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Guilherme de Moerbeke – novas referências, novos conceitos O ponto de partida em que nos suportamos é-nos proporcionado por

Guilherme de Moerbeke na encruzilhada do macromodelo político moderno

3. Guilherme de Moerbeke – novas referências, novos conceitos O ponto de partida em que nos suportamos é-nos proporcionado por

Verbeke, ao afirmar que Guilherme de Moerbeke além, de todas as suas hesitações interpretativas, pretende capturar o sentido original do texto aristotélico39. A partir daí, não encontrando correspondência nos termos

latinos, como também o observa Schmidt, seria inevitável criar «palavras novas»40. Esta nova linguagem foi o princípio do chamado «aristotelismo

político medieval»41.

É assim, após ter feito a revisão da translatio lincolniensis e de provavel- mente ter frequentado o primeiro curso de Alberto Magno sobre a Ética (1248-1252), que Guilherme de Moerbeke leva a cabo a tradução da Polí‑

tica, introduzindo novas acepções e transliterando (i.e., não traduzindo)

inúmeros conceitos gregos originais.

Desde logo cabe referir o aparecimento da tradução moerbeckena

communicatio politica, como forma de traduzir a expressão grega politikè koi‑ nonia. Citemos este passo, que inicia a Política:

Quoniam omnem civitatem videmus communitatem quandam existentem et omnem communitatem boni alicuius gratia institutam (eius enim quod vide- tur boni gratia omnia operantur omnes), manifestum quod omnes quidem bonum aliquod coniecturant, maxime autem principalissimi omnium om- nium maxime principalis et omnes alias circumplectens, haec autem est quae vocatur civitas et communicatio politica.42

O frade flamengo, seguindo o texto aristotélico, vê a civitas (polis) como expressão máxima do desenvolvimento irrecusável da comunidade em função do bem, à qual, por isso mesmo, podemos chamar communicatio

politica (politikè koinonia), reunindo, numa prioridade de natureza (i.e., a

38. Eis um outro exemplo: ∆ήμοσ enim Graece, Latin plebs est.» (ALBERTO MAGNO, Ethicorum Lib. X, p. 541).

39. Cf. VERBEKE, G., «Moerbeke, traducteur et interprète…», pp. 8-9.

40. Cf. SCHMIDT, J., «A Raven with a Halo: the Translation of Aristotle’s Politics», History of Political

Thought, vol. 7 (1986), p. 299.

41. Vd. LAMBERTINI, R., 1999, «La diffusione della ‘Politica’ e la definizione di un linguaggio politico aristotelico», Quaderni Storici, 102, pp. 677-704.

natureza do homem enquanto ‘animal político’), esse bem de grau máxi- mo que a evidencia sobre todas as coisas.

Lembre-se que, na translatio imperfecta, Moerbeke traduzira koinonia por communicatio, communitas ou communio. O sintagma grego equivale aí a

communitas politica43. Agora, na translatio perfecta, reitera a posição de Gros-

seteste, que também traduzira koinonia politikè por communicatio politica44.

Tal facto explica, por um lado, o aparecimento desta locução em Al- berto Magno, Duns Escoto, Guilherme de Ockham e Marsílio de Pádua45.

Por outro lado, quanto à tradução, importa referir que Moerbeke dispo- nha de outras opções possíveis, tais como societas, respublica ou mesmo ci‑

vitatis, termos correntes na centúria de duzentos46. Pelo que a questão a

colocar respeita às razões do tradutor, tendo preferido formar o hibridis- mo, communicatio politica. Schmidt indica duas razões. A tradição da Vulgata e a juridicização romana da civitas e consequente perda de ‘politicidade’. Com efeito, o termo koinonia, muito frequente na versão grega do Novo Testamento (especialmente em São Paulo), aparece traduzido na versão latina quase sempre por communicatio, denotando uma certa «associação» e «participação». São Jerónimo não pôde, porém, ajudar quanto à tradução de politikè ou de qualquer outro termo derivado de polis, pelo simples facto de este não corresponder ao sentido do texto aristotélico. Na verdade, o termo polis ocorre frequentemente no Novo Testamento, sendo regular- mente traduzido por civitas. Mas os termos dele derivados são extrema- mente raros e pouco ou nada têm a ver com o significado aristotélico de

polis, que designa sempre uma forma de ‘associação’ e ‘participação’, quer

como comunidade política no sentido de comunidade de cidadãos quer enquanto comunidade geográfica dos residentes47.

Guilherme de Moerbeke terá chegado, deste modo, apoiado na tradi- ção da versão latina da Sagrada Escritura, mas sempre, em qualquer caso, em confronto com o texto aristotélico, à formulação da expressão commu‑

nicatio politica; a polis, isto é, a civitas pode tomar a forma de uma communi‑ catio politica (politikè koinonia).

Aquilo que é chamado civitas (vocatur civitas) é, portanto, a comuni- dade política, isto é, a comunidade de cidadãos (politai), o que, de facto, compreende a verdadeira intenção do dizer de Aristóteles. Por três ordens de razão: 1. porque todas as comunidades visam algum bem; 2. porque a comunidade mais elevada de todas e que engloba todas as outras visará 43. Aristoteles Latinus XXIX. 1, Politica: libri I‑II, 11 (translatio prior imperfecta), p. 3 (1252 a 7). 44. COLAS, D., 1991, «Fanatisme et société civile. ‘L’ordre Politique’ chez Spinoza», Théologie et

Droit dans la Science Politique de L’État Moderne, École Française de Rome, Paris-Padova, p. 319. 45. Como é sabido, todos os grandes autores da escolástica medieval trabalharam sobre a tradução latina de Moerbeke.

46. Cf. SCHMIDT, J., «A Raven with a Halo…», p. 308. 47. Cf. SCHMIDT, J., «A Raven with a Halo…», p. 300.

o maior de todos os bens; e 3. porque uma tal comunidade – correspon- dendo à cidade – constitui propriamente a comunidade política. Mas e por outro lado, se toda a comunidade política é uma cidade, nem toda a cidade é uma comunidade política. Torna-se evidente, portanto, que a não tradução de koinonia por civitas, societas ou respublica, mas por communicatio, resulta directamente da interpretação do texto aristotélico48.

Com efeito, repare-se, em especial, no uso mais reiterado do helenis- mo politica, em vez do adjectivo latino civilis. É que apesar de traduzir o termo polis por civitas, o frade dominicano transliterou os termos deriva- dos de polis, tais como: politeia, politike, politicum, politikos, politis, politeuma,

politeuein, politias, politicam, etc. E assim de algum modo começou, como

observa Rubinstein, a história da palavra politicus no Ocidente. Embora o termo seja conhecido pelo menos desde Boécio, é só após a tradução de Moerbeke que ele passa a revestir uma gama de significados inéditos, deri- vados de polis (v.g., «cidade», «Estado», «constituição»)49.

Construtivo para o nosso propósito parece ser também a indicação acerca dos três regimes políticos (politias). Moerbeke introduz nesta descri- ção igualmente a terminologia cunhada na tradução da Ética, bem como os desvios correspondentes. Assim escreve ele:

Quae quidem igitur circa politias principales [...]. Transgressiones autem dictarum tyrannis quidem regni; oligarchia autem aristocratiae, democratia au- tem politiae. Tyrannis quidem igitur est monarchia ad conferens monarchizan‑

tis, oligarchia autem ad id quod abundantium, democratia autem ad conferens

egenorum: ad id autem, quod expedit communi, nulla ipsarum.50

Ou ainda:

Quoniam autem in prima methodo politiarum divisimus tres quidem rectas

politias, regnum, aristocratiam, politiam, tres autem harum transgressiones,

tyrannidem quidem regni, oligarchiam autem aristocratiae, democratiam autem

politiae, et de aristocratia quidem et regno dictum est […] adhuc autem quid

differant invicem aristocratia et regnum et quando oportet regnum putare, determinatum est prius: reliquum de politia percurrere ea, quae communi nomine appellatur, et de aliis politiis, oligarchia et democratia et tyrannide51.

Moerbeke translitera e latiniza, transcreve e ajusta ao latim, sempre convocando, em termos hermenêuticos, o verdadeiro sentido do texto 48. Cf. MARTINS, J. A., «Sobre as origens do vocabulário...», p. 64.

49. Vd. RUBINSTEIN, N., 1986, «The history of the word politicus in eraly-modern Europe», in A. Pagden (ed.), The languages of political theory in early‑modern Europe, Cambridge, Cambridge Univer- sity Press, pp. 41-56.

50. GUILHERME DE MOERBEKE, Aristotelis Politicorum libri octo..., pp. 150 e 179-180 (1274 b 5 e 1279 b 4-9). Itálico nosso.

51. GUILHERME DE MOERBEKE, Aristotelis Politicorum libri octo..., pp. 377-378 (IV, 2, 1289 a 7-17).

aristotélico, motivo pelo qual parece hesitar por vezes entre o emprego de um termo ou de outro52. Mas traduz em terminologia filosófica um modelo

‘político’ do viver onde simultaneamente se acentua o valor do individuo humano e os membros da comunidade.

Todos os tratados políticos escritos entre os séculos XIII e XVIII acei- tam a distinção destas três formas de governo, bem como as três formas degeneradas (monarquia, aristocracia, timocracia e tirania, oligarquia e demo‑

cracia, respectivamente)53.

Em síntese, Guilherme de Moerbeke testemunha bem quanto o co- nhecimento de uma obra pôde alterar o destino comum a narrar. A partir de então, aderindo ou reagindo, todos integram a fileira aberta por este frade dominicano. Está em curso a transição de uma época, onde se apro- fundará, inelutavelmente, o sentimento do naturalismo da ordem social e da sua necessidade da primazia do bem comum sobre o bem individual – o que confirma uma evolução política favorável à autonomia do Político54.

4. Ecos imediatos e mediatos da Política – a «comunidade política»