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4 RELIGIÃO, SECULARISMO E DEMOCRACIA

4.7 Déficits ontológico e metafísico nos discursos religiosos

4.7.2 O que significa Deus no âmbito da metafísica primordial?

Segundo Puntel, a chamada questão de Deus constitui um tema marginal da filo- sofia, de tal maneira que seu lugar mais próprio seria na filosofia da religião. Porém, atingi- mos um ponto em que emerge a pergunta se existe ou não certa afinidade entre o resultado ao qual a filosofia sistemática chega e o fenômeno que, na religião (mais exatamente nas três grandes religiões monoteístas), é indicado com a expressão Deus.

O ponto filosófico sistemático é atingido quando a teoria do Ser, como tal e em seu todo, é desenvolvida, conforme vimos ao longo deste capítulo, de modo a explicitar a

dimensão primordial do Ser como Ser absolutamente necessário espiritual e livre que criou a dimensão contingente do Ser (o mundo). Aqui, evidencia-se como “[...] filosoficamente sig- nificativo prestar atenção, por assim dizer, ao fenômeno religioso ‘Deus’ e introduzir a ex- pressão ‘Deus’ na concepção filosófico-sistemática global” (PUNTEL, 2015a, p. 147). A pergunta de Heidegger – Como entra o Deus na filosofia, não apenas na filosofia moderna, mas na filosofia enquanto tal? – pode ser reformulada para: “Como a filosofia chega ao tema Deus?” (PUNTEL, 2015a, p. 147).

Em Puntel, uma tematização adequada da chamada questão de Deus só pode efeti- var-se na base ou no quadro de uma concepção da realidade, de um plano ontológico, dos entes e do Ser. Nesse sentido, afirmar que o espírito humano é coextensivo ao Ser, como vimos an- tes, é dizer que ele já sempre atingiu o ponto de chegada desse processo, ou seja, que ele é em si mesmo essa transcendência ao Ser em seu todo e como tal (OLIVEIRA, 2015b).

Assim, perguntar por Deus, ou seja, tratar efetivamente essa questão e dar-lhe uma resposta racional sob todos os aspectos, só tem filosoficamente um sentido inteligível e ade- quado no contexto de uma concepção abrangente da realidade, isto é, uma concepção do Ser como tal e em seu todo. “Se Deus pode ou deve ser pensado de uma maneira filosoficamente consistente e significativa, isso só pode acontecer se ele abrange absolutamente tudo, todas as coisas, todos os entes” (PUNTEL, 2015b, p. 369). Deus deve ser pensado como o Ser plena- mente explicitado, que assim se diferencia de todo ente, mas abrange e, por isso, inclui em si todos os entes.

A partir da diferença entre Ser e ente, que enfatizamos ao longo deste capítulo, é possível estabelecer a diferença entre “[...] mundo-como-o-Ser-dos entes e Deus-mesmo- -como-o-Ser-em-si-completamente-explicitado” (PUNTEL, 2015a, p. 104). Deus é o Ser em si completamente explicitado, o qual é necessário e absoluto. Em comparação com ele, todos os entes são contingentes; e o mundo é a totalidade de todos os entes contingentes.

Justamente por ser contingente, a dimensão contingente do Ser é totalmente de- pendente da dimensão absolutamente necessária do Ser. Afinal, a dimensão contingente não pode ser o que é a partir de si mesma; ela deve a si mesma “[...] à dimensão absolutamente que é o que é a partir de si mesma, a saber, a dimensão absolutamente necessária” (PUNTEL, 2015a, p. 142).

Faz parte da definição dos entes contingentes que eles são, mas poderiam não ser. Portanto, eles não são necessariamente: eles não são a partir de si mesmos. Ou seja, a circuns- tância de serem não é explicável a partir deles mesmos. Se os entes contingentes poderiam não ter sido, emerge a pergunta referente a como eles “chegaram ao Ser”. Eles chegaram ao Ser a

partir de outro fator, a saber, o Ser absolutamente necessário. “A dimensão contingente do Ser chegou ao Ser por meio da liberdade absoluta do Ser absolutamente necessário” (PUNTEL, 2015a, p. 144). O Ser absolutamente necessário, livre, pôs no Ser a dimensão contingente do Ser, e isso de modo absoluto. A criação, por exemplo, como um pôr (no sentido ativo) refere-se à dimensão contingente do Ser como um todo, numa palavra, à totalidade dos entes.

Vale lembrar que o absolutamente necessário livre não é um ente. Somente a partir desse ponto é que a filosofia sistemático-estrutural introduz a palavra Deus na exposição filo- sófica. Nesse sentido, “Deus não é um ente, mas o próprio Ser completamente explicitado” (PUNTEL, 2015a, p. 150).

Quando a metafísica, por exemplo, representa o ente como ente, podemos inter- pretar isso a partir de um sentido geral e supremo. “De acordo com sua essência, ela é, simul- taneamente, ontologia no sentido mais restrito e teologia” (HEIDEGGER, 1973c, p. 259). O caráter teológico da ontologia se fundamenta, desde a Antiguidade, na forma como o ente chega ao desvelamento como ente. “Este desvelamento do ente foi que propiciou a possibili- dade de a teologia cristã se apoderar da filosofia grega” (HEIDEGGER, 1973c, p. 259).

Puntel (2015b, p. 393) critica, por isso, a concepção de Deus como articulada no quadro da ontoteologia, como ente, ainda que como o ente primeiro e supremo: “Nesta base é absolutamente impossível compreender a relação unitária entre Deus e o ‘universo finito’”. Por outro lado, ele explica que os pós-modernos fazem de Deus um outro absolutamente dis- tante, inacessível e incompreensível, contraposto ao “mundo finito”, com a consequência que entre ambos há um abismo absoluto.

É inexplicável que estes autores não notem que deste modo fazem de Deus um estra- nho X, que tem fora de si um outro, a saber, o mundo finito, e assim é relativizado por esse outro. O conceito de alteridade não permite de modo algum explicar adequada- mente a relação unitária entre Ser e ente, entre Deus como o Ser plenamente explicita- do e o ente, que constitui a dimensão contingente do Ser. (PUNTEL, 2015b, p. 393).

Portanto, em Puntel, Deus não pode ser considerado um ente. Ele propõe, por isso, uma concepção abrangente da realidade. Deus, que se relaciona com os discursos religiosos, vai emergir, em Puntel, ao contrário de Habermas, no contexto de uma teoria filosófica do Ser em si mesmo e em seu todo. Afinal, a filosofia é um empreendimento estritamente teórico. A dimen- são expositiva é o específico da atividade filosófica. O problema é que Habermas não levanta a questão de Deus; ele só fala da religião como uma atividade humana e, portanto, de seu conteú- do ético. Deus, considerado um tema metafísico, não tem lugar em seu pensamento.

Com isso, a visão habermasiana da religião é extremamente estreita, pois a reli- gião tudo fala a partir da referência a Deus, que, em Puntel, é pensado como dimensão do Ser

primordial, do Mundo, uma esfera de pensamento ausente em Habermas. Uma concepção sobre Deus que se relaciona com os discursos religiosos diz respeito a “[...] algo qualquer, sobre um X que existe de algum modo” (PUNTEL, 2011, p. 27, grifo do autor). Esse algo nunca é tematizado por Habermas, como vimos ao longo da tese.

Eikrem (2013, p. 8, tradução nossa), inspirado por Puntel, também propõe uma re- flexão muito interessante, com o propósito de entender a relação entre pragmática, semântica e ontologia, repensando tais esferas, como interligadas entre si, na dimensão dos discursos

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