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2 QUADRO REFERENCIAL TEÓRICO DO PENSAMENTO PÓS-META-

2.3 Verdade e justificação

2.3.2 O problema do naturalismo fraco e a distinção entre verdade e justificação:

2.3.2.1 Um caminho entre Quine e Heidegger: a proposta do naturalismo fraco

Em Verdade e justificação, Habermas continua sua reflexão sobre o pensamento pós-metafísico a partir de dois desafios teóricos determinantes para pensarmos sua filosofia: 1) a questão ontológica do naturalismo: trata-se aqui de pensar como é possível compatibilizar a normatividade irrecusável de um mundo da vida linguisticamente estruturado, no qual já sempre nos encontramos como sujeitos de linguagem e ação, com a contingência de um de- senvolvimento histórico-natural das formas sócio-históricas de vida; 2) a questão epistemoló- gica do realismo: como conciliar a tese da pressuposição irrecusável de um mundo objetivo independente de nossas descrições e idêntico para todos os observadores com a tese básica da reviravolta linguística de que não temos acesso diretamente, isto é, não linguisticamente me- diado, a uma realidade “nua”.

O grande desafio, segundo Habermas, é pensar de forma conjunta o primado epis- têmico de um mundo linguístico no mundo da vida com o primado ontológico de uma reali- dade independente da linguagem, que impõe limitações às nossas práticas. Numa confronta- ção com as posturas de Quine e Heidegger, Habermas introduz a alternativa de um naturalis- mo fraco (schwacher Naturalismus), haja vista que, para ele, o realismo cognitivo, após a virada linguística, pode vincular-se ao que o próprio Habermas denomina de naturalismo fra- co, sem renunciar ao questionamento pragmático-transcendental.

Mas quando se vincula o pragmatismo transcendental a um naturalismo fraco, já se torna obrigatória, pelo primado genético da natureza sobre a cultura, uma concepção calcada no realismo cognitivo. Apenas o pressuposto, inerente a tal realismo, de um

mundo objetivo intersubjetivamente acessível pode conciliar o primado epistêmico do horizonte do mundo da vida linguisticamente articulado, que não podemos trans- por, com o primado ontológico de uma realidade independente da linguagem, que impõe limites às nossas práticas. O pressuposto de um mundo ‘independente do es- pírito’, que é ‘mais velho’ do que o homem, permite, contudo, leituras diferentes. (HABERMAS, 2004d, p. 39, grifos do autor).

Para Habermas, por exemplo, o naturalismo estrito de Quine alia-se a uma com- preensão cientificista de nossas possibilidades de conhecer, uma vez que todo conhecimento deveria sempre deixar-se remeter a procedimentos das ciências empíricas. Segundo ele, a con- tinuação naturalista da tradição empirista tem, no entanto, seu preço: uma assimilação objeti- vista de nossas práticas normativas aos eventos observáveis do mundo.

No naturalismo estrito, desaparece a diferença entre, de um lado, as condições da constituição do mundo (ou de abertura ao mundo), que exigem uma análise conceitual, e, de outro, os estados e eventos que se manifestam no mundo e podem ser causalmente explicados. Além disso, desapareceria também a perspectiva de conciliar a “visão interna” das práticas do mundo da vida concebida de modo transcendental com a “visão externa” de sua gênese expli- cada em termos causais.

Há, no naturalismo estrito, uma tradução do saber intuitivo de sujeitos capazes de falar e agir numa linguagem compatível com a das ciências nomológicas. Entretanto, o distan- ciamento cientificista em relação ao saber intuitivo traz questionamentos ao naturalismo estri- to: sujeitos capazes de falar e agir, inseridos em práticas comunicativas, não podem evitar, em seus pensamentos e ações, regular-se por normas e deixar-se afetar por razões.

Já Heidegger, por outro lado, fazendo da diferença ontológica entre Ser e ente o cerne da reflexão filosófica, historificou o próprio a priori do sentido sem com isso incorrer no perigo que se constitui quando a esfera transcendental coincide com o próprio fluxo das contingências intra-históricas. Há, assim, para Habermas, um fatalismo de sentido que nos marca para além de nossa consciência, contrapondo-se à autocompreensão de seres autôno- mos que se movimentam através de razões na direção de tomadas de posição racionalmente motivadas. Contudo, Habermas pressupõe uma concepção objetivante de ser que não corres- ponde ao que Heidegger entende por ser, que não é um objeto, mas sim a metadimensão (sempre pressuposta) que engloba sujeito e objeto, como debateremos no decorrer da tese.

Aqui se mostra, como contextualiza Manfredo Oliveira (2012b, p. 71), um elemen- to decisivo para a compreensão da proposta da filosofia do ser de Heidegger: “[...] sua confron- tação com o pensamento moderno”. Interessante é destacarmos uma carta de Heidegger (1962) a Husserl, em que ele afirma que o constituinte, a subjetividade, não é nada; ela é algo

existente, embora algo distinto do positivo. Por essa razão, o problema do ser se refere univer- salmente ao constituinte e ao constituído.

Heidegger critica o privilégio absoluto atribuído à subjetividade transcendental, portadora exclusiva da função de constituição. Ele fala de ser, mas não no sentido objetivo, ou seja, como polo contraposto à subjetividade, mas como aquela dimensão que abrange a am- bos, o que de nenhuma forma é uma questão posta por Habermas. Em Heidegger, como vere- mos no decorrer do trabalho, é proposta a tematização do ser no sentido dessa dimensão abrangente e originária, algo que será articulado por Puntel, sendo essencial em nossa crítica a Habermas.

Habermas (2004d) pretende considerar a teoria da evolução e o naturalismo sem, entretanto, cair em qualquer tipo de reducionismo, seja na falácia naturalista ou na idealista. O naturalismo estrito, por exemplo, substitui a análise conceitual de práticas do mundo da vida por uma explicação cientificista, neurológica e biogenética das operações do cérebro humano. O naturalismo fraco, por sua vez, satisfaz-se com a hipótese de que o equipamento orgânico e o modo de vida cultural do Homo sapiens têm uma origem “natural”, sendo acessíveis a uma explicação fundamentada na teoria da evolução. É nesse sentido que se pode falar de natura- lismo ontológico em Habermas.

O naturalismo fraco de Habermas evita subordinar ou reduzir a perspectiva interna do mundo da vida ao mundo externo objetivo. Ele reúne as duas perspectivas teóricas sempre mantidas separadas à medida que supõe a continuidade entre natureza e cultura. A suposição ontológica de um primado genético da natureza obriga também a perspectiva, própria do rea- lismo cognitivo, de um mundo objetivo, independente do espírito (primado ontológico).

Habermas tenta escapar tanto da falácia idealista como da naturalista com seu na- turalismo fraco. Este, porém, também é uma tese acerca do todo da realidade, ou seja, do mundo. Nesse sentido, consoante Puntel (2013), apesar de não ser reducionista, o naturalismo fraco de Habermas seria mais próximo de Quine do que de Heidegger, visto que Habermas pretende considerar, em suas análises, as teorias científicas, como a da evolução.

Habermas enfatiza que nossos processos de aprendizagem, que são possíveis no interior da estrutura das formas socioculturais de vida (primado epistêmico), são a continua- ção de processos de aprendizagem evolutivos anteriores que deram origem a nossas formas de vida. O naturalismo forte de Quine reduz o mundo da vida ao natural, algo que o naturalismo fraco de Habermas não faz. Mas é central para o naturalismo fraco a tese segundo a qual o mundo da vida é um resultado da evolução do mundo natural. Essa perspectiva está enraizada na analogia entre a evolução natural das espécies, concebida como resultado da “solução de

problemas”, e nosso próprio processo de aprendizagem, que é possível no âmbito do desen- volvimento sociocultural. Habermas (2004, p. 37, grifo do autor), nesse contexto, utiliza-se da metáfora do aprendizado evolucionário:

O vocabulário do aprendizado, que ganha inicialmente um sentido preciso graças à nossa perspectiva de participante (e está, por exemplo, na base das concepções de aprendizado da psicologia do desenvolvimento), não pode, por sua vez, ser sim- plesmente reinterpretado na conceitualidade neodarwinista. Do contrário, o natura- lismo fraco perde sua essência. [...] a concepção da evolução natural como um pro- cesso análogo ao aprendizado assegura um conteúdo cognitivo às próprias estrutu- ras que têm uma gênese natural e possibilitam nossos processos de aprendizado.

Do ponto de vista pragmático, o processo de conhecimento é representado como um comportamento inteligente que resolve problemas e possibilita processos de aprendiza- gem, corrigindo erros e invalidando objeções. Há, por assim dizer, uma dinâmica do cresci- mento do saber pela solução de problemas. Na dimensão espacial, os conhecimentos resultam das decepções que sofremos com um mundo circundante pleno de riscos; na dimensão social, o destaque é dado pelas objeções que os participantes fazem nas deliberações; na dimensão temporal, o conhecimento tem a ver com os processos de aprendizagem a partir da revisão dos próprios erros.

Os juízos empíricos formam-se nos processos de aprendizagem e provêm de solu- ções de problemas. Por isso não faz sentido orientar a validade de juízos pela dife- rença entre ser e parecer, entre o dado ‘em si’ e o dado ‘para nós’ – como se o co- nhecimento do pretensamente imediato devesse ser purificado de ingredientes subje- tivos e mediações intersubjetivas. (HABERMAS, 2004d, p. 35, grifos do autor).

Vale lembrar que, no sentido pragmático, a realidade não é algo a ser retratado; ela não se faz notar senão performativamente pelas limitações a que estão submetidas nossas so- luções de problemas. O modelo representacional de conhecimento “[...] passa ao largo do sen- tido cognitivo-operativo da ‘superação’ de problemas e do ‘sucesso’ de processos de aprendi- zagem” (HABERMAS, 2004d, p. 35).

Quando partimos de um conceito pragmático de conhecimento, surge um natura- lismo que deixa intacta a diferença entre mundo e intramundo. Como vimos antes, o natura- lismo fraco evita subordinar ou reduzir a perspectiva interna do mundo da vida ao mundo ex- terno objetivo. Ele reúne as duas perspectivas teóricas sempre mantidas separadas à medida que supõe a continuidade entre natureza e cultura.

Essa concepção, segundo Habermas, apoia-se numa única suposição metateórica: a de que nossos processos de conhecimento no quadro das formas de vida sócio-históricas de alguma forma dão continuidade a processos de aprendizagem evolucionários prévios que

produziram as estruturas de nossas formas de vida. Portanto, as estruturas transcendentais que possibilitam nossos processos de conhecimento se revelam como resultado de processos de aprendizagem menos complexos de natureza histórico-natural e, através disso, adquirem seu conteúdo cognitivo.

A continuação dos processos de aprendizagem num nível superior pode ser enten- dida apenas no sentido de um naturalismo fraco, sem nenhuma pretensão reducionista. Se quisermos manter o questionamento transcendental, mesmo aceitando o naturalismo, precisa- mos separar a reconstrução racional de estruturas do mundo da vida – reconstrução hermenêu- tica que fazemos da perspectiva de participante – da análise causal da gênese histórico-natural dessas estruturas.

Em suma, a chave de entendimento do naturalismo fraco é a analogia, proposta por Habermas, entre a evolução natural das espécies, concebida como resultado da “solução de problemas”, com nosso próprio processo de aprendizagem, que é possível no âmbito do desenvolvimento sociocultural. Os processos de aprendizagem que ocorrem no interior de formas de vida socioculturais dariam continuidade a processos de aprendizagem naturais im- postos à espécie pelos constrangimentos da sobrevivência. Habermas conclui que o próprio aparato do espírito humano pode ser entendido como uma “solução inteligente de problemas” à medida que ele é o produto mais refinado do confronto inteligente da espécie com seu meio. Contudo, o que Habermas chama de naturalismo fraco não é facilmente determi- nável. Como é possível defender um tipo de naturalismo, mas que seja fraco? Em outras pa- lavras, naturalismo fraco é um conceito que pouco nos diz, sendo algo essencialmente impre- ciso e não aprofundado em Verdade e justificação. Em realidade, o naturalismo fraco de Ha- bermas é tão naturalismo como o de Quine, uma vez que ambos pressupõem o mundo natural como início, embora Habermas nunca aprofunde as consequências de tal perspectiva no inte- rior da sistemática da teoria do agir comunicativo.

Além disso, Habermas fala de mundo não na perspectiva de totalidade dos obje- tos, mas, de forma restritiva, na perspectiva do mundo natural, no âmbito físico-biológico. Mas um problema permanece: há uma distinção não esclarecida entre mundo vivido e mundo natural. Segundo Puntel (2013), falta em Habermas um conceito de Mundo10, tal qual veremos

no quarto capítulo, como a dimensão que abrange o mundo natural e o mundo da vida, apesar

de ele criticar a falácia idealista e naturalista. “Ele deveria designar toda a realidade e assim

10 Neste caso, Puntel escreve Mundo, e não mundo, porque Mundo é outra denominação do Ser primordial que justamente abrange mundo natural e mundo da vida. Isso será aprofundado no quarto capítulo.

incluir tanto o mundo natural, como cosmo ou processo evolutivo físico-biológico, quanto o mundo da vida, a dimensão da comunicação e ação” (PUNTEL, 2013, p. 214).

Habermas não oferece uma explicação sobre a relação entre os dois polos distintos ou de sua unidade. Ele não tematiza a problemática levantada por Heidegger. Além disso, a ideia defendida por Habermas de que o mundo da vida é resultado da evolução do mundo natural é muito significativa para não ser suficientemente discutida por ele.

O que podemos concluir, apesar das imprecisões de Habermas sobre o natura- lismo fraco, é a ênfase da suposição ontológica de um primado genético da natureza, que obriga a perspectiva, própria do realismo cognitivo, de um mundo independente do espírito. É certo que Habermas rejeita um naturalismo epistemológico, que reduz as ciências herme- nêuticas aos procedimentos das ciências naturais. Entrementes, ele defende um naturalismo ontológico. É preciso, então, entendermos o lugar que o mundo objetivo passa a ter no pen- samento habermasiano, sobretudo a partir da diferença entre verdade e justificação, algo antes inexistente.

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