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2 QUADRO REFERENCIAL TEÓRICO DO PENSAMENTO PÓS-META-

2.2 Aspectos sociológicos do agir comunicativo

2.2.1 A colonização do mundo vivido e o bloqueio da razão

A concepção de mundo vivido é desenvolvida por Habermas a partir da tradição fenomenológica que remonta a Husserl, mas não como algo constituído pela atividade inten- cional de um eu transcendental. O mundo da vida deve ser introduzido como conceito com- plementar do agir comunicativo (HABERMAS, 1989). Ele, inicialmente, é dado ao filósofo e ao cientista da mesma maneira que ao leigo. Trata-se de um saber inicial ligado aos contextos culturais e às comunidades, isto é, um saber implícito da práxis comunicativa e do cotidiano, do mundo no qual vivemos, agimos e falamos com os outros. Numa palavra, um saber da pré- -compreensão, que, em princípio, determina a interpretação dos proferimentos dos atores, tal qual um saber contingente e a priori, mas no sentido social, relativo às formas de entendimen- to intersubjetivo.

O mundo da vida, segundo Habermas (2012b), não apenas forma o contexto para os processos de entendimento mútuo, mas também fornece os recursos para isso. O mundo da vida oferece uma provisão de obviedades culturais, lugar de onde os participantes da comuni- cação tiram seus esforços de interpretação, os modelos de exegese consentidos. Ele é um re- servatório de saber, em que já estão previamente armazenados os modelos de interpretação e as capacidades semânticas de que necessitamos para concretizar um ato de fala: o mundo da vida forma um horizonte de entendimento e oferece evidências culturais das quais os partici- pantes, no ato de comunicar, retiram padrões de interpretação. Ele constitui uma reserva de ideias e convicções não problematizadas de início, um celeiro de saber organizado linguistica- mente e transmitido culturalmente, semelhante a uma fonte de modelos de interpretação, da qual os participantes da ação lançam mão para suprir as exigências e necessidades de entendi- mento que aparecem numa determinada situação.

O mundo da vida, na forma de saber transmitido culturalmente e como linguagem, torna possível aos participantes da ação comunicativa encontrar uma interpretação previamen- te pronta sobre as relações entre os três conceitos formais do mundo (mundo objetivo, social e subjetivo). Ou seja, o mundo da vida constitui o horizonte de processos de entendimento em que os implicados chegam a um acordo ou discutem sobre algo pertencente ao mundo objeti- vo, ao mundo social e ao mundo subjetivo de cada um.

Habermas (1990), com isso, caracteriza os componentes estruturais e simbólicos dos mundos vividos: a cultura, armazém de saber do qual os participantes da comunicação extraem interpretações no momento em que se entendem mutuamente sobre algo; a socieda- de, na qual se estruturam as ordens legítimas através das quais os participantes da comunica- ção regulam sua pertença a grupos sociais, garantindo a solidariedade; e a personalidade, que são todos os motivos e habilidades que colocam um sujeito em condições de falar e de agir, bem como de garantir sua identidade própria.

Habermas explica que os três componentes do mundo da vida se entrecruzam, porque o mundo vivido não forma um ambiente cujas influências contingentes o indivíduo teria que combater. Além disso, o mundo da vida não constitui também uma espécie de recipi- ente em que os indivíduos estariam incluídos como partes de um todo.

Por isso, para Habermas (1990), o mundo da vida não é exatamente uma organiza- ção à qual os indivíduos pertençam como membros nem uma associação à qual se integram, muito menos uma coletividade composta de membros singulares. A prática comunicativa cotidi- ana alimenta-se de um jogo conjunto, resultante da reprodução cultural, da integração social e da socialização, à medida que os indivíduos e a sociedade se constituem reciprocamente.

Segundo Habermas (2001b), dois sujeitos que se reconhecem reciprocamente como tais veem-se um ao outro como idênticos, ao mesmo tempo que respeitam a identidade de um e de outro, garantindo a unidade na diversidade e a diversidade na unidade. Habermas defende, tal qual veremos no decorrer desta tese, que, mesmo havendo um dissenso persis- tente em termos de visões de mundo entre religiosos e não religiosos, eles se referem tam- bém a um mesmo mundo nos discursos e problematizações, como um pressuposto formal na ação comunicativa.

Porém, as ações dos participantes do mundo da vida, dentro do quadro das socie- dades capitalistas atuais, não são coordenadas apenas por processos de comunicação voltados ao entendimento (integração social), e sim, igualmente, por meio de imperativos funcionais do sistema econômico e administrativo (integração sistêmica). Então, os processos de entendi- mento dos participantes de um mundo da vida são transformados num pseudoconsenso, e a

integração social fica submetida à integração sistêmica, produzida pelos meios estratégicos da ação: os mundos vividos, por mais que sejam constituídos à luz da intersubjetividade, são ameaçados constantemente pelos imperativos sistêmicos de autorregulação, como constata- mos nas sociedades contemporâneas.

Se, por um lado, à luz do processo de modernização das sociedades ocidentais, com a racionalização do mundo vivido, a vida humana foi liberada do peso das tradições não problematizadas que a regiam, de outro lado, todavia, houve também a introdução de novos mecanismos de ação: o dinheiro, na sua forma econômica, e o poder, na sua forma administra- tiva. Nos países capitalistas, por exemplo, o sistema econômico torna-se o princípio de orga- nização de toda a sociedade e pretende submeter tudo a seus imperativos.

O fundamentalismo religioso, por exemplo, é interpretado por vários autores, in- clusive Habermas (2007), como consequência de uma colonização violenta do mundo vivido. Uma modernização capitalista vinda de fora desencadeia inseguranças sociais e rejeições cul- turais. Dessa forma, o terrorismo seria o efeito do trauma da modernização que se espalhou rapidamente pelo mundo. Em suma, o terrorismo e o fundamentalismo seriam uma reação defensiva dos modos tradicionais de vida a uma modernização violenta e acelerada.

Habermas (2004b) fala sobre um violento desenraizamento dos modos tradicio- nais de vida. Tal situação criaria um mundo polarizado, em que as várias fontes espirituais buscam resistir à força secularizadora da influência ocidental. Há, então, uma polarização entre a “amoralidade” do Ocidente e a suposta espiritualidade do fundamentalismo religioso. Os fundamentalistas, diz Habermas, ignoram a situação epistêmica de uma sociedade pluralis- ta, propondo sempre um retorno ao exclusivismo das atitudes de crença pré-moderna.

Em realidade, os potenciais da ação comunicativa estão “atrofiados”, porque há uma crescente invasão do mundo vivido pelos subsistemas de ação instrumental. As instâncias de ação sistêmica transformaram-se no eixo organizador da vida social, relegando a esfera da ação comunicativa a elemento secundário; e os problemas passam a ser reduzidos apenas a questões técnicas. Contudo, a alternativa habermasiana não é a destruição da razão como tal, mas sim a recuperação de outra esfera da racionalidade, a razão comunicativa, pois apenas ela pode denunciar os males produzidos pela razão instrumental, através da reflexão, da crítica e das argumentações dos sujeitos.

Posto isso, Habermas destaca que a modernidade não é ainda um projeto esgota- do, uma vez que o potencial da racionalidade não foi completamente desenvolvido. Isso não significa, como em Lyotard, uma crise da razão ou o fim do projeto moderno (OLIVEIRA, 2012a). Para ele, há uma crise de conceitos caros ao pensamento moderno, como razão,

sujeito, dialética, justiça, emancipação, totalidade, verdade e progresso. “Após os meta-relatos [sic], onde se poderá encontrar a legitimidade? [...] Seria pelo consenso, obtido por discussão, como pensa Habermas? Isto violentaria a heterogeneidade dos jogos de linguagem. E a inven- ção se faz sempre no dissentimento” (LYOTARD, 2011, p. 17).

Lyotard enfatiza que o pós-moderno é um saber aberto à diferença. Segundo ele, o pós-moderno designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do fim do século XIX. Lyotard situa tais transformações no contexto da crise dos metarrelatos. Suas formas variavam na modernidade: a razão do Iluminismo, o espírito absoluto do idealismo alemão e o sujeito da classe trabalha- dora em Marx. Todos possuem o mesmo pressuposto, a saber, a pretensão de universalidade, por meio de um sistema capaz de abranger todas as dimensões do real. Em Lyotard (2011), o princípio de uma metalinguagem universal é substituído pelo da pluralidade de sistemas for- mais e axiomáticos, ou seja, pela disseminação dos jogos de linguagem, dissolvendo o sujeito.

O pensamento pós-moderno se entende como um processo de libertação do uno, do imutável e do eterno, em direção à diferença, à pluralidade, à mudança, ao contingente e ao his- tórico. Para Lyotard, o pequeno relato é o referencial, e o consenso se torna algo nunca atingido.

Lyotard (2011) argumenta que a teoria de Habermas violentaria a heterogeneidade dos jogos de linguagem, haja vista que não haveria como encontrar uma unidade num meta- discurso universal. Ou seja, não haveria possibilidade de uma pragmática ou gramática uni- versal capaz de abranger todos os jogos de linguagem singulares.

Todavia, Habermas (1990) defende que a unidade da razão apenas pode ser encon- trada na multiplicidade de suas vozes, isto é, na inclusão do outro como momento determinan- te para a racionalidade das normas. Além disso, ele explicita que um possível consenso não elimina a diferença entre os sujeitos e que as normas são sempre passíveis de reavaliação.

Habermas fala acerca de uma fundamentação fraca no agir comunicativo. Dessa forma, o projeto da razão não deve ser abandonado, mas repensado em outras bases. Haber- mas integra a teoria do agir com a dos sistemas, evitando uma absorção da primeira pela se- gunda, com seu conceito de sociedade que combina as análises hermenêutica e funcionalista, uma vez que a racionalidade instrumental (sistêmica) é submetida à comunicativa.

Logo, Habermas se contrapõe a Luhmann e à sua teoria dos sistemas. Como no tópico anterior, faz-se fundamental para a teoria política habermasiana, tal qual veremos no decorrer da tese, entender como se estrutura a relação entre mundo vivido e sistêmico, a fim de que possamos apreender o fio condutor e a base das reflexões de Habermas sobre sua

democracia deliberativa, a saber: a relação entre esfera pública e parlamento, direito e moral, entre outras.

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