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Do céu transcendental ao chão do mundo da vida: uma introdução à Verdade e

2 QUADRO REFERENCIAL TEÓRICO DO PENSAMENTO PÓS-META-

2.3 Verdade e justificação

2.3.1 Do céu transcendental ao chão do mundo da vida: uma introdução à Verdade e

Verdade e justificação reúne trabalhos escritos entre 1996 e 1998, que retomam o fio de uma reflexão interrompida em Conhecimento e interesse, na década de 1960. Apesar de a pragmática da linguagem, que Habermas desenvolveu nos anos 1970, ter feito uso de con- ceitos como verdade, referência, validade, objetividade, realidade e racionalidade, estes não foram abordados à luz da filosofia teórica, como em Verdade e justificação.

O objetivo de Verdade e justificação é, portanto, discutir aspectos da filosofia teó- rica que ficaram em segundo plano desde Conhecimento e interesse. Habermas pretende “[...] retornar os problemas que permaneciam suspensos, posto por um pragmatismo de inspiração kantiana” (HABERMAS, 2004d, p. 13).

Como sabemos, Wittgenstein, nas Investigações filosóficas, não vai negar total- mente o caráter designativo da linguagem, enfatizado no Tractatus, porém ele critica o exagero da tradição ao ver na designação a principal e única função da linguagem, uma vez que a teoria da afiguração diz respeito à correspondência estrutural entre frase e estado de coisas. Para a tradição, a linguagem seria um reflexo do mundo, pois o decisivo seria a estrutura ontológica da realidade. Contudo, nas Investigações filosóficas, Wittgenstein destaca a perspectiva de que

não existe um mundo em si independente da linguagem, que deveria ser supostamente copia- do por ela, tal qual um espelho da natureza, como diria Richard Rorty (1988).

Não está mais em questão a representação correta da realidade ou a estrutura onto- lógica do mundo. É impossível determinar a significação das palavras sem uma consideração do contexto social em que são usadas, porque é o uso que decide a significação das expressões linguísticas, característica central do pragmatismo. No segundo Wittgenstein e também em Habermas, a ênfase é dada, sobretudo, à pragmática. Ou seja, a semântica é articulada tão somente a partir da pragmática. A lógica, nas Investigações filosóficas, é vista por Wittgens- tein como apenas um jogo de linguagem dentre outros, como podemos perceber no parágrafo 116 das Investigações: “Quando os filósofos usam uma palavra – ‘saber’, ‘ser’, ‘objeto’, ‘eu’,

‘proposição’, ‘nome’ – e procuram aprender a essência da coisa, deve-se sempre perguntar:

essa palavra é usada de fato desse modo na língua em que ela existe?”.

Em Wittgenstein, há a tarefa de reconduzir as palavras do seu emprego metafísico para seu uso cotidiano. A semântica, portanto, só atinge sua finalidade chegando à pragmática, dado que o sentido das palavras e frases só pode ser resolvido pela explicitação dos contextos pragmáticos. Isso trará sérias consequências para a filosofia de Habermas, como ainda vere- mos no decorrer da tese, naquilo que podemos chamar de um déficit ontológico e metafísico em Habermas.

O pensamento pós-metafísico destranscendentaliza o reino do inteligível, fazendo com que as questões caiam do céu transcendental em direção ao chão do mundo da vida, atra- vés dos pressupostos pragmáticos faticamente inevitáveis dos atos de fala. Com a destrans- cendentalização, a esfera transcendental perde as conotações de uma grandeza situada “no além”, na esfera do inteligível, descendo à Terra. “Após o deflacionismo pragmático da con- ceitualidade kantiana ‘análise transcendental’ significa a busca de condições supostas univer- sais, mas apenas de facto inevitáveis, que devem ser preenchidas para que determinadas práti- cas ou operações fundamentais possam ocorrer” (HABERMAS, 2004d, p. 18).

Por conseguinte, o objeto da análise transcendental não é mais uma “consciência em geral” desprovida de origem. A investigação volta-se, acima de tudo, para as estruturas profundas do pano de fundo do mundo da vida, estruturas que se corporificam nas práticas e operações de sujeitos capazes de falar e agir. Entretanto, vale lembrar que, mesmo com a des- transcendentalização, o questionamento transcendental se mantém. À medida que os falantes se orientam por pretensões de validade, supondo uns dos outros responsabilidades, suas metas estão também para além dos contextos locais.

Com a destranscendentalização, altera-se o próprio conceito do transcendental (HABERMAS, 2004d). Mesmo que se mantenha o questionamento transcendental, o pragma- tismo abranda a oposição entre o transcendental e o empírico. Quando os falantes se orientam por pretensões de validade, supondo uns dos outros plena responsabilidade, seu valor está para além dos contextos contingentes.

Os sujeitos, constituídos em contextos diferentes, levantam pretensões de validade para além de seus mundos vividos específicos. Há uma transcendência a partir de dentro, que parte do mundo vivido, da pragmática e da historicidade. Isso é fundamental para a filosofia política de Habermas, conforme ele defende uma prioridade do justo sobre o bem, apesar de os sujeitos deliberarem a partir de mundos vividos diferentes.

A descida da compreensão original do transcendental para a compreensão deflacio- nada tem conseqüências [sic] importantes. Se as regras transcendentais não são mais algo de inteligível fora do mundo, elas se tornam a expressão de formas de v i- da culturais e têm um começo no tempo. Isso tem a conseqüência [sic] de já não podermos, sem mais, reivindicar ‘universalidade’ e ‘necessidade’ para o conheci- mento empírico que essas condições transcendentais possibilitam, nem, portanto, qualquer objetividade. E as condições transcendentais para um acesso epistêmico ao mundo têm de ser compreendidas, elas mesmas, como algo que existe no mun- do. (HABERMAS, 2004d, p. 25-26).

Se a consciência transcendental kantiana habitava o reino do inteligível, perten- cendo à esfera noumenal, sem origem no espaço e no tempo, entendida como instância garan- tidora de um conhecimento necessário e universal, com a destranscendentalização, as estrutu- ras possibilitadoras do conhecimento do mundo passam a integrar a práxis comunicativa coti- diana. A esfera transcendental é “rebaixada” ao reino dos fenômenos, sendo agora expressão de formas de vida culturais.

Não pode surgir uma autorreferência privilegiada (sujeito) sob condições de inte- ração antes que se tenha formado um meio linguístico com perspectivas de falantes e ouvin- tes. Disso resulta que a autoconsciência originária não é um fenômeno da esfera privada do sujeito, mas que é gerada comunicativamente. Com a guinada linguística, as relações entre linguagem e mundo e entre proposição e estado de coisas substituem as relações entre sujeito e objeto.

Habermas articula, então, uma leitura pragmática do pensamento transcendental. O conhecimento não é mais algo construído pelo sujeito transcendental, e sim pelos sujeitos per- tencentes aos mundos vividos. Como destaca Wittgenstein no parágrafo 23 das Investigações filosóficas, “[...] o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida”.

Assim, as condições transcendentais para o conhecimento do mundo estão no pró- prio mundo, não pertencendo mais a uma consciência a-histórica. A consciência transcenden- tal kantiana é substituída pela valorização epistêmica das práticas intersubjetivas que permi- tem a coordenação das ações e o entendimento no meio social e no mundo da vida estruturado linguisticamente.

Em Habermas, o transcendental e o empírico não se opõem. O que ele combate é a ideia de que o transcendental possa autofundamentar-se como filosofia primeira, independen- temente do empírico, porque haveria nisso, segundo ele, o risco de cairmos novamente numa filosofia da consciência. Por isso, ele fala de um transcendental fraco no agir comunicativo. Isso será objeto de crítica de Apel, acerca do tema da fundamentação última, do papel da filo- sofia e da suposta neutralidade do discurso frente à moral e ao direito, que veremos no decor- rer da tese, constituindo uma forte crítica de Apel a Habermas.

A guinada linguística preparou os meios conceituais mediante os quais é possível analisar a razão incorporada no agir comunicativo. Habermas considera que a guinada linguís- tica ocorrida no século XX colocou a filosofia sobre uma base metódica mais segura, liber- tando-a das aporias das teorias da consciência.

A descoberta da linguagem como medium intransponível de todo sentido, de toda reflexão teórica e prática, forçou um “re-pensamento” de todos os problemas filosóficos. Para Habermas, a guinada linguística possui vários motivos, dentre os quais a convicção de que a linguagem forma o meio para as encarnações culturais e históricas do espírito humano e que uma análise metodicamente confiável da atividade do espírito não deve começar pelos fenô- menos da consciência, e sim pelas expressões linguísticas. E qual o porquê disso?

Com a passagem do paradigma moderno da filosofia da consciência para o da lin- guagem, os sinais linguísticos, que serviam outrora apenas como instrumentos de representa- ção, adquirem agora uma importância própria, em que o trabalho de constituição do mundo deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental, transferindo-se para as estruturas gramaticais intersubjetivas dos falantes.

Enquanto a filosofia da consciência toma como ponto de partida a autorreferência de um sujeito que representa e manipula objetos, a teoria da ação comunicativa toma como ponto de partida as condições de compreensão dos atos de fala. Segundo Habermas, o agir comunicativo tem a vantagem de não se orientar apenas semanticamente pela compreensão de proposições, mas, sobretudo, pragmaticamente, pois os atores se entendem mutuamente sobre algo através de relações recíprocas e interpessoais.

A partir da reviravolta pragmática, no sentido habermasiano, como contextualiza Manfredo Oliveira (2015b), a linguagem passa a ser percebida na sua dupla dimensão, ou seja, a semântica (apresentação do mundo) e a comunicativa, sendo justamente o proferimento linguístico uma forma de ação (AUSTIN, 1990). Portanto, em Habermas manifesta-se a estru- tura de “dupla dimensionalidade” da comunicação da linguagem comum: ela é uma associa- ção de um ato de fala e uma sentença de conteúdo proposicional. Só se realiza verdadeiramen- te uma compreensão quando pelo menos dois sujeitos atingem, ao mesmo tempo, ambos os níveis: 1) o nível da intersubjetividade, no qual ouvinte e falante falam um ao outro; e 2) o nível dos objetos, sobre os quais eles se entendem.

A apresentação de fatos, para Habermas (1989), é apenas uma entre as várias fun- ções do entendimento mútuo linguístico. Os atos de fala não servem apenas para a representa- ção de estados e acontecimentos, quando o falante se refere a algo no mundo objetivo. Mas também dizem respeito às relações interpessoais, quando o falante se refere a algo no mundo social das interações legitimamente reguladas. Além disso, o falante se refere também a algo no mundo subjetivo, tendo um acesso privilegiado. Os participantes da comunicação baseiam seus esforços de entendimento mútuo num sistema de referências composto de exatamente três mundos: objetivo, social e subjetivo. Considerando-se o “entendimento mútuo” como o telos inerente à linguagem, impõe-se a co-originalidade de apresentação, comunicação e ação. Habermas, então, destaca que não há como separar rigidamente a relação objetiva ao mundo da relação comunicativa entre os sujeitos, visto que, ao estabelecer uma relação intersubjetiva entre falante e ouvinte, o ato de fala também está numa relação objetiva com o mundo, que igualmente diz respeito a todos. Por isso, Habermas fala de uma compreensão descentrada de mundo, porque na linguagem os atores podem se referir ao mundo objetivo das coisas existentes, ao mundo social das normas e ao mundo subjetivo dos afetos.

Por conseguinte, o falante expressa algo comunicando-se com um outro membro de sua comunidade linguística sobre algo no mundo. No agir comunicativo, há uma tríplice relação de um proferimento que serve, em primeiro lugar, como expressão da intenção de um falante; em segundo lugar, como expressão para o estabelecimento de uma relação interpesso- al entre falante e ouvinte; e, por último, como expressão sobre algo no mundo.

Se os participantes da interação chegam ou não a um acordo é algo que se avalia, diz Habermas, pelas tomadas de posição (sim/não) com as quais um destinatário aceita ou re- jeita as pretensões de validade erguidas pelo falante. Numa atitude orientada para o entendi- mento mútuo, o falante ergue um proferimento com as seguintes pretensões: que o enunciado

formulado seja verdadeiro, que o ato de fala seja correto relativamente a um contexto norma- tivo existente e que a intenção manifesta do falante seja visada de modo como é proferida.

Para Habermas, na comunicação cotidiana, tais aspectos não são claramente dis- tinguidos. Todavia, no caso de um dissenso ou de uma problematização persistente, os falan- tes competentes podem diferenciar cada referência, tematizando pretensões de validade e po- sicionando-se em relação a algo objetivo, normativo ou subjetivo. Não há razão que só poste- riormente vista as roupagens linguísticas. O que há é uma razão encarnada nos contextos do agir comunicativo e nas estruturas do mundo da vida.

2.3.2 O problema do naturalismo fraco e a distinção entre Verdade e justificação: confron-

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