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Sentenças éticas são passíveis de verdade no pensamento pós-metafísico?

2 QUADRO REFERENCIAL TEÓRICO DO PENSAMENTO PÓS-META-

2.3 Verdade e justificação

2.3.2 O problema do naturalismo fraco e a distinção entre verdade e justificação:

2.3.2.4 Sentenças éticas são passíveis de verdade no pensamento pós-metafísico?

Como nos mostra Dutra (2003), Habermas pretende que fortes exigências comu- nicativas sejam capazes, a partir de si mesmas, de dar um caráter de transcendência à correção normativa, colocando a justificação racional ofertada num procedimento discursivo em analo- gia com a verdade que também transcende toda justificação.

Assim como a verdade é traduzida num conjunto de ações pragmáticas que a põe em contato com um mundo objetivo, independentemente de nossos conceitos, a correção

15 Thomas McCarthy (2013), por exemplo, destaca que Habermas pretendeu reconstruir uma teoria da sociedade com intenção prática.

normativa também é traduzida num conjunto de posições valorativas, criando vínculos axio- lógicos, convicções que guiam a ação. Tal qual na verdade, a separação entre o justo e o bem visa a resgatar a validade moral, num nível mais abstrato, frente ao desmoronamento das tra- dições morais através da modernidade.

Conforme Candioti (2008), a distinção proposta por Habermas entre verdade e justificação relaciona-se igualmente com o alcance discursivo no âmbito moral. Enquanto a ideia da verdade tem referência no mundo objetivo, a validade de uma norma no mundo so- cial consiste na perspectiva de ser reconhecida à luz da situação ideal de fala. É certo, para Habermas, que a correção normativa não tem um ponto de referência a objetos, o que se exi- ge dos enunciados verdadeiros. As convicções morais não são questionadas pela resistência do mundo objetivo, mas sim por dissensos no mundo social.

O sentido de correção reduz-se a uma aceitação idealmente justificada. Ao cons- truir um mundo de relações interpessoais, contribuímos para preencher as condições de vali- dade dos juízos e normas morais. A ausência de conotações ontológicas, na correção normati- va, não pode prejudicar a pretensão de validade universal, que diz respeito às relações de re- conhecimento aceitas como justas por todos os envolvidos, sejam crentes ou não, na busca de critérios normativos imparciais no mundo marcado pelo pluralismo simbólico. Diferentemen- te da verdade, a correção normativa relaciona-se com a aceitabilidade idealmente justificada, portanto com as questões da filosofia política.

No lugar da resistência dos objetos, nos quais nos esfregamos no mundo da vida, entra aqui a dos adversários sociais, cujas orientações axiológicas conflitam com as nossas. Essa objetividade de um espírito alheio é, de certo modo, feita de um mate- rial mais brando que a objetividade de um mundo surpreendente. No entanto, para que as pretensões de validade moral devam sua força obrigatória a uma incondicio- nalidade análoga à verdade, é preciso que a orientação pela sempre mais expandida inclusão de pretensões alheias e outras pessoas possa compensar a ausência da refe- rência ao mundo objetivo. (HABERMAS, 2004d, p. 53, grifo do autor).

Enquanto falta à validade deontológica dos enunciados morais as conotações on- tológicas da validade veritativa, entra no lugar da referência ao mundo objetivo a ideia regula- tiva de inclusão recíproca de pessoas estranhas umas às outras num mundo inclusivo. A exis- tência de estados de coisas relaciona-se com o sentido deontológico de que normas morais merecem o reconhecimento de todos. Porém, não podemos assimilar o mundo moral ao obje- tivo. É possível, no entanto, como ressaltamos antes, fazer uma analogia entre o mundo obje- tivo e o sentido deontológico das normas construídas universalmente, através de um critério deliberativo e discursivo do justo. Nesse sentido, França (2016, p. 152, grifo do autor) nos esclarece que:

Tanto a verdade dos enunciados descritivos quanto a correção normativa dos enunciados morais têm por condição sine qua non o envolvimento dos sujeitos em processos argumentativos que visem à construção de um entendimento intersubje- tivamente partilhado. Por outro lado, a verdade distancia-se da correção normativa por referir-se a uma realidade independente que transcende toda forma de justifi- cação, inclusive aquela realizada sob condições ideais de fala, e isso é uma novi- dade que Habermas apresenta em seu livro Verdade e justifica ção em relação a suas posições anteriores. O componente ontológico da verdade, mesmo que enten- dido em seu sentido fraco, impede a identificação entre a verdade e o resultado do processo justificacional que é a aceitabilidade racional.

Numa analogia ao que ocorre no debate sobre verdade e justificação na filosofia teórica, Habermas, na filosofia política, mantém a perspectiva de se partir do contexto, mas igualmente ir além do contexto pelas justificações do mundo da vida, na defesa do justo sobre o bem. Ele entende que, no caso da validade deontológica, a ideia regulativa é a da inclusão mútua de sujeitos em princípio estranhos entre si, num mundo de relações interpessoais possi- bilitadas por uma ordem justa. Portanto, o preenchimento da função expressiva e interativa também se mede em condições análogas às da verdade.

Se Habermas acerta na proposta de separar a verdade da justificação, haja vista o problema da universalidade e da objetividade (de um mesmo mundo para todos), ele, ao mesmo tempo, não consegue esclarecer como ocorre a relação da co-originaridade entre expo- sição e comunicação, não aprofundando o estatuto que o mundo possui em sua filosofia teóri- ca. Habermas não avança de forma mais profunda acerca de questões ontológicas exigidas por sua nova posição realista-pragmática. Isso terá sérias consequências na sua análise da religião, centrada apenas na dimensão pragmática.

Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questões filosóficas que tradicionalmente se- riam chamadas de metafísicas, tal qual a tematização do mundo. Como ressalta Puntel (2013), as tentativas de Habermas de abordar questões filosóficas centrais, sem deixar de ser fiel ao pensamento pós-metafísico, conduziram-no a problemas fundamentais, obscuridades, incoe- rências, ausências de esclarecimentos e soluções.

Habermas, assim, distingue verdade de correção normativa ou justificação, en- tendendo verdade, tal qual demonstra Puntel (2008), de alguma maneira no sentido da teoria da correspondência, relacionada ao mundo objetivo. Em distinção à validade da verdade, a correção normativa diz respeito à aceitabilidade idealmente justificada. Na filosofia política habermasiana, portanto, “[...] enunciados éticos não são verdadeiros ou não verdadeiros, mas apenas corretos ou incorretos” (PUNTEL, 2008, p. 395). Interessante é ver, como explica Puntel, que justificação é um conceito pragmático; já o de fundamentação não pode ser

entendido exclusivamente como conceito pragmático. Habermas, por exemplo, sempre fala de fundamentação pós-metafísica ou pós-tradicional.

Embora haja analogia entre verdade e correção normativa ou justificação, a ver- dade não aponta para as questões éticas da filosofia política, e sim para o mundo objetivo. Na filosofia política habermasiana, podemos falar em correção normativa e justificação em con- dições ideais. Os participantes do discurso, que tematizam pretensões de validade, têm de aceitar, mesmo em condições epistêmicas favoráveis, “[...] a melhor justificação possível de ‘p’, ao invés da ‘verdade’ de ‘p’” (HABERMAS, 2007, p. 100). A correção normativa esgota seu sentido nas condições ideais de justificação.

Essa perspectiva da filosofia teórica habermasiana é essencial para as questões de sua filosofia política que serão debatidas mais diretamente a partir do capítulo posterior. Co- mo, então, enfrentar o problema do diálogo entre secularismo e religião na democracia delibe- rativa, uma vez que os sujeitos partem de contextos distintos, necessitando estabelecer princí- pios normativos válidos para todos num mundo diferenciado e pluralista?

No próximo capítulo, veremos como Habermas fundamenta sua filosofia política, pois é a partir da ideia de democracia deliberativa e das diversas questões intrínsecas a ela (liberdade, soberania, direitos humanos, prioridade do justo sobre o bem, relação entre moral e direito, entre outras) que o problema do diálogo entre secularismo e religião poderá ser en- frentado na filosofia política.

Além disso, em que a centralidade da pragmática, que apontamos neste capítulo, influencia a compreensão habermasiana da religião e mesmo seu entendimento limitado da ética do bem, visto que Habermas a interpreta sempre como algo particularista, sem universali- dade? Como conciliar tudo isso no quadro referencial teórico do pensamento “pós-meta-físico” e no conceito de democracia deliberativa, se é que é possível conciliar?

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