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3 RECONSTRUINDO A TEORIA POLÍTICA ENTRE FACTICIDADE E

3.1 A compreensão habermasiana do modelo liberal de política

Em Habermas, não há como tematizar as questões da filosofia política em Direito e democracia sem passar antes pelos temas da filosofia teórica de Verdade e justificação, pre- sentes no capítulo anterior, o que ocasionou mudanças significativas na teoria do agir comuni- cativo e mesmo em sua filosofia política. Em Direito e democracia, Habermas ainda não ha- via reformulado sua antiga teoria da verdade, separando-a da justificação, ocorrendo apenas anos depois, com Verdade e justificação, como vimos no capítulo anterior.

Por isso, é essencial destacar que as ideias contidas em Direito e democracia, obra de 1992, serão discutidas neste capítulo, mas a partir das inovações teóricas de Verdade e jus- tificação, livro de 1999. Isso nos possibilitará ler a filosofia política habermasiana conectada com as mais recentes modificações teóricas apresentadas em Verdade e justificação, algo co- mumente não levado em consideração nos trabalhos sobre filosofia política em Habermas.

O direito e a democracia tornaram-se, no pensamento habermasiano, temas cen- trais, principalmente a partir de Direito e democracia. Na Teoria do agir comunicativo, de 1981, Habermas ainda não havia refletido temas de sua filosofia política, como liberdade, Estado democrático de direito, soberania popular e direitos humanos.

Além disso, em Direito e democracia, Habermas retoma algumas discussões polí- ticas anteriores à Teoria do agir comunicativo, tal qual o problema da esfera pública. Com Direito e democracia, ele enfatiza que pretende mostrar “[...] que a teoria do agir comunicati- vo, ao contrário do que se afirma muitas vezes, não é cega para a realidade das instituições” (HABERMAS, 1997a, p. 11).

Reconstruiremos, neste capítulo, aquilo que podemos chamar de uma Filosofia política de Jürgen Habermas, por meio do conceito de democracia deliberativa. O pensamen- to pós-metafísico tornou possível, na filosofia política, a articulação do conceito de democra- cia deliberativa, mediado por uma crítica tanto ao liberalismo como ao republicanismo, que em Habermas ganha novos aspectos, através da tentativa de conciliação entre autonomia pri- vada e pública.

Uma vez reconstruída a teoria política de Habermas, trata-se de mostrar quais são seus pontos adequados ou não, para enfrentarmos, enfim, o problema do diálogo entre secula- rismo e religião na democracia deliberativa. Pensar com Habermas, porém, ao mesmo tempo, se necessário, contra ele.

Embora ele diga que, “a formação deliberativo-democrática constitui um proce- dimento adequado” para enfrentarmos o problema do diálogo entre secularismo e religião na democracia, ele, ao mesmo tempo, não demonstra nem sistematiza como isso ocorre em sua filosofia (HABERMAS, 2007, p. 136). A reflexão política, em Habermas, resulta também de um desafio de superar um suposto “déficit democrático” existente no interior da Teoria Crítica (SILVA, 2008), exceção feita aos trabalhos de Franz Neumann e Otto Kirchheimer (REPA, 2008b).

A preocupação com a fundamentação dos critérios normativos pelos quais se po- dem julgar processos emancipatórios ou regressivos é uma característica do pensamento ha- bermasiano (REPA, 2008b). Com isso, chegamos a um ponto crucial: saber que critérios sus- tentam a crítica e a que padrões de medida o teórico pode recorrer para criticar fenômenos patológicos e suas causas.

Para Habermas, o marxismo, por exemplo, padeceu de uma falta de transparência sobre seus princípios normativos, apesar de sempre colocar em perspectiva a emancipação humana. Essa obscuridade normativa teve consequências políticas graves, como uma relação puramente instrumental com a democracia e os direitos humanos, tendo como referência as experiências do socialismo real. Habermas (1997b, p. 265) enfatiza que Marx e Engels deixa- ram de lado questões envolvendo a teoria da democracia: “Eles recusaram o formalismo jurí- dico e a esfera do direito como um todo”.

Para Habermas, Marx e Engels entenderam o socialismo como uma figura histori- camente privilegiada, dotada de eticidade concreta, e não como um conjunto de condições necessárias para formas de vida emancipadas, sobre as quais os próprios envolvidos e afeta- dos têm que se entender. As consequências “[...] não tardaram a se manifestar nas aporias do socialismo burocrático, apoiado numa vanguarda política calcificada em nomenclatura” (HA- BERMAS, 1997b, p. 266). Não por acaso, Fausto (2007, p. 17) argumenta que “[...] a crítica ao capitalismo é, muitas vezes, confundida com crítica à democracia, o que torna a reflexão do marxismo sobre a democracia insuficiente”.

Logo no prefácio de Direito e democracia, Habermas (1997a) afirma que pouco citará o nome de Hegel, apoiando-se mais na doutrina kantiana do direito. Essa atitude, diz ele, é consequência da timidez perante um modelo cujos padrões não conseguimos atingir. Para ele, o que outrora podia ser mantido no quadro da filosofia hegeliana exige hoje um plu- ralismo de procedimentos metodológicos, incluindo as perspectivas da teoria do direito, da sociologia e da história do direito, bem como da teoria moral e da sociedade.

Habermas (1997b), primeiramente, expõe as concepções liberais e republicanas de política, para chegar, partindo do que há de positivo nos dois ideais, a um terceiro modelo novo de política: a deliberativa. Ele argumenta que, na concepção liberal de política, o Estado é um aparato da administração pública, estruturado segundo leis de mercado. A política, sob essa perspectiva, tem a função de congregar e impor interesses sociais, mediante um aparato estatal já especializado no uso administrativo do poder político.

Na perspectiva liberal, o processo democrático se realiza exclusivamente na forma de compromissos de interesses. E as regras da formação do compromisso, que de- vem assegurar a eqüidade [sic] dos resultados, e que passam pelo direito igual e ge- ral ao voto, pela composição representativa das corporações parlamentares, pelo modo de decisão, pela ordem dos negócios, etc., são fundamentadas, em última ins- tância, nos direitos fundamentais liberais16. (HABERMAS, 1997b, p. 19).

A política liberal é determinada pela concorrência entre aqueles que agem estrate- gicamente, almejando a manutenção ou a conquista de posições de poder. O êxito nessa con- cepção de política é medido de acordo com a concorrência dos cidadãos em relação a pessoas e programas, o que se quantifica a partir dos números de votos. Desse modo, as eleições têm a mesma estrutura que os atos eletivos de participantes do mercado voltados à conquista de êxi- to, uma vez que os partidos políticos lutam numa perspectiva que se orienta pela busca do sucesso. Os eleitores licenciam, através dos partidos políticos, o acesso a posições de poder, por meio de uma democracia indireta.

O modelo de política liberal não consiste na autodeterminação democrática das pessoas que deliberam, tal qual no formato republicano de política. No liberalismo, a ênfase é dada na liberdade como autonomia individual. Nas palavras de Locke (1978b, p. 45), “[...] cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direi- to senão ele mesmo”. Nesse sentido, os direitos humanos possuem uma maior relevância em relação ao ideal da soberania popular, pois há o destaque da autonomia privada em contrapo- sição à pública.

Os liberais destacam a institucionalização jurídica de liberdades iguais, entenden- do-as como direitos subjetivos. Para eles, os direitos humanos possuem um primado normati- vo em relação à democracia republicana. Na interpretação liberal, a formação democrática da vontade tem como principal função a legitimação do exercício do poder político, mediante uma normatização constitucional.

16 Nach liberaler Auffassung vollzieht sich der demokratische Prozeß ausschließlich in der Form von Inter- essenkompromissen. Die Regeln der Kompromißbildung, die über das allgemeine und gleiche Wahlrecht, über die representative Zusammensetzung der parlamentarischen Körperschaften, über den Entscheidungsmodus, die Geschäftsordung usw. die Fairneß der Ergebnisse sichern sollen, werden letztlich aus liberalen Grundrechten begründet” (HABERMAS, 1992a, p. 359).

Na democracia liberal, afirma Habermas (2003), o processo democrático de cria- ção de leis legítimas exige determinada forma de institucionalização jurídica. Tal “lei funda- mental” é introduzida como condição necessária e suficiente para o processo democrático, não como resultado deste, dado que a democracia não pode ser definida pela própria democracia. Os direitos liberais são entendidos como garantias de determinadas liberdades subjetivas. Os direitos subjetivos definem liberdades de ação iguais para todos os indivíduos ou pessoas ju- rídicas, tidas como portadoras de direitos.

O liberalismo, explicita Habermas (2002a), que remonta a Locke, conseguiu exor- cizar, a partir do século XIX, o perigo das maiorias tirânicas, postulando, contra a soberania do povo, a procedência dos direitos humanos. A autonomia privada dos membros da socieda- de seria garantida por intermédio dos direitos humanos (os direitos clássicos à “liberdade, à vida e à propriedade”).

Não por acaso, Locke (1978b, p. 46) afirma que cada homem tem uma proprie- dade em sua própria pessoa, uma vez que a mesma, através do trabalho, fundamenta também o indivíduo: “O trabalho que era meu, retirando-os do estado comum em que se encontravam fixou a minha propriedade sobre eles”. Para ele (1978b), no Segundo tratado sobre o gover- no, o homem tem o dever não só de preservar sua propriedade (a vida, a liberdade e os bens) contra os danos e ataques dos outros homens, mas também de julgar e castigar as infrações a essa lei.

Há, em Locke, e também na tradição liberal como um todo, uma perspectiva de- terminante, que é a da obediência necessária às normas, pois as infrações cometidas contra a sociedade devem ser penalizadas de acordo com o estabelecido em lei. Tudo isso constitui, para ele, a sociedade política, porque ninguém pode isentar-se das leis que regem uma socie- dade. Do contrário, o homem se encontraria ainda no estado de natureza, não podendo ser membro ou parte da sociedade civil. Segundo ele, a sociedade política não pode existir sem ter em si o poder de preservar a propriedade, de modo que um governo sem lei é inconcebível e incompatível com a sociedade dos homens.

Locke afirma que o poder absoluto também é limitado, restringindo-se aos seus objetivos pactuados pelos homens. Há, em Locke, o direito à resistência, caso o Estado des- cumpra o pacto social e desobedeça ao direito natural: os liberais destacam o perigo de uma tirania da maioria, postulando o primado dos direitos humanos, que garantem as liberdades pré-políticas do indivíduo, opondo-se também à vontade soberana do legislador político.

Sobre os aspectos negativos da política liberal, Habermas explica que essa destaca unicamente uma política ligada ao aparelho do Estado, desprezando o conjunto de cidadãos

capazes de agir. Tal centralismo político impede o potencial comunicativo dos cidadãos, já que seria o Estado unicamente o encarregado do fazer político. Todavia, Habermas considera positiva a questão da normatização jurídica e a ênfase nas liberdades individuais e nos direitos humanos, presentes no modelo liberal (aspectos esses da política liberal de que Habermas se utilizará na elaboração do conceito de democracia deliberativa), que, em contrapartida, é dei- xado em segundo plano no modelo republicano de política, que veremos a seguir.

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