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Ontologia, semântica e pragmática como dimensões inseparáveis nos discursos

4 RELIGIÃO, SECULARISMO E DEMOCRACIA

4.7 Déficits ontológico e metafísico nos discursos religiosos

4.7.3 Ontologia, semântica e pragmática como dimensões inseparáveis nos discursos

vida religiosa?49”.

Não se trata de negarmos as contribuições de Habermas, à luz da pragmática, na proposta de um diálogo entre secularismo e religião na democracia deliberativa, mas de avan- çarmos para além de uma concepção estritamente pragmática dos discursos religiosos, consi- derando tanto os planos dos entes, com suas interconexões, como o do Ser.

4.7.3 Ontologia, semântica e pragmática como dimensões inseparáveis nos discursos religiosos

Eikrem (2013), apesar de enfatizar que a pragmática tem um lugar determinante nos discursos religiosos, afirma igualmente que ela não pode ser o único lugar onde o signifi- cado do religioso ocorre. Ele critica Habermas, “[...] que restringe os discursos à troca de ar- gumentos racionais50” (EIKREM, 2013, p. 101). Em Habermas, como destaca Eikrem, a reli- gião é pensada somente à luz da pragmática, o que torna a reflexão da religião, na filosofia habermasiana, muito limitada. Para Eikrem, a questão principal que orienta toda sua pesquisa é: como compreender a relação entre a dimensão pragmática, semântica e ontológica da vida religiosa?

Ele reconhece, na obra de Puntel, os recursos conceituais determinantes para a elaboração de sua reflexão. Eikrem (2013) parte da tese de Puntel de que a expressabilidade é uma característica imanente do Ser, uma vez que esta é a condição ontológica de possibili- dade do discurso como tal: a linguagem não pode expressar algo que não é expressável. As estruturas dos discursos (incluindo os religiosos) podem ser entendidas como características

49 How are we to understand the relation between the pragmatic, semantic and ontological dimension of reli- gious living?” (EIKREM, 2013, p. 8).

estruturais do universo ilimitado do discurso, tal qual denomina Puntel, que são constitutivas de qualquer coisa que é expressa pela linguagem humana.

Portanto, os discursos religiosos não tematizam uma dimensão da realidade pecu- liar à estrutura interna da religião, mas exprimem uma dimensão ontológica a que todo discur- so é implicitamente relacionado. O discurso se efetiva tal qual um ato em que se expressa um “ser como”: ele é um ato em que se realiza uma autoexpressão do modo humano de ser.

Se o discurso é entendido como o modo da ação humana que constitui nossa com- preensão de nós mesmos como sujeitos no mundo, então ele é uma práxis que tem a determi- nação semântica como uma de suas condições, o que implica dizer que o discurso religioso se desenvolve como processo de determinação semântica. Em Eikrem (2013), o processo de de- terminação da linguagem se realiza em três níveis: 1) a determinação contextual do mundo vivido; 2) a determinação pragmática que exprime o que fazemos; e 3) a determinação semân- tica em que se coloca a questão da verdade.

Na filosofia da religião, quando se pergunta por uma determinação semântica e pela determinação ontológica do que as pessoas religiosas exprimem quando agem religiosa- mente, são insuficientes considerações apenas pragmáticas, como encontramos no quadro referencial teórico habermasiano. Por isso, para Eikrem, seguindo Puntel, o procedimento passa do explicitar o que se está fazendo (dimensão pragmática) para o tematizar o que é o caso, o que é o verdadeiro (dimensão semântico-ontológica).

Como vimos antes, com Puntel, sentenças com estrutura “sujeito-predicado” não são simplesmente rejeitadas, mas sim transformadas com referência à interpretação semântica. Tais sentenças são reinterpretadas aqui como abreviações de certa quantidade de sentenças primas e, portanto, de sentenças sem a estrutura “sujeito-predicado”, como, por exemplo,

“chove”. Esta é chamada de proposição prima, que expressa uma sentença que não contém

como componente nenhum objeto ou indivíduo pressuposto. Não há um sujeito como fator semanticamente relevante.

Devemos lembrar-nos de que, em Habermas, a intersubjetividade é a categoria central, que condiciona toda sua filosofia, e que a esfera dos entes é apenas pressuposta, mas nunca tematizada. Já a dimensão metafísica do Ser sequer é pressuposta.

As sentenças sem sujeito e predicado, em Puntel, são denominadas de sentenças primas, que se explicitam através do operador teórico “é o caso que assim e assim”, havendo uma despotencialização do sujeito, pois são sentenças que não têm o sujeito ou os sujeitos como referência. As sentenças primas exprimem um fato do mundo, um fato primo, superan- do a categoria de substância como categoria ontológica: “[...] o mundo é a totalidade dos fatos

primos como estruturas primas ontológicas expressáveis (não como coisas)” (PUNTEL, 2008, p. 314). O fato primo não contém nada como sujeito, sendo uma categoria ontológica aceita como essencial.

O mundo é, por isso, a totalidade de fatos primos configurados em extrema varie- dade e complexidade. Há tantos tipos de fatos primos assim como de entes, numa rede de re- lações e funções. A concepção de mundo aqui não se reduz a algo apenas físico, como no caso de muitos filósofos analíticos ou mesmo de Habermas.

As estruturas ontológicas constituem o ponto de chegada, o status definitivo das estruturas semânticas: a estrutura ontológica é uma proposição prima realizada. Quando uma proposição prima possui um status ontológico plenamente determinado, ela se identifica com um fato primo: “[...] as estruturas ontológicas nada mais são que o estatuto definitivo das es- truturas semânticas” (PUNTEL, 2011, p. 162).

Eikrem (2013) cita que, nesse sentido, há uma diferença entre as seguintes senten- ças: “Eu confesso que Deus é bom” e “É verdade que Deus é bom”. A primeira frase possui uma determinação pragmática; já a segunda uma orientação semântica e ontológica. Nesta, há um operador semântico, a saber: é o caso que ou é verdade que. Tal sentença se constitui de um indicativo geral, sem sujeito. A semântica, assim, não possui uma determinação extralin- guística, tal qual a pragmática, mas sim uma determinação interna.

A aplicação do operador “é verdade que” a uma sentença ou proposição tem como “pressuposto” que o argumento do operador ainda está por ser qualificado, ou seja, por ser determinado, e, como “efeito”, tem sua plena determinação em termos semânticos, o que sig- nifica dizer que ele atinge um status ontológico plenamente determinado. Eikrem (2013) ar- gumenta, no entanto, que os discursos religiosos têm tanto uma dimensão pragmática como uma dimensão semântica e ontológica.

Ora, passa-se de uma determinação pragmática para uma semântico-ontológica, que é estritamente interna à linguagem, pois os significados são exclusivamente determina- dos enquanto expressam o que é o caso. Em que sentido, portanto, podemos falar que a pragmática, a semântica e a ontologia devem ser vistas como três componentes de uma es- trutura discursiva?

A dimensão ontológica dos discursos religiosos é pragmaticamente determinada no sentido de que é descoberta na e através da prática religiosa. Por meio da práxis comuni- cativa concreta e histórica, é descoberta a “practicabilidade” do Ser. Na prática religiosa, a dimensão ontológica da religião é mediada por estruturas sintáticas, semânticas e lógicas. As primeiras são os caminhos formais de configuração que se desenvolvem no universo do

discurso; essas práticas religiosas são semanticamente estruturadas, pois são informativas de como as coisas são, e o são porque as coisas são expressáveis; e ontologicamente no sentido de que os seres humanos, quando agem, atuam como se algo fosse, de fato, o caso para mais pessoas do que eles próprios individualmente ou como coletividades religiosas distintas.

Porém, em Habermas, a pragmática é elevada à condição central, a partir da qual as demais dimensões podem ser compreendidas e explicadas. A tese do primado da pragmáti- ca traz consequências consideráveis à análise habermasiana da religião, impedindo a apreen- são abrangente do mundo, do universo da realidade, do Ser e, portanto, dos discursos religio- sos numa dimensão mais profunda, tal qual Puntel nos aponta.

Em Habermas, as condições pragmáticas dos discursos religiosos são insuficien- tes quando temos que decidir o que é real, tal qual analisamos no segundo capítulo, princi- palmente na abordagem teórica de Verdade e justificação, haja vista que a ontologia é sem- pre pressuposta, mas nunca tematizada. Não se trata aqui de uma virada ontológica que pre- tende dispensar a pragmática ou a reviravolta linguística. Estas devem ser pensadas ou rear- ticuladas em conjunto com a ontologia. “Os significados dos discursos religiosos não são exclusivamente determinados por suas funções comunicativas51” (EIKREM, 2013, p. 217, tradução nossa).

Em Eikrem, a noção de experiência religiosa está conectada com a perspectiva de que as práticas religiosas discursivas exprimem algo. Schmidt (2010, p. 69, tradução nossa), nesse sentido, argumenta, contra Habermas, que se os conteúdos das religiões podem ser tra- duzidos para uma linguagem secular, teríamos que admitir a existência de “[...] algo inteligí- vel e universalmente acessível52”.

Habermas sempre fala de potenciais semânticos inspiradores presentes nas religi- ões, sem, como vimos antes, aprofundar isso. Schmidt (2010) nos pergunta que dimensão se- ria essa que poderia ser traduzida para uma linguagem secular, que se manifesta, por exemplo, no conceito de Deus? Essa é uma questão determinante, segundo Schmidt, que Habermas não aprofunda, uma vez que ele se limita apenas a enfatizar que as religiões podem traduzir suas intuições para uma linguagem secular.

A experiência religiosa é uma determinação semântica religiosamente orientada. Os discursos religiosos nos dizem o que é o caso. Por isso, sem a consideração da dimensão onto- lógica (plano dos entes e suas conexões), como falta em Habermas, ou, em última instância, a

51 The meanings of religious discourses are not exclusively determined by their communicative functions” (EIKREM, 2013, p. 217).

metafísica primordial, os discursos religiosos não podem ser adequadamente compreendidos. A inteligibilidade não pode ser determinada unicamente pela pragmática.

Eikrem (2013) ainda afirma que a pragmática pode ser integrada nas estruturas ontológicas, enquanto que o contrário torna-se impossível, como bem percebemos em Haber- mas, em que o mundo nada mais é do que um pressuposto formal. Segundo Eikrem, a religião não se relaciona simplesmente com a dimensão da pragmática e da comunicação, mas com a dimensão que faz do mundo religioso uma esfera verdadeira, caracterizando uma postura pro- priamente teórica. A religião seria a expressão dessa experiência abrangente que se manifesta na vida inteira do ser humano.

Assim, de acordo com Eikrem (2013), as dimensões da ontologia, semântica e pragmática não podem ser pensadas separadamente: enquanto as estruturas ontológicas e se- mânticas são cegas fora da práxis religiosa, as estruturas pragmáticas, quando não estabele- cem relação com a semântica e a ontologia, são vazias. A tese de Eikrem contra a centralidade da pragmática em Habermas, com a qual compartilhamos, é a de que as verdades religiosas são determinadas enquanto são o caso. A estrutura ontológica está sempre implícita no que as pessoas religiosas fazem, não sendo plenamente determinadas quando a explicação se detém em suas regras de uso, algo inexistente na reflexão de Habermas, tornando sua abordagem sobre a religião limitada e insuficiente.

A posição de Habermas é, por assim dizer, unilateral. Primeiramente, porque se trata de uma leitura puramente pragmática da religião, deixando de fora a dimensão semântica e a dimensão ontológica (questões que são tratadas na sistemática estrutural e na sistemática do mundo em Puntel). Em segundo lugar, por não tematizar o plano em que aquilo que é cen- tral na religião pode ser pensado: o plano do Ser (a sistemática abrangente), ou seja, a unida- de originária. Com isso, a proposta filosófica de Habermas é incompleta e insuficiente. Sem a tematização da ontologia e da metafísica, as intuições de Habermas ficam sempre no meio do caminho, tendo consequências em sua leitura limitada do fenômeno religioso.

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