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4 RELIGIÃO, SECULARISMO E DEMOCRACIA

4.5 A reviravolta pós-secular: uma dialética da secularização?

4.5.1 O conceito de pós-secularismo

Primeiramente, Habermas (2015, p. 1) ressalta que, para definir-se como pós-se- cular, “[...] uma sociedade deve primeiro ter sido secular”. Para ele, começa a prevalecer na sociedade pós-secular, e não mais apenas secular, a ideia de que tanto as mentalidades religi- osas quanto as seculares precisam modificar-se de forma reflexiva, aprendendo as contribui- ções de uma e de outra para os diversos temas. Nesse sentido, Habermas (2007, p. 126) expli- ca o porquê do termo pós-secular:

A expressão ‘pós-secular’ foi cunhada com o intuito de prestar às comunidades reli- giosas reconhecimento público pela contribuição funcional relevante prestada no contexto da reprodução de enfoques e motivos desejados. Mas não é somente isso. Porque na consciência pública de uma sociedade pós-secular reflete-se, acima de tu- do, uma compreensão normativa perspicaz que gera conseqüências [sic] no trato po- lítico entre cidadãos crentes e não crentes42.

42 Der Ausdruck > > postsäkular< < zollt den Religionsgemeinschaften auch nicht nur öffentliche Anerkennung für den funktionalen Beitrag, den sie für die Reproduktion erwünschter Motive und Einstellungen leisten.

No pós-secularismo, impõe-se a ideia de que a modernização da consciência pú- blica abrange, em diferentes fases, tanto mentalidades religiosas como profanas, transforman- do-as reflexivamente. Habermas (2004c) argumenta que a secularização cultural e social deve ser entendida como um processo de aprendizagem complementar, que obriga tanto as tradi- ções do Iluminismo quanto as doutrinas religiosas a refletirem sobre seus respectivos limites. A consciência religiosa, por sua vez, precisa assimilar cognitivamente o contato com outras visões de vida: ela deve abrir-se às premissas do Estado constitucional, que se fundamenta numa moral profana.

A compreensão pluralista da tolerância em sociedades pós-seculares exige dos crentes e não crentes a compreensão razoável de que eles têm de contar com a permanência de um dissenso. A neutralidade, em termos de visões de mundo do Estado secular, garantidora de iguais liberdades éticas para cada cidadão, não diz respeito, contudo, à generalização política de uma visão de mundo secularista. Esse é um aspecto novo no pensamento de Habermas. Ele defende que, embora o caráter secular do Estado seja uma condição necessária, ainda não é algo suficiente.

A expressão pós-secular, tal qual explica Araújo (2013), não é uma alternativa ao horizonte pós-metafísico da modernidade. O pós-secularismo permanece secular a despeito do prefixo pós, correspondendo a uma mudança de mentalidade ou a uma alteração crítica do autoentendimento secularista de sociedades que se tornaram conscientes da persistência da religião, de sua relevante contribuição para a vida política.

A tradução cooperativa de conteúdos religiosos remete a uma ética da cidadania cuja realização depende de enfoques epistêmicos mediante os quais as dissonâncias cognitivas sejam tratadas como desacordos razoáveis entre todas as partes engajadas em processos de aprendizagem complementares. Segundo Habermas, o pensamento pós-metafísico deve adotar uma atitude simultaneamente agnóstica e receptiva diante da religião, que se oponha a uma determinação estritamente secularista das razões publicamente aceitáveis, sem comprometer, entretanto, sua autocompreensão secular.

Habermas (2007) não abdica, como mostramos antes, da autocompreensão secular da modernidade, a qual é derivada da reconstrução racional de uma lógica do desenvolvimen- to, na qual a racionalização das imagens religiosas de mundo, como processo de aprendiza- gem, desempenha um papel de considerável relevância. Ele, por outro lado, questiona, sem

Im öffentlichen Bewusstsein einer postsäkularen Gesellschaft spiegelt sich vielmehr eine normative Einsicht, die für den politischen Umgang von ungläubigen mit gläubigen Bürgern Konsequenzen hat” (HABERMAS, 2005, p. 116).

deixar de estar em consonância com seu projeto teórico, a leitura secularista do processo de modernização. Isso lhe permite salvaguardar a acentuação crítica da posição universalista da razão comunicativa.

O pensamento pós-secular reconhece a importância das tradições religiosas no tra- to de intuições morais profundas e na articulação daquilo que falta ou que se perdeu, não pre- tendendo despi-las de possíveis conteúdos racionais nem desvalorizá-las como resíduos arcai- cos de uma figura do espírito superada pelas ciências. Cabe indagar a Habermas: o que ele quer dizer com aquilo que falta ou que se perdeu? Que dimensão é essa a que os discursos religiosos se relacionam? Como veremos na última seção desta tese, nossa hipótese é a de que há, em Habermas, um déficit ontológico e metafísico, que o impede de uma análise mais abrangente dos discursos religiosos.

Habermas propõe uma reavaliação da tese tradicional da secularização a partir do questionamento do secularismo ou laicismo como visão de mundo. Habermas (2015, p. 2-3), assim, diferencia o conceito de secular/laico de secularista/laicista, em recente artigo publi- cado no jornal La Repubblica:

Aqui eu gostaria de fazer uma distinção entre laico e laicista, entre secular e secula- rista. A pessoa laica, ou não crente, se [sic] comporta com agnóstica indiferença em relação às pretensões religiosas de validade. Os laicistas, ao contrário, assumem uma atitude polêmica em relação àquelas doutrinas religiosas que (embora cientificamen- te infundadas) têm grande relevância na opinião pública. Hoje, o secularismo se apoia frequentemente em um naturalismo hard, justificado em termos cientificistas. Pergunto-me se – para os fins da autocompreensão normativa de uma sociedade pós- -secular – uma mentalidade laicista hipoteticamente generalizada não acabaria sendo igualmente pouco desejável em comparação com um desvio fundamentalista dos crentes. Na realidade, o processo de aprendizagem deveria ser prescrito não só para o tradicionalismo religioso, mas também para a sua contrapartida secularizada. [...] é preciso que o Estado não reduza preventivamente a complexidade polifônica das di- versas vozes públicas. Se, em relação aos seus concidadãos religiosos, as pessoas laicas tivessem que pensar que não podem levá-los a sério como autênticos contem- porâneos da modernidade – por causa da sua atitude religiosa, então se deslizaria de volta para o plano do mero modus vivendi e se perderia aquela ‘base do reconheci- mento’ que é constitutiva da cidadania.

Habermas (2015), porém, preserva o ganho histórico da secularização das institui- ções e da separação entre Igreja e Estado, sendo algo, para ele, inegociável e de absoluta im- portância. No pós-secularismo, o Estado continua sendo neutro em termos de concepção de mundo, mas não seria secularista ou laicista, no sentido de defender uma ideologia que exclu- ísse a religião (ROUANET, 2010). Habermas (2012a, p. 324) critica o que denomina de “Aufklärungsfundamentalismus”. Ou seja, um tipo de visão secularista ou laicista de mundo que coloca as religiões em segundo plano ou as trata como algo puramente irracional e sem valor.

A palavra secularização teve, a princípio, explica Habermas (2013), o significado jurídico de uma transferência dos bens da Igreja para o poder público secular. Esse significado foi transmutado para o surgimento da modernidade cultural e social como um todo. Desde então, diz ele, apreciações opostas têm sido associadas à secularização, a saber: uma de cará- ter plenamente otimista, com o modelo progressista de uma modernidade desencantada; e outra pessimista, vinda de religiões fundamentalistas, que consideram a modernidade como uma época desamparada.

Para Habermas, as duas explicações cometem o mesmo erro. Elas consideram um jogo de soma zero entre, de um lado, as forças produtivistas da ciência e da técnica, liberadas pelo capitalismo, e, de outro, os poderes conservadores da religião. Essa imagem não é ade- quada para uma sociedade pós-secular e pluralista que se ajusta à sobrevivência de comunida- des religiosas em um ambiente cada vez mais secularizante.

Habermas (2002a, p. 324) fala que, para proteger o princípio da tolerância contra a suspeita de uma determinação repressiva e para definir aquilo que ainda pode ser tolerado ou não, é preciso que todas as partes participem das deliberações:

Por isso, a exigência de tolerância carece de justificação normativa – e isso em pro- porção crescente. Essa justificação, por sua vez, precisa atender à reivindicação de que a coexistência das formas de vida protegidas em sua integridade sejam também regulamentadas de maneira justa e honesta, ou seja, de acordo com regras que pos- sam ser aceitas por todas as partes, de maneira racional.

Mas o que, de fato, para Habermas (2002a), significa tolerância, à medida que es- ta possui diversos significados e interpretações, podendo ser, inclusive, sinônimo de algo ne- gativo, no sentido de uma aceitação sem inclusão ou de uma permissão do poder sem a parti- cipação das partes envolvidas, como questiona Derrida (2004)? Este enfatiza a matriz marca- damente cristã da noção de tolerância, o que a tornaria um conceito político e ético menos neutro do que pretende ser.

Dessa forma, estaria relacionado à tolerância um significado paternalista, em que o outro não é aceito como um parceiro igual, sendo, na verdade, um subordinado. “A tolerân- cia está sempre do lado da ‘razão dos mais fortes’, onde o ‘poder está certo’; [...] estou dei- xando que você exista, você não é inaceitável, estou lhe deixando um lugar em meu lar, mas não se esqueça de que este é o meu lar” (DERRIDA, 2004, p. 137). Na tolerância, afirma Der- rida (2004), nós aceitamos o estrangeiro, o outro, o corpo estranho até um certo ponto, mas sempre com restrições. A tolerância seria, então, algo condicional, circunspecto, cauteloso e vigilante.

A tolerância seria, por exemplo, o oposto da hospitalidade, termo que Derrida (2004) sugere como alternativa à ideia de tolerância. Vale destacar que Derrida (2004) busca o conceito de hospitalidade em Kant (2009)43. Para este, hospitalidade significa o direito de um estrangeiro de não ser tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território de outro. Segundo ele, a distinção entre tais termos não é apenas uma distinção semântica, mas aponta para a obrigação única que cada um de nós tem com o outro.

Em Derrida (2004), a hospitalidade não consiste em algo sob a condição de que você se adapte às leis e normas do meu território, de acordo com minha linguagem, tradição, memória etc. A hospitalidade abre-se para alguém que não é esperado nem convidado, para quem quer que chegue como um visitante absolutamente estranho, como um recém-chegado, não identificável, um totalmente outro, como destaca Derrida (2004).

Se, de um lado, a concepção tradicional de tolerância é inviável para sociedades pluralistas, de outro, a desconstrução de seu conceito, idealizada por Derrida (2004), não con- segue solucionar as demandas normativas carentes sempre de justificação. Que sentido espe- cífico a tolerância possui no pós-secularismo de Habermas nas deliberações entre crentes e não crentes? Como a tolerância deve ser constituída numa democracia deliberativa e pluralista no âmbito de uma era pós-secular? Em Habermas, não há o abandono do conceito de tolerân- cia, mas sim sua reconstrução, como veremos a seguir.

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