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Dentro de uma perspectiva escolástica do século XVII, que reflete teoricamente a tradição aristotélico-tomista em sua enorme maioria, temos um quadro da relação dos corpos com as qualidades de maneira objetiva. Os corpos possuem as qualidades ditas sensíveis, que são independentes dos corpos e estão “depositados” de alguma forma neles. As qualidades sensíveis são acidentais, visto que uma bola esférica, por exemplo, continua sendo uma bola independentemente de sua cor. Seria perfeitamente pos- sível que duas bolas geometricamente idênticas e do mesmo material pos- suíssem cores diferentes, visto que a cor era tida como distinta da própria matéria e, consequentemente, do corpo. A forma como se relacionam as qualidades sensíveis com os objetos sempre foi um problema difícil. Uma qualidade sensível nunca está sozinha no mundo, sempre está associada ou “depositada” em um objeto, porém, ela é assumida pela tradição aristotéli- ca como sendo uma entidade ontologicamente distinta do próprio corpo. Nossos sentidos simplesmente servem para captar estas qualidades que já estão nos objetos, eles não possuem nenhum papel formativo, sua função é meramente a de captação das qualidades existentes, como as percebemos, nos corpos externos.

O século XVII pode ser considerado um dos períodos mais revolu- cionários de todos os tempos para a filosofia das ciências naturais, muitos estudiosos chegam a estabelecer a Revolução Científica do século XVII como o início histórico da ciência contemporânea. Algumas de suas ca- racterísticas mais marcantes seriam: a adoção do mecanicismo por muitos filósofos, o movimento intelectual antiaristotélico e uma matematização do mundo numa retomada de um viés platônico para a investigação da natureza. Essas tendências acabaram por estabelecer novos parâmetros de investigação, pois o apelo ao sensível diminuiu cada vez mais, e o que foi sendo posto em seu lugar foi uma priorização da racionalidade e do pen- samento abstrato. O enfoque nessas ideias acabou por gerar uma desobje- tivação das qualidades sensíveis. Dentro de um paradigma puramente me- canicista essas qualidades são colocadas fora do corpo, e assumidas como meras impressões sensíveis formadas pela mente de um individuo. Nesta perspectiva o aparato cognitivo está efetivamente formando algo que não é externo ao próprio indivíduo, ele não é apenas uma estrutura de cap- tação do real, mas uma instância criadora de uma realidade. Dentro de uma perspectiva cartesiana, que é um exemplo clássico de mecanicismo

estrito, todo nosso mundo colorido, cheiroso, sonoro, saboroso, quente ou frio não existe fora da mente humana. Uma música não está presente no ambiente e nem no instrumento musical, o que existe efetivamente para o mecanicista são movimentos do ar (matéria em movimento), que em sua natureza vibratória afetam nosso aparato cognitivo e são geradas na mente as notas musicais como dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, do, re... Porém, elas não têm existência fora da mente humana, pelo menos não enquanto notas musicais. A cor, por exemplo, seria apenas a impressão formada na mente pelo movimento de pequenas partículas, e jamais algo que efetivamente pertence ao corpo. O mesmo é válido para as outras qualidades sensíveis.

2 - O problema da investigação das qualidades sensíveis em um

paradigma mecânico dentro de uma perspectiva da filosofia

experimental

A atividade prática de um programa laboratorial dentro de uma fi- losofia experimental implica em um trabalho com um objeto. A forma pela qual a sociedade científica entrava em sincronia no século XVII era devido aos resultados singulares impostos por objetos quando submetidos a ambientes controlados. Um objeto é necessário dentro desta perspectiva, pois se espera que ele impacte da mesma forma os diversos membros da comunidade, espera-se que este objeto externo se imponha e desta forma estabeleça consenso. Um típico exemplo disso, como já foi dito, é a adição de um dado objeto dentro de uma câmara de vácuo.

Existe neste caso um problema então caso o paradigma mecânico seja considerado juntamente com o programa laboratorial da filosofia expe- rimental. Como é possível investigar experimentalmente uma impressão da mente? Como é possível adicioná-la em uma bomba de vácuo? Como é possível adicionar a ela um ácido ou submetê-la a uma grande pressão? Isso é simplesmente impossível. A solução encontrada pelos integrantes da

Royal Society of London pode ser encontrada nas páginas de Robert Boyle,

membro fundador da instituição. Na obra The Origins of Forms and Qualities Boyle fala sobre uma propriedade chamada TEXTURA:

Mas agora existe no universo grande variedade de corpúsculos relaciona- dos com outros, fazendo surgir na matéria dois novos acidentes ou eventos [...] chamados Postura (ereto, inclinado ou horizontal) [...] e a maneira de estarem dispostos, caso um esteja na frente ou atrás do outro que pode ser chamado de Ordem [...] Quando muitos corpúsculos se agrupam juntos para compor qualquer corpo distinto [...] então dos seus outros acidentes ou modos (figura e tamanho), juntamente com esses dois últimos mencio- nados (postura e ordem) emerge certa disposição ou arranjo das partes no todo, que nós podemos chamar de textura.2

Logo, uma nova propriedade mecânica, que existe objetivamente em um corpo e é uma propriedade necessária, conhecida como TEXTURA, emerge quando vários corpúsculos se agrupam. Ela não existe nas partícu- las isoladas, mas obrigatoriamente existe em seus agrupamentos posterio- res e tem um papel fundamental no estudo das qualidades. Esta estrutura permite agora identificar certas qualidades com a disposição de partes de um corpo. Segue outro trecho que deixa evidente como a qualidade sensí- vel é vista como objetiva nestes casos:

Considero o gosto como pertencente ao objeto (sob a noção que coloco), como a qualidade ou qualquer outra coisa que permita ao corpo, por sua operação, produzir em nós aquela sensação que nós sentimos ou percebe- mos quando dizemos gosto.3

Resumindo, a textura é um conceito que permite objetivar as quali- dades sensíveis dentro de um paradigma mecânico, pois agora existe uma identificação da textura como qualidade, ou seja, enquanto algo distinto da sensação na mente do animal que a produz. Outras citações que corro- boram com essa ideia no autor seguem:

Eu não nego que os corpos possam ser ditos, em um sentido muito favorável, dotados daquelas qualidades que nós chamamos de sensíveis, mesmo que não existisse nenhum animal no mundo [...] neles existe a disposição dos seus corpúsculos constituintes que, caso sejam devidamente aplicados aos sensores de um animal, devem produzir tais qualidades sensíveis que um corpo de outra textura não produziria [...]4

Eu não vejo porque nós não podemos conceber que aquelas qualidades que nós chamamos de sensíveis (por exemplo), em virtude de certa congruência ou incongruência com as figuras ou textura (ou outros atributos mecânicos) das pequenas partes com nossos sentidos, as porções de matéria modificadas estariam aptas a produzir diversos efeitos, devido aos quais nós dizemos que o corpo está dotado com qualidades; ainda que elas não estejam nos cor- pos de nenhuma forma como entidades reais ou distintas, não diferindo da própria matéria, possuindo apenas determinado tamanho, forma e outras afecções mecânicas. 5

Agora com isso existe a possibilidade de investigação das qualidades sensíveis por parte da filosofia experimental, mesmo assumindo os paradig- mas mecânicos de matéria e movimento. Não é possível colocar uma per- cepção subjetiva em um ambiente controlado, mas eu posso perfeitamente adicionar um corpo que possui uma dada textura a esse ambiente. Aí se instaurou uma diferença entre a sensação subjetiva formada pela mente 3. R. Boyle, 2000, «Mechanical Origin of Qualities», p.365.

4. R. Boyle, 2000, «The Origins of Forms Qualities», p. 381. 5. R. Boyle, 2000, «The Origins of Forms Qualities», p. 310.

e as estruturas materiais de disposição de um corpo, ou seja, a qualidade enquanto sensação e a qualidade enquanto corpo. Mesmo hoje o pensa- mento das ciências naturais é focado em observar as qualidades como ob- jetivas. E isso não acontece por acaso. Dada à natureza de uma investigação experimental isso é praticamente uma necessidade. Como isso funciona- ria na prática? Existe alguma evidência experimental que foi desenvolvida para colaborar com a ideia das qualidades sensíveis como ontologicamente dependentes da matéria?

3 - Negação das qualidades sensíveis enquanto entidades