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A religião como pertencente à genealogia do pensamento pós-metafísico

4 RELIGIÃO, SECULARISMO E DEMOCRACIA

4.2 A religião como pertencente à genealogia do pensamento pós-metafísico

O secularismo insiste na ideia de que as formas de pensamento arcaicas, contidas nas doutrinas religiosas, foram superadas e desvalorizadas com o processo de secularização do Ocidente. Entretanto, o pensamento pós-metafísico estabelece relações falibilistas com os dois lados (secular e religioso), por meio de uma reflexão sobre os limites de cada um: o pen- samento pós-metafísico desconfia “[...] tanto das sínteses das ciências naturais como das ver- dades reveladas” (HABERMAS, 2007, p. 13).

Por isso, Habermas evita leituras reducionistas que esvaziem qualquer possibili- dade de diálogo ou discussão pública com doutrinas religiosas. Ele reconhece as dívidas de sua teoria em relação às tradições religiosas, sobretudo a judaico-cristã, principalmente no que

36 Dieu est le séparé. Il ne se mêt pas des affaires politiques des hommes” (GAUCHET, 1998, p. 61). 37 Cela ne signifie pas que le religieux doive cesser de parler aux individus” (GAUCHET, 1985, p. 292).

concerne a uma ética universalista da fraternidade, de uma utopia da comunidade solidária, de uma dignidade igual entre todos os homens.

O cristianismo não é apenas uma figura precursora para a autocompreensão norma- tiva da modernidade ou um simples catalisador, pois o universalismo igualitário, do qual surgiram as idéias [sic] de liberdade e de convivência solidária, de conduta de vida autônoma e de emancipação, da moral da consciência individual, dos direitos humanos e da democracia, é uma herança imediata da ética da justiça judaica e da ética cristã do amor. Fomos nos apropriando criticamente desta herança, deixando-a, porém, inalterada, apesar das inúmeras reinterpretações. E, hoje, inclusive, não te- mos alternativas com relação a essa tradição, pois, mesmo quando confrontados com os desafios atuais de uma constelação pós-nacional, continuamos a nos alimentar dessa substância. (HABERMAS, 2003, p. 199).

Habermas explica que a interpenetração histórica entre cristianismo e metafísica grega não produziu apenas a figura da dogmática teológica, ela promoveu também uma apro- priação, por parte da filosofia, de conteúdos genuinamente cristãos, a saber: responsabilidade, autonomia, justificação, história, recordação, recomeço, inovação, retorno, emancipação, completude, renúncia, incorporação, internalização, individualidade e comunidade. Habermas (2007) fala acerca de conceitos bíblicos que foram traduzidos, ao longo do tempo, para um público em geral de crentes de outras religiões e também de não crentes, ultrapassando os limites de uma comunidade religiosa particular.

Ele cita como exemplo a tradução da ideia de que o homem é semelhante a Deus para a ideia da “dignidade do homem”, de todos os homens, a ser respeitada de modo igual e incondicionado. Outro exemplo é o conceito religioso de tolerância, que, no decorrer dos sé-

culos XVI e XVII, “[...] passa a ser um conceito do direito” (HABERMAS, 2007, p. 279). Em

Kant, afirma Habermas (2007), a tradução da ideia do Reino de Deus sobre a Terra para o conceito de uma república de leis virtuosas diz respeito a uma relevância cognitiva de conteú- dos conservados nas tradições religiosas.

A filosofia moral kantiana, segundo Habermas, pode ser interpretada como uma tentativa de reconstruir o “dever-ser” (Sollen) categórico dos mandamentos divinos por um caminho discursivo. Ao tornar-se autorreflexão transcendental, o pensamento filosófico confi- gura-se como pós-metafísico, o que não significa que ele deva ser necessariamente anticristão ou pós-religioso. Além de Kant, Habermas cita Hegel como exemplo bem-sucedido no traba- lho de tradução do idioma religioso para o secular.

Na perspectiva hegeliana (OLIVEIRA, 2013), coube ao cristianismo, na história da humanidade, o papel de proclamar que o homem é livre como homem e que a liberdade é, portanto, uma característica específica do ser humano. O acontecimento de Cristo é, em He- gel, de significação universal, porque nele o ser humano toma consciência de que seu ser se

identifica com a liberdade, haja vista que a liberdade subjetiva, como consciência de sua transcendência sobre as condições externas em que o ser humano está inserido, fundamenta-se na unidade entre Deus e o ser humano, que se revelou em Cristo. Este representa a superação da separação entre Deus e o homem, sendo a reconciliação entre ambos. A liberdade do ho- mem revela-se possibilitada pela participação na liberdade absoluta.

Porém, o princípio da liberdade cristã permaneceu interior, não chegando a se tor- nar uma liberdade mundana. Como diz Hegel (2010, p. 98) no parágrafo 62 da Filosofia do direito: “Há cerca de mil e quinhentos anos que a liberdade da pessoa começou a florescer graças ao cristianismo e tornou-se princípio universal entre uma parte, aliás, pequena do gêne- ro humano”. Entretanto, só os tempos modernos começaram a tornar efetiva a significação do cristianismo na história da humanidade, à medida que a liberdade se fez o grande programa da modernidade em consequência da Reforma Protestante.

Por isso, Hegel vê uma passagem coerente entre o princípio cristão da liberdade pela Reforma Protestante e os movimentos emancipatórios da modernidade, como o Ilumi- nismo e a Revolução Francesa. Para Löwith (2014, p. 41), por exemplo, a secularização do cristianismo original não significa, em Hegel, uma condenável traição de seu sentido origi- nal, mas, ao contrário, a verdadeira explicação dessa origem “[...] mediante sua realização positiva”.

Habermas, então, enfatiza que o pensamento pós-metafísico deve incluir as tradi- ções religiosas e metafísicas em sua genealogia. Seria irracional, diz ele, colocar de lado tais tradições por considerá-las um resíduo arcaico. Que razão, pergunta ele, impediria as religiões de continuar mantendo potenciais semânticos inspiradores? Habermas defende que as tradi- ções religiosas não são simplesmente irracionais e absurdas. Pelo contrário, as grandes religi- ões mundiais carregam consigo intuições racionais e momentos instrutivos de exigências legí- timas. Habermas (2001a) fala de uma síntese entre a fé de Israel e a razão grega, que se cons- tituíu ao longo da história.

Ele (2007) também cita Kierkegaard como um escritor religioso que pensa de mo- do pós-metafísico, porém não pós-cristão. Kierkegaard foi o primeiro, diz Habermas, a exigir da filosofia que aceitasse a religião como uma parceira a ser situada no mesmo nível. Além disso, na tradição do marxismo ocidental, Habermas destaca uma apropriação ateísta de con- teúdos religiosos, seja na filosofia da esperança de Bloch, seja nos esforços de salvação de Benjamin, seja no negativismo e nas esperanças mais secretas de Adorno, tal qual argumenta também Löwy.

Que podem ter em comum, pergunta Löwy, o messianismo judaico e as utopias li- bertárias? Uma tradição religiosa indiferente à esfera do político, voltada para o sobrenatural e o sagrado, e um imaginário social revolucionário, geralmente ateu e materialista? “[...] a uto- pia revolucionária é acompanhada sempre de uma profunda nostalgia de formas do passado

pré-capitalista, da comunidade camponesa tradicional” (LÖWY, 1989, p. 21). Segundo Löwy

(1989), o messianismo judaico é, em sua origem, uma teoria da catástrofe, que pode ser inter- pretada como um elemento revolucionário, na transição do presente histórico para o porvir messiânico. Este é incorporado como expressão milenar das esperanças, sonhos e aspirações dos párias e excluídos da história, “[...] como uma tradição dos oprimidos, utópica e subversi-

va” (LÖWY, 1989, p. 172). Eliade (2001)38, por sua vez, aponta essa mesma questão na filo-

sofia de Marx.

O pensamento pós-metafísico de Habermas (2007, p. 162) assume, portanto, uma dupla atitude perante a religião: “[...] ele é agnóstico e está, ao mesmo tempo, disposto a aprender”. Ele busca um lugar intermediário entre o cientificismo e a religião, numa pers- pectiva crítica em relação a um caminho unilateral tanto da ciência como da religião, se- guindo a ideia da razão comunicativa. “A consciência secular que se tem de viver em uma sociedade pós-secular reflete-se filosoficamente na figura do pensamento pós-metafísico” (HABERMAS, 2007, p. 159). Dessa forma, Habermas (2007) coloca-se entre a religião e o cientificismo.

Ele reconhece que o secularismo tem algo a aprender com as religiões, não po- dendo menosprezá-las. O que propriamente seria isso? Por que o secularismo teria algo a aprender com as religiões, mesmo em tempos pós-metafísicos, como o próprio Habermas afirma? Isso não comprometeria a autocompreensão secular do Estado democrático de direi- to? O que significa ser pós-metafísico e, ao mesmo tempo, reconhecer a importância das reli- giões? Como conciliar a relevância das vozes religiosas na democracia deliberativa com a necessária fundamentação pós-metafísica e pós-tradicional do justo? Numa palavra, “O que Habermas quer dizer exatamente com tudo isso?39” (LALONDE, 1999, p. 29, tradução nossa).

38 Marx retoma e prolonga um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrâneo, a saber, o papel

redentor do Justo (o “eleito”, o ungido”, o “inocente”, o “mensageiro”; nos nossos dias, o proletariado), cujos

sofrimentos são chamados a mudar o estatuto ontológico do mundo. Eliade (2001) explica que a sociedade sem classes de Marx e a consequente desaparição das tensões históricas encontram seu precedente no mito da

Idade do Ouro. Marx, para Eliade (2001), enriqueceu esse mito de toda uma ideologia messiânica judaico- -cristã: por um lado, o papel profético e a função soteriológica que ele atribuiu ao proletariado; por outro lado,

a luta final entre o Bem e o Mal, que pode aproximar-se facilmente do conflito apocalíptico entre o Cristo e o Anticristo, seguido da vitória decisiva do primeiro.

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