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4 RELIGIÃO, SECULARISMO E DEMOCRACIA

4.1 Autocompreensão secular do Estado democrático de direito

Como contextualiza Armstrong (2009, p. 8-9), em meados do século XX, “[...] acreditava-se que o secularismo era uma tendência irreversível e que nunca mais a fé desem- penharia um papel importante nos acontecimentos mundiais”. Nesse contexto, Habermas con- siderava a religião ainda como questão privada, reduzida à esfera dos indivíduos, sem espaço nas sociedades racionalizadas, com pouca ou nenhuma capacidade de orientar a conduta dos indivíduos. Como crença privada, a religião não poderia desempenhar qualquer papel na esfe- ra pública secularizada, pois, “[...] no ateísmo das massas, os conteúdos utópicos da tradição encontram-se ameaçados” (HABERMAS, 1980, p. 105).

Habermas não reconhecia que formas de pensamento míticas e religiosas possui- riam ainda influência numa modernidade secularizada. Dizia ele: “[...] não se pode negar – do ponto de vista empírico – a presença de um desenvolvimento no sentido de um ateísmo de massa” (HABERMAS, 1983c, p. 90).

Nos textos mais atuais35, Habermas defende que as religiões possuem intuições morais que podem colaborar no debate público acerca das mais diversas questões, havendo, inclusive, uma virada pós-secular em sua filosofia, que veremos neste capítulo, numa tentati- va de propor um diálogo entre religião e secularismo na democracia deliberativa.

Ora, Habermas parece assim retirar ‘oficialmente’ o diagnóstico do colapso da reli- gião na sociedade contemporânea ou pelo menos não só admitir a sua sobrevivência factual, como também o seu direito a existir ao lado da filosofia e de outras formas do pensamento e da prática racional, bem como (implicitamente) até a desejabilida- de dessa sobrevivência para suprir a lacunas e incapacidades (pelo menos temporá- rias) das linguagens e das práticas puramente racionais. (CUNICO, 2002, p. 514).

Habermas (2007) argumenta que, numa teoria política que trabalha com funda- mentos normativos e com as condições de funcionamento de Estados de direito democrático, a oposição unilateral entre secularismo e religião coloca em risco a coesão de uma sociedade multicultural e pluralista. O Estado democrático alimenta-se de uma solidariedade de cidadãos que se respeitam reciprocamente como membros livres e iguais de uma comunidade política.

35 Seguem aqui algumas das obras mais recentes de Habermas que refletem seu posicionamento atual em relação à religião: Entre naturalismo e religião (2007), Era das transições (2003), Fragmentos filosóficos-teológicos (1999a), Israel o Atenas (2001a), O futuro da natureza humana (2004c), Pensamento pós-metafísico (1990), Textos e contextos (2001c)e Transcendence from within, transcendence in this world (1992c), bem como re- lacionadas especificamente ao debate com Joseph Ratzinger, como: An awareness of what is missing (2010), Dialética da secularização (2007) e Nachmetaphysisches denken II (2012a).

Habermas destaca que é preciso encontrar uma forma de colocar o privilégio cog- nitivo das ciências institucionalizadas socialmente, bem como a precedência do Estado secu- lar e da moral social universalista, em consonância com os religiosos, numa sociedade plura- lista que se autodetermina. Ele diz que não pretende apenas colocar em pauta o fenômeno da persistência da religião nas sociedades contemporâneas, como se fosse um mero fato social. A filosofia, diz ele, tem de levar a sério tal fenômeno a partir de dentro, isto é, como um desafio cognitivo.

Numa sociedade pluralista, a oposição entre naturalismo cientificista e religião deixa transparecer uma cumplicidade secreta: quando nenhuma das duas tendências está dis- posta à autorreflexão, suas respectivas polarizações das imagens de mundo colocam em risco a coesão da comunidade política. O ethos do cidadão exige de ambos os lados um reconheci- mento atinente a limites tanto para a fé como para o saber.

Habermas (2007) enfatiza, seguindo o conceito de democracia deliberativa, que a constituição do Estado liberal obtém sua legitimação de modo autossuficiente, através de ar- gumentos não dependentes das tradições religiosas nem metafísicas. O direito não mais se subordinará à moral, como nas sociedades tradicionais, a fim de que as matérias passíveis de julgamento objetivo sejam dadas pelo direito secularizado, e não pela moral. Isso não signifi- ca, porém, que as religiões sejam deixadas de lado nos debates públicos. Habermas propõe o conceito de pós-secularismo à medida que a religião e o secularismo devem participar de um processo de aprendizagem complementar nos debates públicos.

Como vimos no capítulo anterior, o direito não poderá mais procurar um funda- mento na tradição, na religião e na moral. Habermas defende uma fundamentação discursiva do direito. Este, numa sociedade secularizada e pluralista, preencherá as deficiências da mo- ral, assumindo a função da integração social, outrora exercida pela moral. O direito, na pers- pectiva habermasiana, não representa apenas uma forma do saber cultural, como a moral, pois forma, simultaneamente, um componente importante do sistema, em termos de ação e de efi- cácia nas soluções dos problemas, interligando-se com a comunicação dos sujeitos.

O direito moderno não pode mais procurar um fundamento na tradição, na religião e na moral. Esse aspecto é determinante para o debate sobre o diálogo entre religião e secula- rismo na democracia, quando as intuições religiosas da esfera pública e da sociedade civil devem ser traduzidas para um idioma secular no parlamento. Habermas rompe com a ideia de que o direito se subordina à moral. Segundo ele, as normas jurídicas e morais se complemen- tam entre si, mas não podem ser vistas como subordinadas umas à outras.

O liberalismo político, na forma de um republicanismo kantiano, o qual Habermas (2007) defende, autointerpreta-se como uma justificação pós-metafísica e não religiosa dos fundamentos normativos do Estado de direito democrático. Tal teoria pertence à tradição de um direito da razão que renuncia às assunções cosmológicas e salvíficas, fortes, dos jusnatura- listas clássicos ou religiosos.

É certo, pondera Habermas (2007), que o direito racional possui raízes religiosas. Porém, a legitimação do direito alimenta-se de fontes que há muito tempo se tornaram profa- nas. Ele explica que, diante da religião, o senso comum insiste em fundamentos que são acei- táveis não apenas para os membros de uma comunidade religiosa. Não é à toa que o Estado liberal ainda “[...] desperta nos fiéis a suspeita de que a secularização ocidental poderia ser uma via de mão única, que deixaria a religião à margem” (HABERMAS, 2004c, p. 145).

Habermas (2007) argumenta que os fundamentos da legitimação do poder do Es- tado, neutros em termos de visões de mundo, nasceram de fontes profanas da filosofia nos séculos XVII e XVIII. Contudo, mesmo sob tal premissa, persiste uma dúvida, diz ele, a nível motivacional. A partir do papel de cidadãos do Estado que se autoentendem como autores do direito, e não apenas como destinatários, as pressuposições normativas de integridade do Es- tado constitucional são mais pretensiosas.

De cidadãos do Estado que se autoentendem como colegisladores, e não apenas destinatários do direito, as motivações que se esperam não podem ser tratadas da mesma ma- neira que a obediência a leis coativas: os colegisladores devem assumir seus direitos de co- municação e de participação de modo ativo, não somente no sentido dos interesses próprios, mas também orientados pelo interesse comum. Isso exige uma taxa elevada de motivação que não pode ser imposta apenas legalmente, havendo fatores motivacionais importantes para a democracia que estão para além da instrumentalidade política e da obrigação institucional do voto. Isto é, a ordem liberal depende da solidariedade de seus cidadãos. Seria a religião, nesse sentido, uma esfera de valores indispensáveis, mesmo para uma modernidade secularizada?

Em comunidades liberais, a disposição de ajudar concidadãos estranhos e anôni- mos, bem como de se sacrificar pelos interesses comuns, pode apenas ser recomendada. Por isso, as virtudes políticas são tão importantes para a sobrevivência de uma democracia, como as motivações dos sujeitos. Para Habermas (2007), isso não quer dizer, no entanto, que o Es- tado liberal seja incapaz de reproduzir seus pressupostos motivacionais a partir de recursos seculares.

A autocompreensão do Estado de direito democrático formou-se numa tradição filosófica que apela para argumentos públicos e acessíveis a todos. “Ora, a assunção de uma

razão humana comum constitui a base epistêmica para a justificação de um poder do Estado secular que independe de legitimações religiosas” (HABERMAS, 2007, p. 135). Dessa for- ma, o Estado constitucional democrático não apresenta, na perspectiva habermasiana, qual- quer fraqueza interna que possa constituir uma ameaça à autoestabilização motivacional democrática.

Gauchet (1998), por exemplo, argumenta que a emergência da democracia no Ocidente só pode ser compreendida no quadro de um processo de saída da religião. Isso seria algo irreversível, uma vez que não há como voltar aos fundamentos incondicionais das religi- ões em sociedades democráticas e pluralistas: “Deus está separado. Ele não intervém nos as- suntos políticos dos homens36” (GAUCHET, 1998, p. 61, tradução nossa). Não podemos falar,

porém, no desaparecimento das religiões nas sociedades modernas. “Isso não significa que o religioso deva parar de falar aos indivíduos37” (GAUCHET, 1985, p. 292, tradução nossa). A

religião não perdeu, apesar da secularização, sua condição de reserva de sentido para vários sujeitos.

Nesse contexto, Habermas defende um diálogo entre tradições religiosas e secula- res, naquilo que denomina de processo de aprendizagem complementar entre secularismo e religião. Ele explica que não devemos colocar de lado as religiões, menosprezando-as nos debates públicos, mesmo tendo como referência uma fundamentação pós-metafísica, além de uma prioridade do justo em relação ao bem. Habermas afirma que a genealogia do pensamen- to pós-metafísico engloba, ao mesmo tempo, as tradições religiosas, como veremos a seguir.

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