• Nenhum resultado encontrado

3.2 O processo de ensino-aprendizagem de LE: foco no aprendiz criança

3.2.3.2 A competência intercultural no ensino de LEC

Esta seção revela sua importância neste trabalho, na medida em que explicita a visão de cultura aqui defendida e as maneiras de abordar esse conceito dentro do ensino-

aprendizagem de línguas na infância. Reiteramos, nesta pesquisa, a visão de cultura como base para o processo educativo, o que permite que o mesmo possa vir a cumprir seu papel formador, possibilitando que a criança amplie sua visão de mundo através da LE, mostrando-se capaz de fazer comparações, argumentações e expressar opiniões frente às diferenças, respeitando-as.

Neste estudo, entendemos que a definição de cultura deve transcender a visão restrita de que a mesma deva ser abordada unicamente com base nas características típicas de um país ou nação. Alinhando-nos ao pensamento de Cook (2003), entendemos que, para lidarmos apropriadamente com a cultura no ensino de línguas, devemos considerar as variações culturais em termos de classe, etnia, idade, educação, preferências individuais, dentre outros. Desta forma, aproximamos o ensino- aprendizagem de LE ao caráter formador do processo educativo (Freire, 2004).

Seguindo estas premissas, refutamos a visão de cultura como algo estático, que pode ser precisamente descrito, delimitado. Ao invés disso, concebemos a mesma como algo dependente do contexto sócio-histórico em que os indivíduos encontram-se inseridos. Cientes de que há variações referentes à definição do referido conceito, embasamo-nos na concepção de Goodenough (1971), a qual, de forma sucinta, entende cultura como padrões partilhados de crenças e conhecimento teórico, pelos quais as pessoas organizam suas percepções e experiências e a partir dos quais elas agem em seu meio social.

No que diz respeito ao ensino-aprendizagem de LE, segundo McKay (2002), a definição do inglês como língua franca, envolve certos pressupostos sobre a relação entre língua e cultura. Ancorando-se em Smith (1976), a autora aborda o ensino de inglês como uma língua internacional, defendendo a idéia de que os aprendizes não necessitam internalizar as normas culturais dos falantes nativos da mesma. Para os referidos autores, está clara a concepção de que a posse dessa língua torna-se desnacionalizada, ou seja, ela pertence a todos, e que o principal objetivo do ensino de inglês nesse contexto é o de capacitar os aprendizes a comunicar suas idéias e cultura para outros e vice-versa.

Ganhar competência cultural, segundo Kramsch (1993), não quer dizer viver de acordo com as convenções culturais da língua-alvo, pensamento esse corroborado por Mckay (2002: 84), ao enfatizar que “aprender sobre uma outra cultura não significa,

necessariamente, aceitar essa cultura”. Kramsch (1993: 295-296) prossegue asseverando que o ensino da cultura no ensino da LE, mais precisamente do inglês como língua internacional, é importante, pois possibilita encontros interculturais, os quais permitem que os aprendizes reflitam sobre diferenças entre culturas, estabelecendo uma “esfera de interculturalidade” no processo.

A autora argumenta, também, que a cultura deve ser ensinada como um processo interpessoal, em que os significados emergem da interação social. Partilhando desse princípio, Tseng (2002) assevera que a aprendizagem da LE, em termos culturais, deve ocorrer através da interação entre os indivíduos em um processo de transação entre a concepção individual de mundo do aprendiz e a concepção de mundo externa ao mesmo.

Desta forma, entendemos que a dimensão cultural no ensino-aprendizagem de LEC deve propiciar a formação de indivíduos com uma visão de mundo ampliada, tornando-os mais capazes de integrarem-se em uma sociedade globalizada, de forma mais consciente e crítica. O desenvolvimento da criticidade (Freire, 2004) através do ensino-aprendizagem de LE, numa perspectiva intercultural, ocorre na medida em que esse ensino promove, acima de tudo, “um diálogo entre culturas” (Oliveira Santos, 2004: 113) locais e globais. Assim sendo, torna-se possível, dentre outros aspectos, o contínuo desenvolvimento da reflexão “sobre o impacto e a hegemonia da cultura de língua inglesa no mundo” (Oliveira Santos, 2004: 98), o que alinha o ensino de línguas (para crianças) à educação como prática libertadora (Freire, 1988, 1996, 2004).

Vale salientar que as concepções de cultura até então apresentadas, estão intimamente relacionadas à natureza social da linguagem e da aprendizagem, postulada na Teoria Sócio-cultural de Vygotsky (1998, 2001), sendo, por esta razão, privilegiadas nesta pesquisa. Neste sentido, enfatizamos ser a linguagem a expressão máxima da cultura de um povo, não sendo possível, nesta perspectiva, língua e cultura serem desvinculadas.

Ao abordar a interculturalidade no ensino de LEC, Ellis (2004: 15) enfatiza a importância da aprendizagem de uma língua estrangeira não ser vista como:

“...um mero sistema codificado unicamente sob o ponto de vista da língua materna, mas como uma língua que tem vida própria e é formada por suas diferentes crenças culturais, comportamentos e sentidos”.

A autora pontua, ainda, que a expectativa apresentada pela maioria das crianças frente à aprendizagem de línguas é ambiciosa, uma vez que revela, na maioria das vezes, a vontade de “aprender para conversar com as pessoas de outros países” (Ellis, 2004: 14). Tal concepção reitera os já discutidos conceitos de orientação e motivação integrativas, convergindo, também, com o pensamento de Gill & Canková (2003), no que diz respeito ao ensino da cultura no ensino-aprendizagem de LEC.

Segundo os mencionados autores, é parte natural do processo de comunicação que os aprendizes desenvolvam a curiosidade sobre a cultura das pessoas que usam a língua que eles estão aprendendo e que, concomitantemente, sintam o desejo de comunicar, falar a respeito de sua própria. A este respeito, Ellis (2004) acrescenta que a dimensão cultural no ensino de LEC pode colaborar muito para, além de despertar o interesse, aumentar a motivação do aprendiz frente à aprendizagem de uma nova língua.

Desta forma, entendemos que a abordagem intercultural defendida pela referida autora, corrobora a concepção de aprendizagem significativa proposta por Williams & Burden (1997). Isto ocorre por ser a dimensão cultural vinculada ao ensino de LE devido, entre outros fatores, à necessidade de adequá-lo às características da criança e aos seus anseios. Dentro deste contexto, podemos asseverar que, de acordo com Ellis (2004), as crianças são geralmente descritas como genuinamente curiosas, interessadas e desinibidas. Assim sendo, a inclusão da perspectiva cultural no ensino de línguas pode fazer crescer a motivação da criança em relação à nova língua, na medida em que converge com as suas expectativas frente ao novo e ao diferente.

Adicionando-se as características citadas ao fato de que as crianças são, também, peculiarmente observadoras e não preconceituosas (Ellis, 2004), entendemos que o ensino de LE orientado por uma abordagem intercultural, pode criar condições para que, através de comparações entre a cultura de origem e a de terceiros, atitudes positivas em relação às diferenças se desenvolvam e horizontes sejam ampliados. Dentro da perspectiva apresentada, ao experienciar “maneiras diferentes de pensar e sentir”, a criança estará “realizando-se como ser humano” e, portanto, desenvolvendo-se integralmente através do ensino de uma nova língua (Costa, 1987: 72).

Ao abordar a formação integral da criança e o desenvolvimento da competência intercultural no ensino de LEC, Ellis (2004: 15) ancora-se na definição de Byram & Doyé (1999:142) para o termo, que é descrito como:

“um conjunto de habilidades, conhecimentos e atitudes, o

qual envolve o desenvolvimento de atitudes positivas em relação às diferenças culturais, o conhecimento a respeito das pluralidades culturais, visando à ampliação do conhecimento de mundo da criança, bem como ao trabalho com as habilidades de interpretação, descoberta, interação e comparação.”

É interessante salientar que o conceito de competência intercultural apresentado, encontra eco na definição do termo competência plurilíngüe e pluricultural explicitada no Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (p. 39)16. O documento, elaborado pelo Conselho Britânico, enfatiza a importância da construção da citada competência no ensino de línguas, apresentando a seguinte definição:

“Designar-se-á por competência plurilíngüe e pluricultural a competência para comunicar pela linguagem e para interagir culturalmente de um ator social que possui, em graus diversos, o domínio de várias línguas e a experiência de várias culturas. A opção essencial é considerar que não se trata de sobreposição ou justaposição de competências distintas, mas antes, da existência de uma competência complexa, isto é, compósita, mas una enquanto repertório disponível”.

Na acepção de Byram & Doyé (1999), a competência intercultural deve constituir-se por uma combinação de habilidades, conhecimentos e atitudes. Dentre as habilidades mencionadas pelos referidos autores, encontramos as habilidades de interpretação, descoberta e interação, como também, habilidades de comparação. Desta maneira, enfatizamos que a inserção da dimensão cultural no processo de ensino- aprendizagem de LEC possibilita o desenvolvimento integral do aprendiz, uma vez que o leva a inferir, indagar, comparar, analisar, avaliar, entre outros, a respeito da língua e da cultura de outros povos. Nessa perspectiva, as capacidades relacionais do aluno ampliam-se, uma vez que é oferecida à criança, a possibilidade de perspectivar sua realidade e o mundo além desta.

16

Council of Europe. Modern Languages: Learning, Assessment: A Common European Framework of Reference. Strasbourg, 1998.

Convergindo com pensamento de autores como Cameron (2001), Brewster, Ellis & Girard (2002), Ellis (2004), dentre outros, Escada (2002) argumenta que o ensino de LE na infância, através da perspectiva cultural, contribui para o desenvolvimento também da afetividade, além da motivação. A referida autora pontua que o foco na competência intercultural permite o elo entre o desenvolvimento das habilidades de pensamento acima mencionadas (o processamento de informação, a argumentação, persuasão, avaliação) e o pensamento criativo, tornando o ambiente propício à aprendizagem.

Ao abordar a cultura no ensino de LE para crianças, Kubanek-German (2000: 50) enfatiza a importância da “consciência cultural”, definindo-a como “uma consciência que afeta nossas ações através da cultura”. O referido autor prossegue propondo que a aprendizagem intercultural seja vista como:

“A habilidade de nos enxergarmos como parte de uma

comunidade maior, de contrastarmos culturas, de estarmos conscientes de que uma língua diferente está imbricada em crenças, comportamentos e sentidos também diferentes”.

(Kubanek-German, 2000: 50)

Dentro da perspectiva apresentada, Kramsch (1993: 295-296) destaca, ainda, que devemos ensinar cultura como diferença. Isto implica um ensino de línguas embasado na concepção de que as identidades nacionais não são monolíticas, mas que trazem consigo variedades relacionadas ao gênero, idade, região de origem do indivíduo, entre outros. Desta forma, conforme afirma Oliveira Santos (2004: 114), “somente a confluência de variados aspectos e características culturais” pode caracterizar a “cultura de uma pessoa”, o que novamente ecoa os princípios freirianos da educação libertadora.

Mckay (2002: 82) assevera que a cultura no ensino de línguas, geralmente inclui a abordagem das diferentes “dimensões de cultura” propostas por Adaskou, Britten & Fashi (1990), a saber:

- a dimensão estética: a qual envolve a literatura, filmes e música relacionados à língua-alvo.

- a dimensão sociológica: a qual envolve reflexão sobre os costumes dos falantes da língua-alvo.

- a dimensão semântica: a qual envolve a reflexão sobre a maneira como o sistema conceitual da cultura é absorvido pela linguagem.

- a dimensão pragmática: a qual envolve a reflexão sobre como normas culturais influenciam e determinam o uso apropriado da linguagem em diferentes situações e contextos.

Kramsch (1993) complementa que a reflexão deve ser sempre parte integrante do ensino da cultura. Brewster, Ellis & Girard (2002: 148) reforçam tal pressuposto, enfatizando que a vertente intercultural no ensino-aprendizagem de LEC, conforme já salientado, deve respaldar-se na idéia de que “a ligação entre a linguagem e a cultura não se resume ao ensino de fatos” sobre determinados países.

Os autores observam que o referido ensino deve ser orientado visando a promover, além da observação, da comparação e da reflexão, como já descrito, também a pesquisa. De acordo com esses teóricos, a ação de pesquisar em muito contribui para a autonomia da criança, uma vez que a leva a fazer descobertas por si própria. Segundo Brewster, Ellis & Girard (2002: 148), essa abordagem “etnográfica” envolve, além do trabalho com as habilidades comunicativas, a criação ou a exploração de situações autênticas, a partir da perspectiva da criança. Observamos, então, a importância de buscarmos formas de promovermos a comunicação na língua-alvo, através de situações reais e sócio-culturalmente situadas (Vygotsky, 1998, 2001; Bakhtin, 2004), as quais respeitem o universo infantil e que, deste modo, sejam significativas para a mesma.

No que se refere ao ensino de LE de um modo geral, Oliveira Santos (2004) advoga na mesma direção, ao propor que o processo seja embasado em uma Abordagem Comunicativa Intercultural (ACIN). Segundo a autora, ensinar, dentro dessa perspectiva, não se resume a abordar “conteúdos culturais”, mas sim desenvolver a competência lingüístico-comunicativa na língua-alvo, através de um trabalho conjunto, cooperativo, de produção de conhecimento significativo, que assegure o já citado “diálogo cultural” (Oliveira Santos, 2004: 175).

Considerando-se as premissas até então apresentadas, podemos asseverar que Ellis (2004), por sua vez, não está sozinha ao afirmar que o desenvolvimento da competência intercultural pode ser visto como parte integrante da consciência

metacognitiva da criança, podendo ser relacionado à possibilidade de se promover o aprender-a-aprender (Bruner, 1986) no ensino-aprendizagem de LEC.

O conceito de consciência metacognitiva é definido por Brewster, Ellis & Girard (2002:53) como “o conhecimento e a autoconsciência que um aprendiz tem de seu próprio aprendizado”. Desta forma, acompanhando princípios defendidos por Ellis (2004), Cameron (2001) considera que a presença de objetivos culturais no ensino de línguas para crianças cria oportunidades para que elas se tornem conscientes de sua própria identidade lingüística e cultural.

Percebemos, assim, que o ensino da cultura possibilita que o papel formador da LE venha a concretizar-se de diversas maneiras. A dimensão cultural no ensino de línguas oferece a possibilidade de se trabalhar a etnocentricidade da criança, de estimular sua curiosidade e motivação, de ampliar seu conhecimento do mundo, de fortalecer sua auto-estima, de promover atitudes positivas em relação à diversidade lingüística e cultural, de contribuir para o entendimento e a paz mundial, além de prepará-la para o aprendizado de LE em séries posteriores.

No que concerne, especificamente, à relação entre a competência intercultural e o desenvolvimento da competência comunicativa do aprendiz, asseveramos que, em nossa acepção, a dimensão cultural no ensino-aprendizagem de LEC propicia o desenvolvimento da capacidade de mobilizar diferentes conhecimentos (lingüísticos, sociais, culturais, meta, dentre outros). Tais conhecimentos, por sua vez, contribuem para que a criança possa, no futuro, atuar de forma plena e consciente na sociedade em que está inserida, fazendo com que esse ensino caminhe na perspectiva da educação crítica e libertadora (Freire, 1988, 1996, 2004).

Nessa perspectiva, vale reiterar que o conhecimento lingüístico representa o saber “sobre” a língua enquanto sistema. O social vincula-se ao saber relacionar-se com o outro, também através da linguagem e, portanto, ao saber adequá-la a diferentes situações de comunicação. O conhecimento cultural abarca saber sobre si e sobre o outro em termos culturais e envolve a formação de atitudes positivas em relação às diferenças. Representa, assim, o conhecimento sobre o mundo e sobre as pessoas. Por sua vez, o conhecimento meta está relacionado à consciência e ao pensamento crítico acerca de

todos os aspectos abordados, ou seja, sobre a língua, sobre a maneira como se aprende e, também, sobre aspectos sociais e culturais.

Tais conhecimentos encontram-se entrelaçados pelo desenvolvimento de competências específicas, tais como a capacidade de uso da linguagem em situações reais, a capacidade cognitiva ou de organização do pensamento, capacidades relacionais e afetivas, que auxiliam na ação dentro de uma situação ou evento social específico, capacidades meta, as quais viabilizam a reflexão, dentre outras. Assim sendo, esses conhecimentos estão intrinsecamente relacionados às diversas competências abarcadas pelo conceito de competência comunicativa (Canale, 1983; Almeida Filho, 1993).

Torna-se pertinente salientarmos que tais referenciais são novamente abordados no Capítulo V desta dissertação, momento este em que também apresentamos um quadro para melhor visualização da relação entre os conceitos mencionados. Observamos, ainda, que os princípios abordados são fundamentais para a construção de provisões para LEC, o que reforça a necessidade de buscarmos formas de concretizar o processo seguindo essas premissas. Tendo argumentado sobre a relevância da cultura e da competência intercultural no ensino de línguas para crianças, passamos, na seção seguinte, à apresentação de reflexões a respeito do desenvolvimento do pensamento e da linguagem e sua relação com o citado processo.

3.3 Como a criança pensa e aprende (línguas): um diálogo entre a

Documentos relacionados