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Pessoalmente identifico-me com as posições feministas defendidas por Susan Okin. Por mais respeito que tenhamos pela autonomia cultu- ral, há direitos universais que devem ser salvaguardados. Eles constituem o actual património ético da humanidade, levaram séculos a consolidar-se e têm vindo a ser progressivamente inscritos em textos produzidos por ins- tituições internacionais relevantes. É o caso da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 1948 pelos países que então integravam a ONU. Os dois primeiros artigos desse texto apresentam como indiscutí- vel a liberdade, igualdade e fraternidade de todos os seres humanos sem distinções de qualquer espécie:

artº 1 : Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

dades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomea- damente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião pública ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.10

Parecia então consensual que tudo o que pusesse em causa a digni- dade da pessoa humana, deveria ser combatido e rejeitado. Tal não acon- teceu e ainda hoje constatamos que muitas mulheres são discriminadas, evidenciando-se no quotidiano das mesmas algumas marcas degradantes que as suas culturas de origem lhes impõem. É o caso controverso do uso do véu. Não penso que se trate de um mero dress code, como recentemente ouvi dizer a um conferencista muçulmano num congresso sobre religiões. Não estamos perante uma questão trivial, de somenos importância como pudemos constatar aquando da discussão deste problema em França, há alguns anos atrás. A controvérsia gerada sobre o uso do véu nas escolas esteve longe de ser pacífica e as opiniões digladiaram-se, acabando por triunfar a proibição desta prática. Para uns a interdição imposta afirmou-se como um acto de prepotência do Estado francês sobre os hábitos da co- munidade muçulmana, como um desejo de nivelar o vestuário feminino, representando uma intrusão abusiva num dado padrão de cultura. Para outros o uso do véu era um problema que só interessava aos islâmicos e defendiam que, quanto muito, seriam as mulheres muçulmanas a pronun- ciar-se sobre este hábito. Finalmente houve vozes que sustentavam ser o uso do véu uma medida discriminatória pois só se aplicava às mulheres. A minha simpatia vai para este último posicionamento.

A solução encontrada para agradar a todos foi a de interditar, dentro da escola, o uso de símbolos religiosos susceptíveis de identificar quais- quer crenças. Esta decisão calou, pelo menos durante algum tempo, os ânimos mais acesos. Penso no entanto que o uso do véu ultrapassa uma mera simbologia religiosa pois a imposição de cobrir a cabeça só se aplica às mulheres, obrigando-as a esconder parte do seu corpo. É verdade que nem todas as muçulmanas “agradeceram” esta legislação que as favorecia pois algumas delas diziam sentir-se protegidas quando veladas. O que não impede que tal imposição, tal como a de usar o chador, ou a burka, seja um atentado à dignidade, liberdade e autonomia das mulheres que são obri- gadas a fazê-lo.

Nada melhor do que um testemunho para nos inteirarmos do pro- blema. Por isso apresentamos o protesto de alguém que sentiu na pele a obrigatoriedade de andar tapada - Chahdortt Djavann, uma iraniana que foi estudar para França e que pôde então falar livremente sobre a obrigato- riedade de cobrir a cabeça com um lenço, enquanto estudante na sua terra 10. Declaração Universal dos Direitos do homem, ONU, 1948.

natal.11 O relato vivencial que então escreveu começa do seguinte modo: «Usei o véu durante dez anos. Era o véu ou a morte. Sei do que falo»12

A partir dessa experiência pessoal que ocorreu dos treze aos vinte e três anos da sua vida, Djavann desmonta o que está por detrás dessa impo- sição - o desejo de inculcar na população feminina a ideia de que esta é um objecto potencial de delito. As mulheres são culpadas como possíveis provocadoras do desejo masculino, constituindo uma ameaça permanente à moral e aos bons costumes. O uso do véu coloca-as, desde a adolescên- cia, no mercado do sexo e do casamento e define-as em função do olhar dos homens. O pudor e a vergonha das mulheres são a garantia da honra e do zelo masculinos. Contra isso Chahdortt escreve: «O corpo feminino é um objecto sexual que é escondido, que é denegrido, um pouco como um acessório sexual que teríamos vergonha de utilizar»13 e também: «Dos treze aos vinte e três anos fui reprimida, condenada a ser uma muçulmana, uma mulher submetida e prisioneira debaixo de um véu negro. Dos treze aos vinte e três anos. E não deixaria ninguém dizer que foram os anos mais belos da minha vida»14

Este testemunho, como muitos outros do mesmo tipo, interpela as filosofias de género. Um dos problemas que as mantém actuais é precisa- mente o modo como se poderão/deverão relacionar com o fenómeno da multiculturalidade, problematizando a relação entre valores e culturas e levando-nos a encontrar soluções em que todos os seres humanos, homens e mulheres, se encontrem nas suas diferenças, embora pisando sempre um terreno em que se respeite a dignidade de cada um e de cada uma.

Uma missão que sempre coube à filosofia e na qual as filosofias de género se devem empenhar.

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11. Chahdortt Djavann, Bas les voiles, Paris, Gallimard, 2003.

12. « J’ai porté dix ans le voile. C’était le voile ou la mort. Je sais de quoi je parle.» Ibidem, p.7. 13. «Le corps féminin est un objet sexuel qu’on cache, qu’on dénigre, un peu comme un acces- soire sexuel qu’on aurait honte d’utiliser.» Ibidem, p. 13.

14. «De treize à vingt trois ans j’ai été réprimée, condamnée à être une musulmane, une soumise, et emprisonnée sous le noir du voile. De treize à vingt trois ans. Et je ne laisserai personne dire que ce furent les plus belles années de ma vie.» Ibidem, p. 7.

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