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4 RELIGIÃO, SECULARISMO E DEMOCRACIA

4.3 A sensibilidade da voz da religião

Para Habermas (2007), as religiões mantêm viva a sensibilidade para o que falhou no mundo secular, preservando, na memória, dimensões de nosso convívio pessoal e social, nas quais os processos de racionalização social e cultural provocaram danos irreparáveis. Ha- bermas (2007, p. 116) destaca que as ordens liberais dependem da solidariedade de seus cida- dãos e que suas fontes podem “[...] secar no caso de uma secularização descarrilhadora da sociedade em seu todo”.

De acordo com Estrada (2004), há, nesse sentido, um conteúdo humanístico e um núcleo ético presentes nas religiões que ainda alimentam a solidariedade humana. Fiorenza (1992, p. 87, tradução nossa), por sua vez, enfatiza que as religiões também fornecem um local para a discussão das esferas afetivas e expressivas da vida humana: “Neste contexto, a igreja mantém viva a dimensão utópica que tem sido fundamental para a teoria crítica40”.

Já Metz (2013, p. 17) afirma que os textos apocalípticos da Bíblia são, acima de tudo, documentos literários de uma percepção de mundo em que se revelam as faces das víti- mas: “O apocalipse bíblico ‘desvela’ a trilha dos sofredores na história da humanidade”. Ha- bermas concorda, portanto, que as religiões possuem conteúdos éticos determinantes que a razão secular não pode desprezar, constituindo um patrimônio ético que podemos encontrar nas diversas tradições de fé. O problema, porém, consiste em como tais intuições religiosas podem aparecer na formulação de critérios de justiça num mundo de crentes e não crentes. De um lado, Habermas critica o fundamentalismo religioso, que despreza o caráter secular das instituições; de outro, ele critica um tipo de secularismo que vê na religião apenas algo irraci- onal e sem valor.

Sobre isso, podemos fazer uma analogia entre as análises de Habermas sobre o se- cularismo e as de Hegel (OLIVEIRA, 2013) quando elogia e critica dialeticamente a Revolu- ção Francesa e o Iluminismo. Para que o princípio cristão da liberdade pudesse perpassar a realidade sociopolítica, foi necessário que o Estado se libertasse das igrejas cristãs particula- res. Tal cisão permitiu a realização da verdade do cristianismo. Hegel aceita, por um lado, a necessária emancipação do homem através da Revolução Francesa.

Todavia, a Ilustração criticou também as representações cristãs, reduzindo seu conteúdo a objetos finitos. A Ilustração não percebeu, segundo Hegel, que a negação do abso- luto implica a negação da subjetividade. O elemento positivo da Ilustração foi ter feito morrer

40 In this regard the church keeps alive the utopian dimension that has been central to critical theory” (FIO- RENZA, 1992, p. 87).

uma certa concepção de Deus, manifestando a verdade do cristianismo para além do cristia- nismo. Porém, a Ilustração não percebeu que a pura negação do absoluto significa a negação da subjetividade, pois implica seu aprisionamento ao finito.

Hegel (2010, p. 244), no parágrafo 270 da Filosofia do direito, fala não apenas do caráter negativo do fanatismo religioso, mas também do fanatismo político, no contexto da Revolução Francesa: “[...] surge então o fanatismo religioso, que, como o fanatismo político, bane todas as instituições do Estado”. Em Hegel (2010), a liberdade é explicitada como sínte- se entre individualidade e sociabilidade, entendida como institucionalidade. A forma de confi- guração dessas instituições é que decide se elas são ou não expressão da autoconsciência dos indivíduos como seres livres.

Dessa forma, Hegel conserva o elemento positivo da Ilustração, recuperando o conteúdo central do cristianismo, a Encarnação do Verbo, que significa a superação do dua- lismo abstrato entre Deus e o homem livre. Do contrário, Hegel alerta que a sociedade estará sempre sujeita à tirania semelhante ao Terror Jacobino na Revolução Francesa, haja vista uma concepção estreita de liberdade, relacionada apenas com a interioridade.

Hegel, como destaca Habermas (2002c, p. 62), “[...] não é o primeiro filósofo que pertence aos tempos modernos, mas o primeiro para o qual a modernidade se tornou um pro- blema”. Hegel foi um dos pensadores da modernidade que reagiu contra os ataques da Ilustra- ção ao cristianismo, ressaltando o grande valor da doutrina cristã.

Em Hegel, carece de fundamento uma secularização que pretenda superar pura e simplesmente o cristianismo. Habermas, tal qual Hegel, desenvolve um conceito crítico de modernidade, partindo de uma análise imanente ao próprio sentido de secularismo, evitando tanto um dogmatismo da religião como também uma visão secularista ou laicista de mundo. Ele chega a falar em limites da razão secular, criticando um tipo de secularismo (uma visão secularista ou laicista de mundo) que consideraria as religiões como algo irracional e sem valor. Como ressalta Siebert (1985, p. 8, tradução nossa), “Habermas abre novas possibilida- des para a ética e indiretamente para a religião. [...] Ele abre uma nova oportunidade social para a religião e a teologia41”.

Segundo Habermas (2007), as Escrituras Sagradas e as tradições religiosas possui- riam intuições sobre a falta moral e a salvação, sobre a superação salvadora de uma vida tida como sem salvação, as quais são mantidas e interpretadas durante milênios. Portanto, a for- mação da opinião e da vontade não pode censurar a linguagem religiosa, mesmo havendo a

41 Habermas opens up new social possibilities for ethics and indirectly also for religion. [...] He opens up a new social chance for religion and theology” (SIEBERT, 1985, p. 8).

necessidade de uma fundamentação pós-metafísica e discursiva das normas, como defende Habermas.

Para ele (1990), enquanto a linguagem religiosa trouxer consigo conteúdos se- mânticos inspiradores, que não podem ser jogados fora, a filosofia, mesmo em sua figura pós- -metafísica, não poderá desalojar ou substituir a religião; enquanto não se encontrar no meio da fala argumentativa palavras melhores para caracterizar aquilo que as religiões sabem dizer, a existência delas será legítima, mesmo no contexto de um pensamento pós-metafísico.

Habermas insiste, no que diz respeito à política institucional, na distinção entre a fala discursiva secular, a qual pretende ser acessível a todos, e a fala discursiva religiosa, de- pendente das verdades reveladas. As religiões precisam, no parlamento, traduzir para uma linguagem acessível suas contribuições sobre as questões da vida. Sem essa tradução, o con- teúdo das vozes religiosas não consegue entrar nas agendas das instituições. E como ocorre isso na democracia deliberativa? A sensibilidade da religião não perderia sua força ao ser tra- duzida para uma linguagem secular? Não haveria, ainda, um privilégio da visão de mundo secularista na filosofia de Habermas?

Antes, contudo, faz-se necessário explicitar como John Rawls também analisa es- sa questão n’O liberalismo político, à luz de uma razão pública, uma vez que Habermas deba- terá com ele algumas das questões sugeridas aqui. Como sabemos, apesar de Habermas e Rawls pertencerem à mesma família kantiana do justo, haverá divergências entre eles, bem como igualmente semelhanças. Nossa análise se concentrará, neste capítulo, especificamente na relação entre religião e secularismo, pressupondo, entretanto, a discussão já iniciada com Rawls no capítulo anterior.

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