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Embora Kant e Hegel concordem no facto de o imperativo moral não ser diferente, quanto ao seu conteúdo prescritivo, da lei jurídica, Kant define esta última como a lei moral no que diz respeito à sua aplicação apenas às ações externas5, e define o direito como o conjunto das rela- ções externas entre os árbitros individuais6. Na Metafisica dos costumes Kant afirma que ética e direito se englobam na doutrina dos costumes, como

Sittenlehre, ou seja, como Moralidade num significado mais amplo7, dife- rentemente do que ele havia argumentado em Fundamentação da metafísi‑

ca dos costumes e na Crítica da razão prática, onde a separação entre as duas

disciplinas correspondia à separação entre moralidade e legalidade. Kant também argumenta que os deveres de virtude são tema da ética: trata-se de deveres que são ao mesmo tempo fins individuais, e que o homem, como Ethik», pp. 331-339.

5. Cf. I. Kant, 1797/98, Die Metaphysik der Sitten [MdS], Gesammelte Schriften [GS], Band 6, pp. 214, 229.

6. Cf. I. Kant, MdS, GS 6, p. 230.

7. Este passagem foi recentemente bem destacado por J.-F. Kervégan, 2015, La raison des normes.

Essai sur Kant, pp. 104-116. Este texto desenvolve alguns argumentos já apresentados pelo autor

em J.-F. Kervégan, 2008, «Remarques sur la théorie kantienne de la normativité, en particulier juridique», pp. 167-169, 173. A relação fundacional que liga liberdade, moralidade e lei é bem expressada também por P. Guyer, que expõe argumentos válidos contra aqueles que negam esta relação, veja-se P. Guyer, 2002, «Kant’s Deduction of the Principles of Right», p. 25.

ser racional e portanto moral, deve assumi-los, sem que estes fins/deveres possam ser encomendados pelo direito8. Pelo contrário, Hegel apresenta o direito abstrato, em primeiro lugar, como o momento no qual a pessoa atribui a si próprio, através de propriedade, «um domínio exterior para a sua liberdade»9 porque o mundo do Espírito objetivo, como mundo da vontade livre que se realiza na eticidade, corresponde a uma segunda natu‑

reza para os seres humanos10.

A questão não é somente terminológica – e na verdade o próprio Hegel não a coloca como tema central nestes termos, e no texto do 1802 sobre o Direito natural, limita-se a assinalar a assonância do termo sittlich com a abertura para a dimensão universal da concreta vida comum que na cultura grega era indicada pelo termo ethos11 – nem sequer é uma mera diferença na partição da moralidade, como Hegel observa na  Introdu‑

ção aos Princípios da Filosofia do Direito, porque «uma divisão filosófica não

é, de modo nenhum, uma classificação exterior […] mas constitui a dife- renciação imanente do próprio conceito»12. Para Hegel a moralidade não se traduz no juízo sobre o que é ou não é moral, mas na reflexão sobre a ação do indivíduo na medida que ela é manifestação da sua livre vontade. A preferência kantiana pela expressão “moralidade” [Moralität] – assim como a assimilação da eticidade à moralidade – são para Hegel indícios da supremacia atribuída por Kant à dimensão meramente interior da relação entre vontade e lei.

Certamente que ambos os filósofos atribuem, em primeiro lugar, ao direito um valor de proibição e coação mas, enquanto para Kant tanto no estado de natureza como no estado juridico, do ponto de vista filosófico, se aplica a mesma lei que todavia, no estado de natureza, não tem força para prevalecer, para Hegel o direito abstrato não se distingue pela falta de força de coação que possa produzir o móbil jurídico, mas pelo modo de existência da própria lei. De facto, no contrato, apesar de se pressupor o reconhecimento mútuo dos contratantes e seu consentimento comum, a lei só existe no indivíduo como uma vontade comum, mas a injustiça, en- quanto afirmação da vontade do particular sobre o universal, mostra a ina- dequação desta lei e afirma a necessidade de mudança para uma vontade universal. Esta vontade não é, no entanto, a “vontade geral” de inspiração rousseauniana e, em geral, a da tradição jusnaturalista, da qual Hegel, em- bora com algumas oscilações na fase juvenil, permanece sempre distante13. 8. Cf. I. Kant, MdS, GS 6, pp. 382-386.

9. G. W. F. Hegel, Grundlinien, TWA 7, § 41. 10. Cf. G. W. F. Hegel, Grundlinien, TWA 7, § 4.

11. Cf. G. W. F. Hegel, 1802-1803, Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts [UwB],

TWA 2, p. 504.

12. G. W. F. Hegel, Grundlinien, TWA 7, § 33 (nota).

A transição entre a particularidade do indivíduo para a universalida- de da lei tem por seu turno uma caracterização lógica:

A necessidade lógica superior realiza o trânsito para a injustiça pois, segun- do ela, os elementos do conceito – aqui, o direito em si ou a vontade como geral e o direito na sua existência que é precisamente a particularidade da vontade – devem ser apresentados como possuidores de uma existência se- parada para si, ou que faz parte da realidade abstrata do conceito.14

É claro que na definição do conceito do direito, em especial para Hegel, o elemento coercivo não pode ser constitutivo, tal como ao invés, a partir de seu ponto de vista, acontece nas doutrinas de Kant e Fichte, onde se começa a partir dos indivíduos e se passa a construir mecanicamente a sua coexistência15. Na figura da moralidade, que para Hegel expressa os li- mites da ética kantiana, a vontade subjetiva reconhece o carácter essencial da vontade universal, mas torna-o um mero Dever‑ser [Sollen,] referindo-se a ele como algo diferente de sua própria essência. Aqui Hegel reassume e aprofunda no contexto ético as críticas metafísicas que já na Fenomenolo‑

gia do Espírito tinha dirigido contra Kant. De facto, no final do momento

“Razão”, Hegel tinha-se queixado da interrupção do processo fenomeno- lógico de recuperação da antiga eticidade, uma interrupção que ele tinha atribuído as figuras como a Razão legisladora [Gesetzgebende Vernunft] e a Ra‑

zão examinando as leis [Gesetzprüfende Vernunft]16. Estas figuras pressupõem a consciência honesta [Ehrliches Bewusstsein], que sonha em dominar o mun- do graças ao seu desinteresse pelas motivações sensíveis, mas já está, na verdade, prisioneira de uma rede de relações concretas e universais que a orientam17.

No entanto, a estrutura formal da lei moral kantiana – baseada sobre a possibilidade de universalizar a máxima da ação –, rejeitada por Hegel como critério para a avaliação do valor moral de uma ação, é pelo contrá- rio aceite por este último quando se trata de avaliar a extensão da puni- ção jurídica: aqui a universalidade formal do imperativo kantiano não tem como resultado o vazio formalismo do Sollen, antes expressa a característica de todas as ações dos seres racionais e estabelece a legitimidade com que um agente pode ser considerado responsável pelas consequências das suas ações.

Neste ponto, talvez seja possível começar a entender a razão pela qual primeiros capítulos do trabalho de G. Duso, 2013, Libertà e costituzione in Hegel, pp. 17-52 e 53-103. 14. G. W. F. Hegel, Grundlinien, TWA 7, § 81 (nota).

15. Cf. G. W. F. Hegel, UwB, TWA 2, pp. 469-472. Este asunto é destacado, entre os outros, por B. Bourgeois, 1986, Le droit naturel de Hegel (1802‑1803). Commentaire: contribution à l’étude de la genèse

de la spéculation hégélienne à Jena, pp. 244 e ss. e por A. W. Wood, 1993, «Hegel’s Ethics», p. 230.

16. Cf. G. W. F. Hegel, 1807, Phänomenologie des Geistes [PdG], TWA 3, pp. 311-323. 17. Cf. G. W. F. Hegel, PdG, TWA 3, pp. 305-307.

a relação entre o Estado e a moralidade é um dos lugares onde muitos dos preconceitos e clichés do confronto clássico entre Kant e Hegel podem ser contestados. Efetivamente, a universalidade formal da razão é ao mesmo tempo fundamento do imperativo categórico – para Kant – e do direito do Estado de punir – para Hegel –; além do mais, Kant não só acredita que os deveres éticos não podem ter a mesma forma de obrigação dos deveres jurídicos, mas nega ao próprio Estado a possibilidade de perdão, ou seja, a possibilidade de apagar uma punição que ele mesmo impôs18. Embora Hegel, assim como Kant, acredite que o perdão é um ato que pertence à religião, ele admite no entanto que o Estado pode concedê-lo, precisamen- te na medida em que o Estado é uma expressão da vontade divina19. Agora não se trata só de uma diferente fixação das partes do mesmo mosaico, mas de duas conceções do próprio conceito de moralidade radicalmente diferentes.

Parece-nos, no entanto, que estas conceções partilham um ponto fun- damental exatamente em relação ao conceito de Estado, ou seja, em ambos os casos, a moralidade não pode ser completamente reduzida às formas de vida do Estado, antes é, com efeito, a condição de possibilidade de alguns conceitos fundamentais da ciência do estado, como a representação e a soberania. Isto tem consequências mais fortes sobre a própria ideia de que o Estado pode promover a moralidade. Mas antes de chegar a este ponto, devemos entender o que constitui a moralidade para cada um dos dois autores, e esta análise requer a consideração de pelo menos dois outros conceitos-chave; o primeiro, sobre o direito de punir e perdoar, já foi par- cialmente destacado: trata-se da religião; e, o segundo, é a liberdade no seu desenvolvimento na história da humanidade.