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3 RECONSTRUINDO A TEORIA POLÍTICA ENTRE FACTICIDADE E

3.9 O caráter universal do bem

3.9.1 O bem como universalidade em Aristóteles

Habermas concebe o bem num sentido rigorosamente particularista. Ele sequer menciona que os éticos gregos e medievais sempre defenderam uma ética do bem, sem redu- zi-la a uma avaliação pura e simplesmente contingente da comunidade histórica específica. A nosso ver, a leitura de Habermas do bem é tão unilateral como a de MacIntyre, que interpreta igualmente o bem como dimensão estritamente particular, sem universalidade.

No Livro I da Ética a Nicômaco, Aristóteles (1094 b8 – b10) enfatiza que, mesmo que haja um único bem para cada indivíduo, obter o bem pertencente a um Estado é alcançar um bem maior e mais completo. Afinal, na perspectiva aristotélica, o bem que um povo e os Estados obtêm é mais belo e próximo do que é divino. Sabemos que quando Aristóteles (OLIVEIRA, 2003) se perguntava pelo bem do ser humano, ele não pensava simplesmente no

vergegenständlichen. Der > > moralische Gesichtspunkt< < soll diese Perspektive innerweltlich rekonstruieren, d.h. in die Grenzen unserer intersubjektiv geteilten Welt selbst einholen, ohne die Möglichkeit der Distanzierung von der Welt als ganzer und damit die Universalität des weltumspannenden Blickes einzubüßen” (HABER- MAS, 1996, p. 16).

bem que as diferentes comunidades humanas determinavam historicamente, mas sim no bem que expressa uma esfera da constituição ontológica específica do ser humano, portanto uma estrutura universal do ser humano como tal. Também os medievais articularam a tese de que o bem é um momento, uma característica do ente como tal, destacando sua universalidade. Isso diz respeito a qualquer realidade como realidade. Habermas, porém, aceita a concepção de bem como algo apenas particularista, mesmo que numa perspectiva crítica.

O ético, em Aristóteles, só é inteligível a partir do ethos, do costume. A determi- nação do que é ético se faz não por normas e valores em si, mas pelos modos de viver institu- cionalizados na sociedade, através dos costumes. O indivíduo torna-se justo, corajoso e pru- dente à medida que adquire o hábito ao que, na cidade, é justo. A ação boa e justa não é, em Aristóteles, a ação moral do indivíduo isolado. Na verdade, é aquela que se constitui por meio de relações com outros homens.

Afinal, como diz Aristóteles (1253a2) no Livro Primeiro d’A política, o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade. É no ethos que o indivíduo encontra o que ele deve fazer. A lei pressupõe o costume, mesmo que não exista como lei es- crita. O indivíduo, em Aristóteles, não é uma instância isolada, mas se encontra nas institui- ções éticas da polis.

O direito, por isso, tem como sujeito o indivíduo, mas não o indivíduo em seu “ser-para-si” singular, e sim nas instituições do ethos. Vale lembrar que a ética em Aristóteles, que trata da práxis humana, divide-se em duas etapas: 1) a práxis individual, que ele denomi- na propriamente de “ética”; e 2) a práxis social, que ele denomina de “política”.

A ética, em Aristóteles, como reflexão sobre a práxis humana, não se restringe aos indivíduos isolados, mas é reflexão sobre o mundo institucional, onde o indivíduo está inseri- do e através do qual ele se eleva a indivíduo universal. Não se trata apenas de conhecer o mundo institucional humano, mas de melhorá-lo, possibilitando a práxis de cidadãos livres. Nesse contexto, o problema da universalidade e de sua necessária dimensão não é posto cla- ramente por MacIntyre (que se inspira diretamente em Aristóteles) ou Taylor (de orientação hegeliana).

Num primeiro momento, a ação dos homens é acrítica, porque os indivíduos se encontram num ethos específico, historicamente criado. Porém, como ser racional, o homem tem possibilidades de distanciar-se criticamente de qualquer fato, até do fato de si mesmo em sua vida histórica e comunitária, exigindo legitimação. A reflexão ética é o ato mediante o qual o homem rompe o caráter opressor de todo ethos, transformando sua vida. Da reflexão

ética não resulta necessariamente a destruição do ethos vigente, e sim a legitimação racional da ação humana.

Não por acaso, Aristóteles (1332b7), no Livro Sétimo d’A política, destaca que o homem, como ser da racionalidade, utiliza a razão para fazer muitas coisas contrárias ao hábi- to e à natureza, convencendo-se de que é melhor fazê-las, mas de outra forma. Em Aristóteles, não é apenas o ethos que legitima a ação, mas a razão como critério do agir ético, algo não refletido por MacIntyre e Taylor, que interpretam sempre o bem num sentido particularista, sem possibilidades de transcender o costume.

Em Aristóteles, há uma unidade originária entre um fato e uma exigência moral. Trata-se de um “dever-ser” que é historicamente situado, pois nele há sempre uma referência à situação histórica. Nas palavras de Vaz (2006, p. 35), “Aristóteles celebra também no homem a capacidade de passar além das fronteiras de seu lugar no mundo”. No Livro Sexto da Ética a Nicômaco, Aristóteles (1141 b10-b15) destaca que o bom deliberante é quem atinge o melhor dos bens alcançáveis através das ações humanas, já que ninguém delibera acerca daquelas coisas que são impossíveis de ser de outra maneira. O fim é um bem que tem de ser realizável pela ação humana. O bem em política, segundo Aristóteles (1282b1) no Livro Terceiro d’A política, é a justiça, ou seja, a utilidade geral.

Posto isso, o bem é um conceito relacional, algo cuja determinação material se faz através da reflexão e decisão, no âmbito de um quadro sócio-histórico específico. O bem não é algo eternamente idêntico a si mesmo, melhor dizendo, não é uma idealidade nem identida- de ideal. A posição aristotélica não é nem fixa ou dogmática, muito menos relativista. Mesmo que se parta do contexto, ela igualmente transcende o contexto, porque se pergunta sempre pela validade das normas.

Ora, isso marca essencialmente o homem como ser racional. Portanto, podemos falar, em Aristóteles, de uma normatividade aberta às situações históricas, um “dever-ser” historicamente situado. O bem, então, também possui um sentido aberto à universalidade. O bem é, em Aristóteles (2009b), uma dimensão do próprio ente como tal.

Habermas, por sua vez, não tematiza uma ontologia em seu quadro referencial teórico; sua solução é sempre a defesa de uma ética deontológica; ele não se pergunta pelo caráter universal do bem. Seria preciso, assim, articularmos uma ética que não desprezasse o caráter universalista do bem, algo determinante para quem, como Habermas, defende o diálo- go entre secularismo e religião. Nesse sentido, Hösle (apud OLIVEIRA, 2015a) mostra que o utilitarismo, apesar de aspectos problemáticos, teria vantagens em relação a Kant e às éticas deontológicas, por considerar também as consequências das ações e a universalidade.

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