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A pluralidade de correntes filosóficas: uma profilaxia anti reducionista

Uma questão de metafilosofia

2. A pluralidade de correntes filosóficas: uma profilaxia anti reducionista

A tensão interna da filosofia entre a sua objectividade e a sua singula- ridade conduz-nos à raiz da pluralidade de correntes filosóficas, isto é, as diferenças de perspectiva e tendência que se exprimem através do sufixo “-ismo”.

Por um lado, privilegiando o extremo da singularidade pessoal da filosofia, encontramos a formação de -ismos, a partir do nome de grandes pensadores: o platonismo, o neoplatonismo, o aristotelismo, o tomismo, o cartesianismo, o hegelianismo, o marxismo, etc…

Tempos houve, em que se acreditava que a verdade era una, e que os grandes filósofos a tinham conhecido de algum modo. Não seria, portanto, a verdade, que era o fundamento objectivo do seu pensamento, aquilo que

os dividia entre si. Mas vieram os discípulos e os seguidores, que deixaram de indagar a verdade e se confinaram a repetir os mestres, nutrindo por estes uma obsessiva admiração, e foi, então, da repetição que teria nascido a diferença, por perdas de informação ou falhas de fidelidade às doutrinas iniciais5. Aqui temos uma perspectiva que desvaloriza a pluralidade de cor-

rentes filosóficas que tiram o nome de grandes pensadores: essas correntes significam, sobretudo, repetição dos mestres, degradação da mensagem e distanciamento da verdade.

Contudo, se admitirmos que a filosofia não se faz sem a circunstância e a personalidade de grandes pensadores, porque ela é, por um lado, tão singular como uma obra de arte, então não é de estranhar que grandes figuras da filosofia marquem e influenciem com a sua personalidade as gerações posteriores e outras figuras singulares. Neste sentido, e ao invés da perspectiva há pouco referida, as correntes filosóficas encabeçadas por grandes pensadores não são mera repetição dos mestres, são a criação dia- crónica de famílias de pensamento, nas quais não há anulação da persona- lidade e da diferença dos afiliados.

Entretanto, os grandes pensadores que dão nome a correntes filosó- ficas são casos da figura do autor em filosofia, e a figura do autor é, por sua vez, uma acepção da figura do sujeito. Ora desde a sua viragem socrá- tica para a introspecção que a filosofia se interessou pela figura do sujeito, mormente na construção do conhecimento humano. Conforme se pon- dera a influência do sujeito e do objecto no conhecimento humano, e, no sujeito, a influência dos sentidos e da razão, obtém-se uma pluralidade de perspectivas, que são correntes filosóficas, no domínio da filosofia do co- nhecimento. São correntes de filosofia do conhecimento: o cepticismo ou o pessimismo acerca do conhecimento, que advoga a suspensão do juízo; o racionalismo ou o optimismo acerca da razão e da sua força tutelar no co- nhecimento humano; ou, ainda, o empirismo, que afirma a origem sensi- tiva do conhecimento humano, valorizando, neste, a experiência sensível.

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Por outro lado, se nos voltarmos para o domínio do que pode ser conhecido, para a ponta ou o extremo da objectividade na tensão interna que habita a filosofia, encontramos outra pluralidade de perspectivas que diversifica o domínio do pensável.

Há oposições clássicas neste domínio, como sejam: o espiritualismo ao materialismo; o essencialismo ao existencialismo; o realismo ao nomi- nalismo.

Regressando à questão primigénia grega acerca dos princípios: o que 5. Assim pensava, por exemplo, S. Justino, Diálogo com Trifão, §2.

é que está no princípio, não no tempo, mas na base, no fundo de todas as coisas? – Uma substância material, segundo o materialismo fisicista dos antigos filósofos milésios. – Os átomos, segundo o materialismo atomista da antiguidade (Epicuro, Demócrito). – Uma substância imaterial, como uma inteligência e uma vontade, segundo o espiritualismo que remonta a Anaxágoras (noûs), passa por Aristóteles, caracteriza o neoplatonismo, é adoptado pela teologia das religiões monoteístas, e obtém formulação expressiva na filosofia hegeliana. – Ou ainda, em vez de uma substância primordial, material ou imaterial, a realidade material, económica e histó- rica, em processo de contradições e superações, segundo o materialismo dialéctico.

Retomando a questão clássica do ser: o que é? – “O mesmo é pensar e ser”, disse Parménides6, que assim inspirou uma forte tradição de confian-

ça na inteligibilidade do ser, que tem sido timbre dominante da história da filosofia. Nesta tradição, inscreve-se, desde logo, a identificação do ser com as formas inteligíveis das coisas, segundo o idealismo platónico, e, em ge- ral, com a essência das coisas, dada na definição, segundo o essencialismo. – Contrariando, porém, essa redução do que é ao ser permanente das coi- sas, a filosofia também soube fazer sobressair a existência, ser irredutível à essência, vulnerável ao tempo e às vicissitudes da vida humana, de acordo com o existencialismo, qual forma de humanismo contemporâneo.

Transformando ainda a questão do ser na questão da existência, tam- bém tem a filosofia perguntado: o que existe? – Existem apenas coisas par- ticulares, reduzindo-se a nomes, as ideias e os conceitos universais, segun- do o nominalismo. – Ou, então, existem os universais para além das coisas particulares, segundo o realismo metafísico, com expressão modelar no idealismo platónico. – Ou existem os universais, mas só na mente humana, segundo uma corrente intermédia muito concorrida e cheia de subtis va- riações, que costuma ser dada como conceptualismo.

Transitando da questão do ser para a questão do dever ser, tem a filo- sofia ainda perguntado: o que deve ser? – A virtude, i.e., aquilo que é bom por si e é o justo meio entre dois vícios opostos, segundo a ética clássica das virtudes. – Ou, então, aquilo que é bom para todos, seja de acordo com os defensores do utilitarismo, seja segundo o apriorismo ético, de tipo kantiano.

Se transitarmos para outras disciplinas filosóficas, encontraremos ou- tras tantas tendências e correntes mais ou menos estabelecidas e desenvol- vidas, como, por exemplo, a oposição clássica entre naturalismo e conven- cionalismo, em filosofia da linguagem.

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Urge, então, a questão: as tendências e correntes filosóficas, que di- videm a filosofia, são diferenças acidentais a eliminar ou são diferenças inerentes e constituintes da filosofia, no seu exercício individual e desen- volvimento histórico?

A história da filosofia não atesta a favor do desaparecimento tenden- cial e progressivo deste tipo de diferenças. Antes pelo contrário, as tendên- cias e correntes multiplicam-se com a diversificação e especialização das disciplinas da filosofia e com os desafios das novas questões que aí surgem. As tendências e correntes filosóficas nascem com as posições e doutrinas que se opõem em resposta a cada questão filosófica. Julgamos, por isso, que as tendências e correntes filosóficas são diferenças inerentes à filoso- fia, no seu exercício individual e desenvolvimento histórico.

Mas porquê? Que sentido têm as tendências e as correntes na cultu- ra filosófica? Atentando bem, a pluralidade e oposição de tendências e correntes filosóficas desempenha, ao longo dos tempos, a função cautelar da máxima socrática – só sei que nada sei – i.e., elas evidenciam que ne- nhuma filosofia particular ou partilhada tem a posse total da verdade. As tendências e correntes em filosofia não se refutam umas às outras, antes denunciam as insuficiências umas das outras; cada uma delas acusa a insu- ficiência da sua oposta.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira Universidade de Lisboa

Abstract

In this paper we shall discuss the concept of «gender» and its importance in the de- velopment of Women Studies. We shall assign a place to Gender Philosophies within Feminist Philosophies, stressing its main stages, problems and vicissitudes. A special emphasis will be given to the relation of feminism and multiculturalism, specifying the tensions between women’s individual autonomy and the integration in ethnical groups. The dangers originated by a total acceptance of multiculturalism in what concerns women’s rights will be discussed. The paper ends with the analysis of a book - Bas les

voiles - where a student testifies the humiliation of being compulsory veiled, showing

that this question is much more significant than a mere dress code.