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A pós modernidade iniciada em finais do século XX prolonga-se até aos dias de hoje. A sua linha dominante é o ataque às grandes narrativas, aos conceitos englobantes, às teorias unificadoras. A atenção à diferença e às múltiplas diferenças impõe-se como metodologia de trabalho, aco- lhendo-se as orientações díspares, mesmo quando se apresentam entre si discordantes.

Os estudos feministas de terceira vaga desenrolam-se neste contexto pós-moderno, sofrendo a influência profunda de filósofos como Derrida, Lyotard, Deleuze, Foucault e Lacan. O terreno das teorias de género deixa de ser homogéneo e torna-se um palco de lutas onde se atacam posicio- namentos até então unanimemente aceites. A igualdade convive com a pluralidade e com a diferença. As posições essencialistas são o maior alvo das críticas empreendidas pelos feminismos “para além do género”. Ne- las a defesa de um sujeito feminino abstracto é violentamente contestada pois não se pode falar de mulher mas sim de mulheres. A desconstrução e a fragmentação são as metodologias dominantes que procuram dar voz a pequenos grupos, com o estudo das suas idiossincrasias, legitimando-as e conferindo-lhes um estatuto de aceitabilidade social. O debate igualda- de/diferença repensa-se em termos de unidade /diversidade. Como nos diz Judith Butler, a diferença surge no interior da identidade e deverá ser acarinhada. O conceito de género é fonte de perturbação e causador de conflitos.6

A luta iconoclasta empreendida por Butler visa destruir o conceito de género, promovendo um ataque cerrado a uma possível identidade fe- minina. Por isso assinala como não naturais as categorias ontológicas de masculino e de feminino aplicando às mesmas uma genealogia desconstru- 6. Judith Butler, Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity, New York, Routledge, 1990.

tora. Butler pretende mostrar o que há de político em certas designações como “masculino” e “feminino”. De facto, esses termos resultam de deter- minadas instituições, de práticas com múltiplas e difusas origens, surgindo como consequência de um regime heterossexual em que domina o falo- gocentrismo. A oposição dicotómica homem/mulher não é natural pois resulta de uma construção, tão válida quanto outras possíveis. A filósofa americana evidencia a arbitrariedade deste binómio e prefere tomar como ponto de partida outras categoria não determinadas pela heterossexuali- dade, como é o caso de lésbicas, gays ou travestis.

Nos seus múltiplos escritos Butler utiliza uma perspectiva interdisci- plinar, ultrapassando muitas vezes um contexto meramente académico.

Gender Trouble surgiu como uma obra de referência nos estudos feministas.

Com ela inicia-se a desmontagem do conceito de género em três domínios discursivos: 1: A linguagem e a sua responsabilidade na construção das categorias de sujeito, sexo e desejo; a relação entre heterossexualidade e falogocentrismo; o questionamento das práticas culturais causadoras de descontinuidades e dissonâncias entre sexo, género e desejo. 2: O papel da psicanálise na produção de uma matriz heterossexual; até que ponto a psicanálise instaura um inquérito anti-fundacionalista ou, pelo contrário, contribui para reforçar as hierarquias vigentes? 3: A importância dos actos corpóreos subversivos; a desnaturalização da categoria de “corpo” através de certas práticas que demonstram um para além da moldura binária.

Ser mulher, ou melhor fêmea (female, como escreve Butler) é uma performance cultural. As categorias de identidade e de diferença são apre- sentadas como convencionalmente estabelecidas. É através de actos per- formativos que o corpo se afirma e que os sexos se definem. O “género” nada mais é do que performance. Contudo «[…] não é uma performance, fruto de uma escolha de um sujeito originário pois o género é performativo, no sentido de que constrói, como sendo um efeito, o próprio sujeito que aparenta exprimir»7

Para acentuar esta performatividade Butler recorre a “travestis” e a “drags.” Quando estes tentam imitar os comportamentos femininos paro- diam a noção de mulher, pondo em evidência a ambiguidade deste con- ceito. As actuações ou performances a que se vêem obrigados acentuam a sua libertação relativamente ao sexo. E a aprendizagem e o treino que lhes são exigidos para conseguirem comportar-se “como mulheres” mostram o que há de teatral e de forçado no chamado “comportamento feminino”.

Para Butler a universalidade é fictícia. A construção de uma repre- 7. «[…] gender is not a performance that a prior subject elects to do, but gender is performative in the sense that it constitutes as an effect the very subject it appears to express.», Judith Butler, «Imi- tation and Gender subordination» in Diane Fuss (ed.), Inside/Out, New York, Routledge, 1991, p. 24.

sentação unívoca de género deixa sempre de fora aquelas e aqueles que se desviam da norma. Por isso o conceito de mulher deverá manter-se aberto e flutuante, permeável a significações mutáveis. A insistência sobre a uni- dade da categoria “mulher” recusa a multiplicidade sobre a qual as mulhe- res concretas se constroem. A identidade torna-se um ideal normativo que abafa vivências e experiências concretas.

Uma abordagem antifundacionalista como a que Butler nos propõe, recusa a identidade como premissa, denuncia-a como um ideal normati- vo não a considerando como uma experiência real. As teses desta filósofa americana pretendem demonstrar que as fronteiras delimitadoras do con- ceito de mulher são políticas. À maneira de Foucault, Butler sustenta que os sistemas jurídicos de poder são os produtores dos sujeitos que depois pretendem representar. A crítica feminista terá que compreender que a categoria “mulher” é criada pelas próprias estruturas de poder através das quais a emancipação é procurada. O conceito de género é fruto de uma intersecção com a história, com a política, com as diferentes culturas. A universalidade do sujeito feminino é fictícia pois, de facto, ela encontra- -se minada pelo constrangimento do discurso representacional no qual funciona.

O combate empreendido por Butler relativamente à reificação do conceito de género abriu novas perspectivas à causa das mulheres, mos- trando que uma heterossexualidade rígida contraria as próprias preten- sões feministas do direito à diferença, tornando-se, como tal, inimiga de uma política feminista. Perguntamo-nos no entanto se este posicionamen- to que recusa qualquer tipo de essencialismos, apresentando-se como de- fensor da diversidade, não acarretará também efeitos perversos. Um deles é a dificuldade em colocar os estudos feministas num registo científico pois como sabemos a abstracção é uma exigência da investigação científica e esta trabalha com conceitos e não com indivíduos particulares, apoia-se em generalidades e não em desvios. Outra consequência não menos grave para a causa das mulheres é o facto de a sua luta emancipatória perder um sujeito: se não se pode falar de um sujeito feminino, em nome de quê ou de quem se propõem reivindicações e se contestam injustiças? Privando as mulheres das características que lhes são próprias, enfraquece-se simulta- neamente os direitos que lhes são devidos e nega-se a especificidade dos abusos que contra elas se cometem, pelo facto precisamente de serem mu- lheres. A violência doméstica, os abusos sexuais, as violações, etc. passam a ser classificados como ofensas corporais. As regalias concedidas às mu- lheres no desempenho de certas funções especificamente femininas como a maternidade ou a amamentação deixam de ter sentido. Levadas às suas últimas consequências, as teorias exemplificativas de um feminismo para além do género, poderão conduzir ao silenciamento da luta pela emanci- pação da mulher.