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Tive a oportunidade, ao longo de meu doutorado na Universidade Federal do Ceará (UFC), de estagiar um período na Ludwig-Maximilian-Universität (LMU), em Muni- que, na Alemanha. Logo quando desembarquei na estação central de Munique, deparei -me com o drama de milhares de imigrantes e refugiados de guerra que desembarcavam naquele mesmo dia em Munique. Meses depois, a França sofreria um ataque terrorista que causaria a morte de muitos. A Europa e o mundo debatiam questões como: tolerância, normatividade, limites da liberdade, convivência entre culturas diversas, terrorismo, religião, secularismo, democracia etc. Enfim, por uma dessas coincidências da vida, pude constatar o tema de meu doutorado diante de meus olhos. Sem falar também que o próprio Brasil, nas últimas déca- das, tem discutido a complexa relação entre secularismo e religião na democracia e na soci- edade como um todo.

Jürgen Habermas, nesse sentido, apresenta-nos uma leitura muito correta da situa- ção do tempo presente, destacando a necessidade de um diálogo entre tradições religiosas e seculares na democracia deliberativa. A perspectiva que procuramos defender nesta tese é a de que há um déficit ontológico (a falta de uma teoria dos entes) e metafísico (a falta de uma teoria do Ser) na filosofia de Habermas. O pensamento de Habermas se reduz, a nosso ver, à pragmática, não deixando espaço para o aprofundamento de questões ontológicas e metafísi- cas, que o próprio Habermas sugere implicitamente, embora sem aprofundar, por se manter fiel ao seu pensamento pós-metafísico.

O déficit ontológico e metafísico, analisado primeiramente na filosofia teórica, em Verdade e justificação, percorre igualmente sua filosofia política, à medida que Habermas não reflete acerca do caráter universal do bem na sua defesa da ética do justo. Finalmente, o défi- cit ontológico e metafísico alcança também sua análise dos discursos religiosos, restritos à pragmática, apesar de Habermas reconhecer a importância das religiões, quando traduzem suas intuições essenciais para uma linguagem pública e secular.

Puntel, como vimos, coloca um problema teórico que o leva a afirmar que a me- tafísica é a instância em que se traduz de forma adequada o conteúdo da religião. Como o problema de Habermas é puramente pragmático, isto é, como tornar possível um diálogo entre crentes e não crentes, ele não leva em consideração a dimensão metafísica da religião, mas apenas seu conteúdo ético, sem considerar a dimensão ontológica e metafísica do ético, já que a ética é pensada no quadro de uma pragmática universal. Se a ontologia e a metafísica

são dimensões irrecusáveis num quadro teórico-filosófico, sua leitura da ética é também insuficiente.

Além disso, a análise habermasiana da religião centra-se, sobretudo, em argumen- tos sociológicos. Como sabemos, Habermas eliminou a diferença fundamental entre as tarefas da filosofia e da sociologia. O resultado disso é que a análise habermasiana da religião elimi- na perguntas que estariam no âmbito da filosofia como tal, que dizem respeito ao Ser propri- amente dito.

Isso significa aqui uma crítica a Habermas em relação à sua concepção de reli- gião, que é fruto de um quadro teórico unilateral e de uma confusão entre a tarefa específica de uma teoria filosófica e a de uma teoria científica. Nossa crítica, então, não se dirige direta- mente a um confronto com ele no que diz respeito a seu problema fundamental: o lugar e o papel da religião no mundo contemporâneo, pois do contrário passaríamos igualmente para análises sociológicas, mas se situa no questionamento de sua compreensão unilateral da reli- gião em decorrência da unilateralidade de seu quadro referencial teórico, isto é, a pragmática. No segundo capítulo, sobretudo com Verdade e justificação, vimos que Habermas apresenta as últimas modificações teóricas do agir comunicativo, influenciando diretamente as questões de sua filosofia política, a partir da distinção entre verdade e justificação, bem como incorporando um naturalismo fraco em sua teoria. Na filosofia política, podemos falar agora de justificação e correção normativa (relacionadas com o mundo social), e não mais em ver- dade. Esta, por sua vez, tem a ver com as questões do mundo objetivo, que Habermas pressu- põe sem tematizar, constituindo aquilo que chamamos de um déficit ontológico (a falta de uma teoria dos entes) e, por conseguinte, metafísico (a falta de uma teoria do Ser), perpassan- do todo seu pensamento. Habermas reformulou sua antiga teoria da verdade, separando-a conceitualmente da justificação.

Habermas rejeita a teoria tradicional da verdade, sem oferecer uma explanação mínima do que ele chama de conexão ou entrelaçamento de verdade e mundo. Sua concepção realista pragmática permanece vaga, uma vez que há uma dicotomia entre mundo da vida e mundo objetivo. Este, em Habermas, permanece sempre intocado e inalterado. Ele chega ao mundo objetivo somente através de análises das ações e discursos que os falantes e agentes realizam no processo comunicativo. Mas isso não transcende a dimensão da comunicação, da pragmática e do mundo vivido.

Outro ponto inovador em Verdade e justificação, que teve consequências signifi- cativas na teoria habermasiana, foi a incorporação da teoria da evolução e do naturalismo na Teoria do agir comunicativo, através do naturalismo fraco. Este satisfaz-se com a hipótese de

que o equipamento orgânico e o modo de vida cultural do Homo sapiens têm uma origem “natural”, sendo acessíveis a uma explicação fundamentada na teoria da evolução.

O naturalismo fraco evita subordinar ou reduzir (do ponto de vista epistemológi- co) a perspectiva interna do mundo da vida ao mundo externo objetivo. Ele reúne as duas perspectivas teóricas sempre mantidas separadas, à medida que supõe a continuidade entre natureza e cultura. A suposição ontológica de um primado genético da natureza obriga tam- bém a perspectiva, própria do realismo cognitivo, de um mundo objetivo, independente do espírito.

Porém, o que Habermas chama de naturalismo fraco não é facilmente determiná- vel. O naturalismo fraco é um conceito que pouco nos diz, sendo algo essencialmente impre- ciso e não aprofundado em Verdade e justificação. O naturalismo fraco é tão naturalismo como o de Quine, uma vez que ambos pressupõem o mundo natural como início, embora Habermas nunca aprofunde as consequências de tal perspectiva no interior de sua teoria. Ha- bermas defende, em realidade, um naturalismo ontológico, mas rejeita um naturalismo epis- temológico, que reduz as ciências hermenêuticas aos procedimentos das ciências naturais. Não se deve tratar a análise do mundo da vida com as mesmas categorias e os mesmos pro- cedimentos das ciências da natureza como quer Quine.

Contudo, em Habermas, um problema permanece: há uma distinção não esclare- cida entre mundo vivido e mundo natural. Habermas não oferece uma explicação sobre a rela- ção entre os dois polos distintos ou de sua unidade. A ideia defendida por Habermas de que o mundo da vida é resultado da evolução do mundo natural é muito significativa para não ser suficientemente discutida por ele.

O que podemos concluir, apesar das imprecisões de Habermas sobre o natura- lismo fraco, é a ênfase da suposição ontológica de um primado genético da natureza, que obriga a perspectiva, própria do realismo cognitivo, de um mundo independente do espírito, embora Habermas nunca tematize tal dimensão. A teoria de Habermas, em realidade, res- tringe-se à pragmática e ao mundo vivido, havendo, a nosso ver, um déficit ontológico (a falta da tematização dos entes e suas interconexões) e metafísico (a falta da tematização do Ser) em seu pensamento. Habermas chega ao mundo por meio apenas das pressuposições dos atos de fala.

Já no terceiro capítulo, enfatizamos como as questões da filosofia teórica se re- lacionam com a filosofia política habermasiana, por meio do conceito de democracia delibe- rativa. O liberalismo e o republicanismo ainda estariam presos, segundo Habermas, a uma concepção de filosofia do sujeito e da consciência: o liberalismo centra-se no indivíduo e o

republicanismo na comunidade ética. A democracia deliberativa tenta acolher elementos de ambos os lados, integrando-os no contexto de um procedimento ideal para as tomadas de decisão.

Em consonância com o republicanismo, a democracia deliberativa de Habermas reserva uma posição central para o processo político de formação da opinião e da vontade, sem, no entanto, entender a constituição jurídico-estatal como algo secundário. Além disso, a democracia deliberativa, ao contrário também do modelo liberal, não opera com o conceito de um todo social centrado no Estado.

Habermas conserva os momentos positivos do liberalismo e do republicanismo, ao mesmo tempo que supera aquilo que considera negativo tanto de um como de outro. É a partir da síntese do liberalismo e do republicanismo, em direção à democracia deliberativa, que o poder socialmente integrativo da solidariedade precisa, como diz Habermas, desdobrar- -se sobre opiniões públicas autônomas e procedimentos institucionalizados por via jurídico- -estatal, para a formação democrática da opinião e da vontade.

O conceito de democracia deliberativa abrange também uma exigente relação en- tre esfera pública e parlamento, sistema e mundo vivido, algo determinante para a proposta de diálogo entre secularismo e religião. Habermas propõe o conceito de pós-secularismo, a partir da ideia de que a religião e o secularismo devem participar de um processo de aprendizagem complementar nos debates públicos.

Habermas nos apresenta, seja no debate interno à tradição kantiana de filosofia po- lítica, com John Rawls, seja no debate com teólogos, a exemplo de Metz e Mendieta, e comu- nitaristas, a exemplo de Taylor e MacIntyre, uma elaboração teórica muito consistente na defe- sa de uma ética formal, cognitivista e deontológica para um mundo pluralista e diferenciado.

Porém, apesar das críticas relevantes de Habermas aos comunitaristas e aos teó- logos, sua leitura das éticas do bem é limitada, à medida que ele não considera o caráter da universalidade do bem. Habermas concebe o bem num sentido rigorosamente particularista. Contudo, ele não menciona que os éticos gregos e medievais sempre defenderam uma ética do bem, sem reduzi-la a uma avaliação pura e simplesmente contingente da comunidade his- tórica específica. A nosso ver, a leitura de Habermas do bem é tão unilateral como a de MacIntyre e Taylor, que interpretam igualmente o bem como dimensão estritamente particu- lar, sem universalidade.

Nesse sentido, como vimos com Hösle, a contraposição “Ser/dever-ser” é inade- quada quando se pressupõe que o “dever-ser’ não pertence ao Ser. É preciso, portanto, levar em consideração as consequências da ação e, ao mesmo tempo, as formas do agir. Em Hösle,

é impossível fundamentar uma ética sem metafísica e filosofia transcendental, ou seja, sem afirmações sobre a estrutura do Ser como tal, algo inexistente em Habermas, assim como sem tematizar as questões da validade. Por isso, haveria uma terceira posição entre o utilitarismo e o formalismo estrito, combinando o “dever-ser” com o Ser e o consequencialismo nas ações éticas, afirmando, assim, o caráter da universalidade do bem.

Portanto, o utilitarismo, apesar de seus limites, abre possibilidades para pensar- mos o bem como universalidade e mesmo como possibilidade de criticarmos uma determina- da concepção de mundo particular em prol de uma universalidade que não exclui a noção de bem. Este, como vimos em Aristóteles, só se concretiza como universalidade da polis, que carrega a particularidade como momento determinante da universalidade. Habermas, entre- mentes, não tematiza uma ontologia em seu quadro referencial teórico; sua solução é sempre a defesa de uma ética deontológica.

Além disso, Habermas sofre críticas que são essenciais para repensarmos seu pro- jeto, a partir também da própria tradição de filosofia transcendental. Apel destaca que o fun- damento normativo do discurso não pode provir, como em Habermas, das relações fáticas de reconhecimento das formas de vida comunicativamente estruturadas.

Entretanto, mesmo considerando de extrema importância as críticas de Apel a Ha- bermas, a tradição transcendental de filosofia mostra ser limitada para pensarmos o problema da ontologia e da metafísica, tal qual procuramos defender ao longo desta tese. Aqui articula- mos uma outra crítica a Habermas que tem a ver, rigorosamente, com os limites da própria tradição transcendental de filosofia. Podemos dizer que se trata, para falarmos com Puntel, de um limite do quadro referencial teórico transcendental de filosofia e, no caso aqui em questão, do quadro referencial teórico habermasiano, centralizado apenas na pragmática.

Segundo Puntel, Habermas sempre privilegia a dimensão pragmática em relação à semântica. Há, em Habermas, um abismo que separa a dimensão pragmática da semântica, embora ele sempre argumente que são duas perspectivas inseparáveis. A passagem da subjeti- vidade para a intersubjetividade não significou, em Habermas, uma superação do caráter cen- tral do sujeito na filosofia. Há apenas um deslocamento do sujeito para a intersubjetividade.

Do pressuposto metodológico da razão comunicativa, tal qual vimos ao longo da tese, Habermas deriva uma consequência temática drástica, isto é, a restrição do tema da filo- sofia à dimensão do mundo da vida, da pragmática e da intersubjetividade. Dessa forma, a abordagem habermasiana considera que as estruturas e práticas da comunicação do mundo da vida são a base única, última e decisiva do pensar filosófico, privilegiando a linguagem natural em sua integralidade. O resultado é que o problema do mundo, em Habermas, não é

explorado suficientemente em sua teoria, aparecendo apenas como pressuposição formal. Isso tem sérias consequências na análise habermasiana limitada acerca dos discursos religio- sos, os quais se restringem à dimensão pragmática. A semântica, então, é reduzida à pragmá- tica, referência central de toda a filosofia de Habermas.

Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questões filosóficas que tradicionalmente se- riam chamadas metafísicas. As tentativas de Habermas de abordar questões filosóficas cen- trais, sem deixar de ser fiel ao pensamento pós-metafísico, conduziram-no a problemas fun- damentais, obscuridades, incoerências, ausências de esclarecimentos e soluções.

Habermas não aprofunda o tema da religião em si, limitando-se a dizer que as re- ligiões possuem intuições fundamentais e conteúdos indispensáveis que a razão secular não pode desprezar. Ora, ele deveria aprofundar afirmações tão significativas. Em Habermas, há um caráter restritivo da análise da linguagem. Ele considera apenas um dos seus componentes (a pragmática) como determinante. Por conseguinte, Habermas não tem condições de articular uma ontologia e uma metafísica.

Nesse sentido, haveria um limite da estrutura da racionalidade procedimental, que não engloba a dimensão do homem como um todo (como ente e suas interconexões) nem aquela dimensão que possibilita a interconexão de todas as interconexões: o Ser primordial. Isso simplesmente não é articulado ou tematizado no quadro referencial teórico do pensamen- to pós-metafisico.

Falta, em Habermas, uma reflexão sobre a compreensão da religião como espaço de articulação do sentido da vida, bem como uma leitura do fenômeno religioso a partir de uma teoria do Ser em si mesmo e em seu todo. A filosofia, como vimos com Puntel, deve le- vantar a questão de como interpretar o fenômeno religioso com base num quadro teórico-filo- sófico; no caso aqui em questão, uma teoria abrangente da realidade, uma teoria do Ser. A religião é uma atividade humana, o que significa dizer que é na esfera de uma teoria filosófica sobre o homem que ela encontra o lugar próprio para sua reflexão filosófica.

Segundo Puntel, a filosofia precisaria esclarecer a partir de si mesma a dimensão que, para as religiões, representa o ponto de referência central, ou seja, aquilo que as religi- ões denominam de “Deus”, algo inexistente em Habermas. Ele não tematiza o fato de que a racionalidade autenticamente universal possui também um fundamento na estruturalidade das próprias coisas: o discurso religioso sempre tem a ver com o universo e o Ser em seu todo. Nesse sentido, Eikrem, seguindo Puntel, aponta-nos para um caminho pós-habermasiano no entendimento da religião também como dimensão ontológica. Não se trata de negarmos as

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