externa” (äussere Zweckmässigkeit) revelada pela mútua conveniência dos seres da natureza que os liga como fins em si e por si e ao mesmo tempo como meios uns para os outros3; a rítmica e arquitetónica trinitárias que escandem o pensamento kantiano em todos os seus campos fundamentais (na filosofia transcendental, na filosofia moral, na filosofia da religião, na filosofia política)4; a conceção do “símbolo” e da “ideia esté- tica”, como aquilo que, não sendo capturado nem num conceito determi- nado, nem numa linguagem unívoca, e sendo antes por um ou por outra apenas indicado, todavia, «dá muito que pensar» e põe em movimento as forças vitais do ânimo5; e a consequente recuperação da potencialida- de semântica da linguagem simbólica, não só num sentido estético, mas também como a linguagem estética da moralidade (v. o § 59 da Crítica do

Juízo e o ensaio que é especialmente visado neste artigo) e da religião (v. A Religião nos Limites da simples Razão); o agnosticismo metafísico a respeito

da «coisa-em-si» e das supremas ideias metafísicas não objetiváveis (Deus, Alma, Mundo), que bem pode ser lido como um modo de dizer a absoluta transcendência do que verdadeiramente tem de ser pensado como o in- cognoscível, pressuposto como estando além e antes de tudo aquilo que é objetivável e também conhecível mas só na sua mera fenomenalidade, e de assim consciencializar a condição de douta ignorância que cabe à razão humana; a natureza, na experiência estética que dela nos é acessível (seja na beleza ou na sublimidade da natureza), lida como uma «escrita cifra- da» (Chiffreschrift), um «vestígio» (Spur) ou um «aceno» (Wink) de algo transcendente, que só pode ser lido como tendo uma significação moral6; a ideia (dita de muitos modos) do mundo espiritual como uma comuni- 2. Veja-se o meu ensaio «Analogia e conjectura no pensamento cosmológico do jovem Kant», in: Leonel Ribeiro dos Santos, Ideia de uma Heurística Transcendental. Ensaios de Meta‑Epistemologia Kan‑

tiana, Lisboa: Esfera do Caos, 2012, pp.53 ss.

3. KU § 82, AA 05:425-428.

4. Veja-se o meu ensaio «O pensamento kantiano e o seu ritmo», in: Ubirajara Rancan de Azevedo Marques (org.), Kant e a Música, São Paulo: Editora Barcarolla, 2011, pp.143-178. Na sua exposi- ção da filosofia de Kant, Karl Rosenkranz interpreta a triplicidade kantiana naquele mesmo senti- do que ela tinha no neoplatonismo (de Proclo), ao dizer que «durch Kant’s grossen Instinct, seit Proclus, die Triplicität der Begriffsmomente wieder in die Philosophie eingeführt sey.» (Geschichte

der Kant’schen Philosophie, Leipzig, 1840, p. 161).

5. Veja-se: Ernst H. Gombrich, «Icones Symbolicae. The Visual Image in Neo-Platonic Thought», Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 11 (1948), München: Kraus Reprint, 1968, pp.163-192 (retomado in: Idem, On the Renaissance, vol. 2: Symbolic Images, London: Phaidon, 1985 (3ªed.), pp. 123-195). Gombrich destaca o decisivo papel de Kant (§ 59 da Crítica do Juízo) na res- tauração do conceito neoplatónico de símbolo, de que viriam a alimentar-se a arte e o pensamento estético desde o Romantismo.

dade ou um reino, dos quais também o ser humano faz parte, já neste mundo, entendidos aqueles, porém, não num sentido físico ou hiperfísico (v. Träume) 7, mas sim num sentido moral (v. Grundlegung)8; o ser humano considerado como um ser sem um lugar definido, mas estando antes como que suspenso entre dois mundos, o mundo inteligível ou supra-sensível (subsumido na ideia de Deus) e o mundo sensível (subsumido na ideia de Mundo), como um ser que está no meio, tendo por peculiar tarefa o estabelecer a ligação ou mediação entre aqueles dois mundos, um tema que, tendo surgido na última secção do ensaio cosmológico de 1755, será recorrente em sucessivas modulações e alcança ainda muito significativa expressão nas páginas do Opus postumum9; a ideia de uma íntima analogia

entre a arte e a natureza orgânica, entre a forma estética, como o princí- pio vivo e vivificador na arte, e a forma biológica, que explica a formação e desenvolvimento de um ser vivo10. Tal como Plotino, Nicolau de Cusa e 7. Nos Träume (AA 02: 332) lê-se: «A alma humana deveria ser vista já na vida presente como ligada com dois mundos ao mesmo tempo». A ideia de comunhão do homem com o mundo espiritual pode ter sido sugerida a Kant pela leitura e crítica dos escritos de Swedenborg empreendida nessa obra. Constantin Rauer, que inscreve Swedenborg na linhagem do Neoplatonismo, vê na crítica de Kant às teses do teósofo dinamarquês, levada a cabo nos Träume, já uma decisiva refutação e recusa do Neoplatonismo (ob. cit., p.212), embora reconheça que Kant não podia fazer ideia dessa filiação neoplatónica do teósofo dinamarquês. Sobre o interesse de Kant por Swedenborg, veja-se: Monique David-Ménard, La folie dans la raison pure. Kant lecteur de Swedenborg, Paris, 1990; Gottlieb Florschütz, Swedenborgs verborgene Wirkung auf Kant. Swedenborg und die okulten Phänomene aus der

Sicht von Kant und Schopenhauer, Würzburg: Königshausen & Neumann, 1992.

8. Numa das últimas páginas da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, encontra-se esta declara- ção: «Um ser racional deve ver-se a si mesmo enquanto inteligência (por conseguinte, não do lado da sua faculdade inferior), não enquanto pertencente ao mundo dos sentidos mas ao mundo do entendimento; pelo que tem dois pontos de vista a partir dos quais ele se considera e pode conhe- cer as leis do uso das suas forças, por conseguinte, de todas as suas ações, ora enquanto pertence ao mundo dos sentidos e está submetido a leis da natureza (Heteronomia), ora enquanto, perten- cente ao mundo inteligível, está sob leis que, independentemente da natureza, não são empíricas mas são fundadas apenas na razão.» (Grundlegung, AA 04:452 e passim).

9. Opus postumum, AA 21: 31, 43, 553. A genuína matriz neoplatónica e mesmo plotiniana deste tópico e de suas variações salta à vista se tivermos presente este passo da Enéada 6,24: «As almas vivem como se fosse em dois elementos, como anfíbios, elas são obrigadas ora a viver em cima ora a viver em baixo: os que têm o poder de permanecer em comunidade duradoura com o espírito vi- vem predominantemente lá em cima, os outros, cuja disposição ou destino os impede, vivem aqui em baixo.» Esta ideia da condição anfíbia do homem tem recorrente expressão na antropologia kantiana. O tópico tem a sua primeira aparição e desenvolvimento no ensaio de 1755, Allgemeine

Naturgeschichte und Theorie des Himmels, sendo sugerido aí pelos versos de An Essay on Man de

Alexander Pope: «Placed on this isthmus of a middle state /… He hangs between…» e associado à ideia da «grande cadeia do ser» (Great Chain of Being), tema também de inequívoca matriz neo- platónica, como mostrou Arthur O. Lovejoy (The Great Chain of Being. A Study of the History of an

Idea,Cambridge, Mas.: Harvard University Press, 1936,19612). Sobre isso, veja-se o meu ensaio «A

antropocosmologia do jovem Kant», in: Was ist der Mensch? / Que é o Homem? – Antropologia, Estética

e Teleologia em Kant, coord. de Gregorio Piaia, Ubirajara R. de Azevedo Marques, Marco Sgarbi,

Riccardo Pozzo, L. R. dos Santos, Lisboa: CFUL, 2010, pp.225-229.

10. Assim o reconhece Ernst Cassirer, ao identificar e comentar a intuição central que preside à

Marsílio Ficino, Kant é um dos grandes e, aliás, dos muito raros pensadores da forma, da forma formans, do nisus formativus, seja no domínio dos seres vi- vos da natureza (chamar-lhe-á Bildungstrieb, seguindo a expressão cunhada por Blumenbach) ou da bela arte (chamar-lhe-á Einbildungskraft, como a principal faculdade que atribui ao génio, enquanto responsável pelas cria- ções deste). De resto, também algumas noções e distinções estratégicas da filosofia crítica, desde cedo restauradas por Kant da linguagem filosófica dos Antigos, revelam claras ressonâncias do pensamento dos neoplatóni- cos: «mundus archetypus» / «mundus ectypus», «mundus intelligibilis» / «mun‑

dus sensibilis», «mundus noumenon» / «mundus phaenomenon»11. Aqui ficam recenseados, em forma sucinta e provisória, alguns tópicos que sinalizam uma tarefa a que espero poder ainda algum dia voltar e nela me deter de modo mais pormenorizado.

Poderia dizer-se, em face dos tópicos apontados, que Kant é um “neoplatónico” sem o saber, ou que, pelo menos, acolhe, mesmo na estru- tura profunda do seu pensamento, elementos que trazem o selo do Neo- platonismo? Sem dúvida. Mas Kant não tinha consciência de que os tópicos acima referidos fossem de matriz “neoplatónica”. E, de resto, na sua época, tais tópicos nem eram sequer reconhecidos como tais, pois a ideia que em geral se fazia do Neoplatonismo e que, como veremos, o próprio Kant tam- bém ainda partilha, era profundamente negativa e fixada em aspetos ou traços que hoje se podem considerar como sendo muito secundários. Con- tudo, alguns dos apontados tópicos andavam difusos e estavam disponíveis na cultura filosófica seiscentista e setecentista graças sobretudo aos escritos dos chamados “Platónicos de Cambridge” (os mais conhecidos dos quais são Henry More e Ralph Cudworth), pensadores que se moviam ainda no meno da arte e o fenómeno da vida (entre a arte e a natureza, entre a Estética e a Teleologia), que constitui o desenvolvimento de uma ideia que terá surgido com toda a clareza na história da filosofia pela primeira vez com Plotino. Veja-se: Kants Leben und Lehre <1918>, Darmstadt: WBG, 1977, pp.296-297; Gesammelte Werke, Bd. 8, Hamburg: Felix Meiner, 2009, pp. 267-268: «No sistema neoplatónico […], com Plotino […], ocorre pela primeira vez na história da filosofia, formulada com plena clareza, a relação e a correlação pensada entre o problema biológico e o estético, entre a ideia de organismo e a ideia do belo. Ambos radicam, segundo Plotino, no problema da forma e exprimem, se bem que em sentido diferente, a relação do puro mundo das formas com o mun- do das aparências [Erscheinungen]. Tal como na geração dos animais estão em jogo não apenas causas puramente materiais e mecânicas, mas é o ‚logos‘ formante [gestaltende ´Logos‘] o movente propriamente ativo a partir do íntimo que transmite a estrutura caraterística da espécie ao novo indivíduo que surge, assim o processo criador no artista expõe a mesma conexão, vista por um outro lado. Pois também aqui a ideia, que à partida existe apenas como algo espiritual e com isso como um uno-indivizível, se estende no mundo da matéria; o modelo espiritual, que o artista traz em si, força o material e torna-o o reflexo da unidade da forma. […] Pois o fenómeno da beleza tal como o da vida estão ambos compreendidos e incluídos no único fenómeno fundamental da

formação [G e s t a l t u n g].»

11. Como é pertinentemente apontado por Werner Beierwaltes, grande hermeneuta dos pen- sadores neoplatónicos e da tradição de pensamento neoplatónico, nos verbetes que sobre essas expressões assina no Historisches Wörterbuch der Philosophie, Bd. 6. 1984, 235-241.

ambiente criado pelo vigoroso renascimento platónico-neoplatónico dos séculos XV e XVI e cuja influência direta se faria sentir em pensadores como Locke, Newton, Shaftesbury e Leibniz.12 Por outro lado, deve dizer- -se que esses tópicos, apontados como sendo de origem neoplatónica – ou como tendo ressonâncias neoplatónicas –, são profundamente transforma- dos pelo novo sentido que recebem não só do contexto sistemático em que são assumidos como também do novo espírito geral da filosofia crítica.

Foi precisamente na época de Kant e mesmo no decurso da vida do filósofo que viria a ocorrer a mudança decisiva na apreciação e valorização do pensamento neoplatónico, num processo que conduziria à sua autono- mização como forma de pensamento e à sua apreciação como sendo algo distinto do pensamento de Platão, de que resultou, de resto, a própria cria- ção do termo “Neoplatonismo” ou “Escola Neoplatónica”. Nesse processo, os pensadores neoplatónicos dos séculos III a VI (de Plotino a Proclo e respetivos discípulos), que num primeiro momento foram subvalorizados como constituindo uma “seita eclética”, e cujo pensamento fora deprecia- do como sendo uma forma espúria de Platonismo (um platonismo mal compreendido ou mal interpretado) e considerado mesmo como respon- sável pela introdução em filosofia do entusiasmo fanático – da Schwärme‑

rei13 –, ao fim de poucas décadas, acabaria por ver-se apreciado como uma

forma peculiar de filosofia na qual se reconhece uma poderosa energia especulativa e o ponto mais alto alcançado pelo pensamento antigo. Isso acontece já no jovem Fichte, em Novalis, em Goethe, em Schelling, mas confirma-se em Hegel, na apreciação que dessa escola e respetivos pensa- dores ele faz nas Lições sobre História da Filosofia. Na reabilitação hegeliana do Neoplatonismo, em geral, e, em particular, na dos grandes pensadores neoplatónicos Plotino e Proclo, constitui ponto central o propósito de os libertar da fama de visionários exaltados e fanáticos (Schwärmer) e o res- petivo pensamento da etiqueta negativa de “irracional”. Uma tal viragem hermenêutica traduzir-se-á não só na admiração pelo pensamento dos 12. Para uma apreciação do significado histórico e filosófico deste grupo de pensadores, veja-se: G.A.J. Rogers, J.M. Vienne, Y.-C. Zarka (eds.), The Cambridge Platonists in Philosophical Context. Poli‑

tics, Metaphysics and Religion, Dordrecht: Kluwer, 1997.

13. É manifesta a dificuldade de verter para o português o termo alemão Schwärmerei. No contexto do pensamento setecentista, Schwärmerei é o contraponto negativo da Aufklärung, que ameaça as filosofias de feição racionalista ou crítica com o pendor para o “irracional“ (quase sempre acom- panhado pelo entusiasmo e a exaltação e até pelo dogmatismo). Como se verá, Kant considera a “Escola Neoplatónica“ como praticante de um pensamento de “devaneio“ (Träumerei), como a verdadeira fautora da Schwärmerei na história da filosofia e como a responsável pela interpretação do pensamento de Platão num sentido schwärmerisch (Refl. 6050, AA 18:434ss). O tópico da Schwär‑

merei e seus graus e formas é o assunto central das Reflexões 6050-6053 (AA 18:434-439). Sobre

a semântica da “Schwärmerei“ em Kant, veja-se: Norbert Hinske, «Zur Verwendung der Wörter ‘schwärmen’, ‘Schwärmer‘, ‘Schwärmerei‘, ‘schwärmerisch‘ im Kontext von Kants Anthropologie- kolleg. Eine Konkordanz», in Norbert Hinske (Hrsg.), Die Aufklärer und die Schwärmer, Hamburg: F. Meiner, 1988.

Neoplatónicos, mas também na simpatia pelos tópicos neoplatónicos e até, em alguns autores, na adoção da maneira de pensar neoplatónica, sendo reconhecível uma efetiva afinidade entre o Idealismo e o Neoplatonismo.14

Pode, pois, dizer-se que o “Neoplatonismo”, como nome e também como conceito histórico-filosófico, nasce na segunda metade do século XVIII, confirmando-se na última década desse século e alcançando o re- conhecimento do seu significado filosófico e especulativo próprio na pas- sagem do século XVIII para o século XIX. Kant faz parte dessa história a vários títulos. Antes de mais, pela sua peculiar reinterpretação do Plato- nismo, a qual vai contribuir para um verdadeiro renascimento do idealis- mo platónico no pensamento alemão classicista e idealista, de que a sua