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O estatuto do mundo objetivo em Verdade e justificação: de um novo acerto a

2 QUADRO REFERENCIAL TEÓRICO DO PENSAMENTO PÓS-META-

2.3 Verdade e justificação

2.3.2 O problema do naturalismo fraco e a distinção entre verdade e justificação:

2.3.2.3 O estatuto do mundo objetivo em Verdade e justificação: de um novo acerto a

Segundo Clístenes França (2015), Habermas, em Verdade e justificação, substitui sua outrora teoria da verdade por uma teoria da justificação, deixando de oferecer-nos uma teoria da verdade genuína. Uma teoria da verdade e uma teoria da justificação são empreen- dimentos teóricos distintos. A primeira teoria da verdade de Habermas, dos tempos do Agir comunicativo, era uma teoria antirrealista, pois, como vimos antes, a verdade era algo sinôni- mo de justificação. Ela não dependia da ocorrência no mundo de um estado de coisas, tendo a ver com a legitimação das pretensões de validade dos falantes.

Já em Verdade e justificação, a verdade não se circunscreve à esfera do discurso; ela sempre o ultrapassa. Portanto, o máximo que podemos afirmar sobre a aceitabilidade raci- onal de uma asserção é que muito provavelmente ela é verdadeira, mas não podemos garantir que isso ocorra de fato. Critérios de autorização, entretanto, são formulados por teorias da justificação, e não por teorias da verdade. França (2015) levanta a hipótese de que, em Verda- de e justificação, Habermas apresenta uma teoria da justificação, e não mais uma teoria da verdade. Habermas não pode mais dizer em que a verdade consiste, mas apenas indicar o que nossas intuições pragmáticas realistas nos afirmam que ela seja.

Para França (2015), à luz de Kirkham, uma teoria da verdade seria uma teoria me- tafísica que buscaria fixar uma definição do que seja a verdade. Uma teoria metafísica da ver- dade, contudo, não procuraria oferecer mecanismos que nos auxiliassem a determinar quando nos encontramos de posse de um conhecimento verdadeiro. Já uma teoria da justificação bus- ca indicar as evidências e garantias que algo deve possuir para ser considerado como prova- velmente verdadeiro. Critérios de autorização são formulados por teorias da justificação, e não por teorias da verdade.

Habermas apresentaria, em Verdade e justificação, uma teoria da justificação, e não mais uma teoria da verdade. A incorporação de aspectos realistas ao conceito da verdade na pragmática formal de Habermas resultou no abandono de se oferecer uma definição positi- va do que é a verdade de fato. Como pensar, a partir disso, o problema do mundo?

Habermas defende uma concepção realista de mundo, como não igual ao mundo vivido, à medida que ele o caracteriza como um mundo de objetos independentes. Ele chega ao mundo objetivo somente através de análises das ações e discursos que os falantes e agentes realizam no processo comunicativo. Mas isso não transcende a dimensão da comunicação. Segundo Puntel, Habermas sempre privilegia a dimensão pragmática em relação à semântica, embora defenda que são duas dimensões co-originárias.

Ele supõe que o “próprio mundo” é o “próprio mundo” apenas se permanecer completamente intocado pela linguagem. Habermas separa fatos de objetos. Ele não menciona a perspectiva de que, ao identificarmos os objetos como elementos do “próprio mundo”, nós já estamos falando acerca desses objetos pertencentes ao “próprio mundo”. Aqui há, como pano de fundo, a clássica crítica de Hegel a Kant.

Se os fatos acerca dos objetos não têm um status ontológico, então somos confron- tados com uma declaração incorreta. Com efeito, para que tenha um significado in- teligível, ‘ser acerca de um objeto’, deve ser entendido como ‘alcançar’ ou ‘atingir’ ou ‘concernir’ o próprio objeto; é algo sem sentido declarar um fato acerca de um objeto e então defender que este fato nada tem a ver com o objeto. Se o fato expres- so nada tem a ver com o objeto, o objeto permaneceria em um esplêndido isola- mento, desconhecido, inarticulado. O processo de aprendizagem que torna possível a expressão de fatos acerca dos objetos não teria qualquer sentido. (PUNTEL, 2013, p. 206).

Habermas, por sua vez, defende uma concepção nominalista do mundo: o mundo é a totalidade de objetos dos quais podemos estabelecer fatos. Segundo Habermas, os fatos são o que nós declaramos acerca dos objetos. Ele enfatiza que o nominalismo é menos suspei- to do que outras posições ontológicas, especialmente as posições que atribuem um status on- tológico aos fatos. De acordo com Puntel, o argumento de Habermas é incoerente, visto que, se os fatos têm uma relação essencial com a linguagem, o mesmo deve ser dito dos objetos. Se os fatos estão entrelaçados com a linguagem porque podem ser expressos, o mesmo ocorre com os objetos, haja vista que podem ser referidos a algo. Habermas, porém, defende que apenas os fatos são tocados pela linguagem, não os objetos.

Podemos dizer que há um abismo que separa a dimensão pragmática da semântica em Habermas, embora ele sempre argumente que são duas perspectivas inseparáveis. Esse é um aspecto a ser criticado no pensamento de Habermas, à medida que ele não concilia, de

fato, a pragmática e a semântica. Segundo Manfredo Oliveira (2010a), do pressuposto meto- dológico fundamental da razão comunicativa, Habermas deriva uma consequência temática drástica, ou seja, a restrição do tema da filosofia à dimensão do mundo da vida. Dessa forma, como também aponta Puntel (2013), a abordagem pragmática habermasiana considera que as estruturas e práticas da comunicação do mundo da vida são a base única, última e decisiva do pensar filosófico, privilegiando a linguagem natural em sua integralidade.

Habermas, em Verdade e justificação, distingue entre as funções expositiva (Darstellung) e comunicativa (Kommunikation) da linguagem natural, afirmando que elas se pressupõem mutuamente, aceitando a tese de Michael Dummett. Porém, Habermas privilegia claramente a dimensão pragmática, colocando a semântica em segundo plano. O resultado é que o problema do mundo objetivo, em Habermas, não é explorado suficientemente em sua teoria, aparecendo apenas como pressuposição formal.

Não há uma clareza acerca da relação entre verdade e mundo objetivo, apesar de este ser determinante na sua nova teoria da verdade. Nesse sentido, podemos dizer que há um déficit ontológico em Habermas, pois a ontologia aparece sempre à sombra em seu quadro referencial teórico, mas nunca como algo tematizado, e sim pressuposto formalmente. Ou seja, há uma postulação da dimensão ontológica, e não propriamente da ontologia, que é a teoria dessa dimensão. A semântica é reduzida à pragmática (ou pelo menos articulada em função da pragmática e a ela submetida), referência central de toda a filosofia de Habermas.

Como vimos antes, Habermas diz que a justificação não pode ser mais um critério de verdade, mas ela continua sendo um mecanismo de certificação da verdade. De acordo com Puntel (2008), porém, quando uma sentença é qualificada como verdadeira, supõe-se a correspondência com algo no mundo, levantando-se a questão de como deve ser concebido esse algo.

Se assim é, ele [Habermas] deveria reconhecer que esta articulação ou conexão é exprimível e, portanto, não somente pode, mas deve ser explicitada – caso contrário, falar dela seria vazio e autocontraditório. Mas isto é algo que Habermas poderia ou deveria aceitar? De fato, ele não apresenta qualquer explicação relevante da dimen- são da conexão ou entrelaçamento, e isto deve ser considerado como resultado de sua posição pós-metafísica. (PUNTEL, 2013, p. 198).

Segue-se daí que a articulação teórica da dimensão pressuposta – do entrelaça- mento/conexão de verdade e mundo – não pode ser realizada pelo discurso pragmático ou dentro de seu quadro referencial teórico pragmático. Isso torna claro que a afirmação de Ha- bermas a respeito de uma verdade incondicional é extremamente restrita. Em suma, é uma

afirmação dentro do âmbito da pragmática, que torna Habermas incapaz de articular uma ver- dade genuinamente incondicional.

Ele fala da importância de se reconhecer a dimensão da validade incondicionada, mas não avança para além de tal afirmação. Se há a necessidade de separar verdade de justifi- cação, ele teria que aprofundar e tematizar o que está chamando de verdade e mundo objetivo. Ou seja, que algo é esse que se encontra para além da justificação e que, ao mesmo tempo, pode pôr abaixo as justificações no mesmo instante em que só temos acesso ao mundo objeti- vo pelas próprias justificações?

A mesma crítica de Puntel a Habermas pode ser feita a toda a tradição transcen- dental oriunda de Kant14. Este afirma que a representação das coisas como nos são dadas deve

regular-se como fenômenos, e não como coisas em si. Em Kant, não é possível, no conheci- mento a priori, acrescentar aos objetos nada a não ser o que o sujeito pensante toma de si mesmo.

Todavia, Kant exemplifica que, se não é possível conhecermos os objetos como coisas em si mesmas, podemos, contudo, pensá-los. Habermas segue a mesma perspectiva de Kant, postulando a intersubjetividade destranscendentalizada no lugar do sujeito transcenden- tal. Porém, a orientação continua a mesma, quando Habermas afirma que podemos conhecer apenas os fatos, não os objetos do mundo. O mundo, diz ele (2007), não nos impõe sua lin- guagem; ele não fala e só responde em sentido figurado.

Habermas elabora uma teoria filosófica centrada na dimensão comunicativa (pragmática). Seria a partir dela que outras dimensões poderiam ser compreendidas. Percebe- mos que a dimensão expositiva (semântica) é posta em segundo plano. Em Habermas, o modo como as coisas do mundo são apreendidas e denominadas se orienta no contato comunicativo entre pessoas. O mundo objetivo, para ele, só é conhecido com base na relação com o quadro referencial da comunicação. Ele é apenas considerado de tal modo que a interação entre pes- soas se faça possível. Contudo, Habermas não se interroga pela condição de inteligibilidade da própria pragmática.

Uma pergunta permanece sem resposta em Habermas: o que significa compreen- der algo? É preciso destacar, contra ele, que há um déficit acerca de uma consideração da lin- guagem em sua dimensão estrutural no que diz respeito à dimensão ontológica e à dimensão

14 “Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecimento de objetos, na medida em que ele deva ser possível a priori. Um sistema de tais con- ceitos denominar-se-ia filosofia transcendental” (KANT, 1974a, p. 33).

metafísica. Isso terá, como veremos no decorrer da tese, sérias consequências em sua análise limitada da religião, pensada apenas como dimensão pragmática.

Habermas, de fato, é coerente com sua preocupação em distinguir a verdade da justificação, tendo em vista também as questões de sua filosofia política15. Ele defende a for- mulação de critérios universais e justos, em analogia às condições de verdade que transcen- dem a justificação. Esse aspecto aparece na prioridade habermasiana do justo sobre o bem, ou seja, na defesa de critérios justos e imparciais fundamentados discursivamente, frente a crité- rios construídos tendo como referência uma determinada cultura. Os sujeitos precisam, em suas pretensões de validade, pressupor um mesmo mundo em comum para todos, seja na in- tervenção ou tematização do mundo.

Habermas explica que, embora não possamos falar de uma verdade objetiva na dimensão política, podemos falar de uma universalidade, em analogia com essa mesma di- mensão objetiva que transcende a justificação. Isso, como veremos no capítulo seguinte, será determinante na defesa da primazia do justo sobre o bem, isto é, na ênfase de uma possível construção de critérios de justiça imparciais, discursivamente fundamentados.

Aqui há um ponto determinante no pensamento habermasiano no que diz respeito às discussões envolvendo ética e normatividade, a saber, a ideia de que os sujeitos, embora partam de seus contextos linguísticos e mundos vividos específicos, transcendem, ao mesmo tempo, tais contextos. Contudo, Habermas destaca que, ainda que haja analogia entre verdade e correção normativa (ou justificação), a primeira tem a ver com o mundo objetivo que somos obrigados a pressupor, e a segunda, por seu turno, com as questões da filosofia política. Posto isso, podemos ainda falar de verdade na ética, no âmbito do pensamento pós-metafísico ou apenas de justificação e correção normativa?

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