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2 QUADRO REFERENCIAL TEÓRICO DO PENSAMENTO PÓS-META-

2.2 Aspectos sociológicos do agir comunicativo

2.2.3 A modernidade como um projeto inacabado

Para Habermas, embora a práxis comunicativa seja uma dimensão presente na vi- da humana, só a modernidade tornou possível sua racionalização, ao liberar, como vimos an- tes, os sujeitos do peso das tradições culturais, tornando possível um processo argumentativo que reflete sempre acerca das pretensões de validade dos sujeitos levantadas no falar. Aqui

consiste a ambiguidade da modernidade: ao mesmo tempo que ela gerou uma potencialidade crítica dos sujeitos que refletem sempre a respeito das pretensões de validade, liberando-os do peso das tradições não problematizadas, ela também se caracteriza pelo desenvolvimento ace- lerado da razão instrumental e de seus imperativos sistêmicos.

O potencial racional comunicativo, segundo Habermas (2002c), é simultaneamen- te desenvolvido e alterado no decorrer da modernização capitalista. Numa palavra, a moder- nidade é marcada pelos dois modelos de razão aqui explicitados: instrumental e comunicativo.

A questão principal posta é a predominância atual da racionalidade instrumental em contraposição à racionalidade comunicativa. Habermas (1983a) demonstra, contra a primeira geração da Teoria Crítica e os pós-estruturalistas, que a razão não pode ser reduzida à sua di- mensão estratégica e instrumental. Ele contrapõe-se a Marx, Weber, Lukács, Adorno, Horkhei- mer, Marcuse, Foucault, entre outros, porque esses autores, cada um em sua especificidade, teriam identificado a racionalização social apenas como racionalidade instrumental e estratégi- ca, esquecendo-se de outra esfera determinante da racionalidade: a dimensão comunicativa.

Adorno e Horkheimer (1985), por exemplo, caíram numa aporia à medida que consideraram a razão instrumental a única forma de racionalidade possível (NOBRE, 2008). Entretanto, em nome do que é possível criticar a racionalidade instrumental, se tudo está de antemão decidido? Adorno e Horkheimer (1985) assumem conscientemente tal aporia, afir- mando que ela é, no capitalismo administrado, a condição de uma crítica cuja possibilidade se tornou precária.

Eles denunciam o esclarecimento que se teria tornado totalitário, mas com os meios do próprio esclarecimento, existindo, para Habermas (2012c), uma contradição perfor- mativa em Adorno e Horkheimer (1985), impossibilitando uma saída para os dilemas da pri- meira geração da Teoria Crítica. As questões do tempo presente, para Habermas, teriam que ser repensadas a partir do paradigma da racionalidade comunicativa, como o diálogo entre secularismo e religião na democracia deliberativa.

Habermas, todavia, segundo Honneth (2003), teria colocado em segundo plano a perspectiva das lutas sociais por reconhecimento em sua teoria, em prol do entendimento co- municativo. Aqui aparecem críticas das mais relevantes vindas de Honneth (2003) à teoria comunicativa habermasiana. Sua crítica a Habermas pode ser dividida em dois pontos: 1) a crítica à distinção entre sistema e mundo da vida; e 2) a crítica à intersubjetividade comunica- tiva orientada para o entendimento. De acordo com Honneth (2003), Habermas, apesar de enfatizar que a razão instrumental deve estar submetida à comunicativa, também justifica a

racionalidade instrumental como elemento necessário para a coordenação da ação social e a reprodução material em sociedades complexas.

Segundo Honneth, ao introduzir a tese do desacoplamento entre sistema e mundo da vida, Habermas acaba por ceder demais à teoria dos sistemas (WERLE; MELO, 2008). Tal fato, para Honneth (1999, p. 544), impossibilita Habermas de pensar os próprios sistemas e a sua lógica instrumental como resultado de conflitos sociais permanentes: “Habermas corre o risco de ceder às ‘seduções da teoria dos sistemas’ e de novo renunciar ao potencial real de sua abordagem teórico-comunicativa”.

Não há nenhuma avaliação da lógica interna da dimensão sistêmica como tal em Habermas, bem como das causas da violação das condições de reconhecimento. Como conse- quência disso, Honneth considera que, em Habermas, a dinâmica de transformação e as pato- logias sociais passam a ser descritas de forma muito abstrata, mecânica e funcional, como processos de racionalização que decorrem de um embate entre imperativos sistêmicos coloni- zadores e as estruturas intersubjetivas comunicativas do mundo da vida.

Além disso, para Honneth, Habermas teria colocado a dimensão do conflito em segundo plano, privilegiando apenas a intersubjetividade comunicativa orientada para o en- tendimento (VOIROL, 2008). Enquanto a comunicação situa-se no centro da teoria social de Habermas, o reconhecimento situa-se na de Honneth (CHAMBERS, 2008).

Habermas, por sua vez, defende sempre que a modernidade é ainda um projeto inacabado, que não se efetivou por completo, pois a razão comunicativa está “bloqueada” pelos imperativos sistêmicos, não sendo coerente falarmos que o problema seja a razão como tal e proclamarmos seu fim ou sua despedida. Não se trata de concluir o projeto da moderni- dade, mas de revisá-lo.

Como afirma McCarthy (2013), há uma reconstrução da modernidade em Haber- mas, o qual propõe um conceito de sociedade em dois níveis, integrando tanto o mundo da vida quanto a dimensão sistêmica. Ele introduz a distinção entre sistema e mundo da vida para elaborar um conceito de racionalidade complexo, em que a razão instrumental passa a ser li- mitada para não obscurecer as estruturas comunicativas do mundo da vida. Esta perspectiva aparecerá nas reflexões políticas de Habermas, por meio do conceito de democracia delibera- tiva, quando ele pensará um modelo de política em que as esferas comunicacionais do mundo vivido dialogam e influenciam o parlamento.

Até aqui, analisamos: 1) a estrutura teórica da Teoria da ação comunicativa; 2) al- guns aspectos sociológicos do pensamento habermasiano, bem como sua leitura da sociedade moderna na Teoria da ação comunicativa. Agora, no terceiro tópico, seguindo o fio condutor

proposto, investigaremos 3) as inovações teóricas de 1999 em Verdade e justificação, sistema- tizando as questões sugeridas no segundo capítulo. Verdade e justificação traz as últimas mo- dificações teóricas do agir comunicativo, as quais influenciam toda a arquitetônica conceitual do pensamento habermasiano. Portanto, não se trata apenas de uma mera mudança circuns- tancial ou periférica no quadro referencial teórico habermasiano.

Em Verdade e justificação, Habermas (2004d) discutirá desafios teóricos igual- mente importantes para o pensamento pós-metafísico, tendo consequências em sua filosofia política, tal qual a distinção entre questões de verdade (relacionadas agora com o mundo obje- tivo que temos que pressupor) e de justificação (relacionadas à correção normativa), bem co- mo o problema do naturalismo fraco a partir da incorporação de elementos naturalistas no interior de sua pragmática formal.

Habermas (2004d) enfatiza que as duas questões fundamentais de sua filosofia teórica são: a questão ontológica do naturalismo e a questão epistemológica do realismo. Tais problemáticas da filosofia teórica, rearticuladas em Verdade e justificação, permitirão a Ha- bermas pensar em novos termos a relação entre filosofia teórica e prática. Como esclarece Clístenes França (2015), os impactos de tal reformulação na sistemática do pensamento ha- bermasiano não podem ser negligenciados. Ela não é, de forma alguma, uma mudança peri- férica e de menor importância, tendo consequências em toda a filosofia de Habermas.

Habermas opõe-se tanto ao erro idealista de tentar localizar as estruturas transcen- dentais num “para-além trans-mundano” quanto ao erro naturalista de reduzir a explicação dessas estruturas transcendentais a condições meramente empíricas. Vale lembrar que Haber- mas se opõe, em realidade, a condições empíricas no sentido das ciências naturais. Ele defen- de, como veremos, um naturalismo ontológico, mas rejeita um naturalismo epistemológico, que reduz as ciências hermenêuticas aos procedimentos das ciências naturais.

Dessa forma, como conciliar a normatividade irrecusável de um mundo da vida, linguisticamente estruturado, no qual já sempre nos encontramos como sujeitos de linguagem e ação, com a contingência de um desenvolvimento histórico-natural das formas sócio-histó- ricas de vida que constituem um mesmo mundo? Como conciliar a tese da pressuposição irre- cusável de um mundo objetivo independente de nossas descrições e idêntico para todos os observadores, com a tese básica da reviravolta linguística de que não temos acesso diretamen- te, isto é, não linguisticamente mediado, a uma realidade “nua”?

Em Verdade e justificação, Habermas (2004d) apresentará, até então, a última modificação teórica do agir comunicativo, influenciando diretamente as questões de sua filosofia política. Nesta, podemos falar propriamente de justificação e correção normativa

(relacionadas diretamente com o mundo social), e não mais em verdade. Esta, por sua vez, relaciona-se com as questões do mundo objetivo, que Habermas pressupõe sem tematizar, constituindo aquilo que podemos chamar de um déficit ontológico e metafísico na filosofia habermasiana, perpassando todo seu pensamento, como veremos no decorrer do trabalho. Ha- bermas reformulará sua antiga teoria da verdade, separando-a conceitualmente da justificação.

Segundo Puntel (2008), a questão referente ao sentido exato em que o conceito de verdade pode ou deve ser utilizado na ética não é ainda algo esclarecido. A filosofia política deve ser vista e tratada em conexão com a problemática da verdade em Habermas? Sentenças éticas são passíveis de verdade no sentido habermasiano? O que significa dizer que a justifi- cação não é mais um critério de verdade, mas ainda sim um mecanismo de certificação dela? Como pensar as questões da filosofia teórica em analogia com a filosofia política? Como manter o questionamento transcendental compatível com o naturalismo, fortemente assimila- do por Habermas?

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