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A consciência do êxtase

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 71-73)

A idéia de que a representação de si não significa somente a expressão do estado de vigília, mas também formas diferenciadas de consciência, que envolvem, precisamente, um afrouxamento do eu ou uma diluição do princípio de individuação, foi formulada por Clément (1994), por meio do conceito de “síncope”, que manifesta diversos sentidos: ausência temporária de si, suspensão do movimento, hesitação, dissonância. Essa quebra na linearidade da narrativa de si próprio estaria presente em diversos momentos e experiências vitais, alguns banais e cotidianos, tais como o desmaio, o espirro, a tosse, as cócegas, o choro, o riso e a gargalhada, o grito, os tremores, os calafrios, e, outros, de um profundo significado, como na dança, no êxtase religioso e no ficar apaixonado (em francês coup de foudre, ou seja, relâmpago). As idéias de uma interrupção ou de uma batida musical fraca entre duas fortes ou ainda de um ataque apoplético, estão todas presentes nesse termo, escolhido pela autora, para sintetizar essa experiência existencial de uma ruptura com a auto-consciência linear e corriqueira na perspectiva de um arrebatamento de si que eleva a mera auto-consciência individual a uma condição de reflexão momentânea sobre o seu próprio fundamento, naquele momento em que a sensação de si próprio, a ipseidade (princípio de individuação), precisa rever seu ponto de vista para reencontrar-se consigo após um vôo externo que permite uma maior abrangência na apreciação de si desde um ponto de vista menos centrípeto que é quase externo ao próprio tempo, como ocorre na expressão inglesa time out.

As técnicas de descentramento do espírito foram estudadas por Benjamin, um dos primeiros em formular a perspectiva de um êxtase materialista, de uma iluminação profana como iluminação extática: “em qualquer ato revolucionário existe vivo um componente extático” (1983, p. 83). Os quadros da experiência extática têm sido quase sempre exclusivos da experiência religiosa. Benjamin propõe o estudo de uma experiência profana do êxtase. A possibilidade de um “êxtase materialista” é a perspectiva desenhada por Benjamin para uma utilização profana das técnicas extáticas sempre monopolizadas pelas religiões. O “sentimento oceânico” a que se referia Freud (1978, p. 131) em suas cartas a Romain Rolland (sem conseguir nunca senti-lo), torna-se disponível, na perspectiva de Benjamin, como um estado mental específico, passível de controle estético e cultural como o são os estados mentais provocados pela contemplação artística.

O modelo psíquico moderno constituiu-se historicamente. Uma centralização religiosa em torno à imagem nuclear de uma divindade atômica, mas tripartite, como monoteísmo, equivalia a uma nuclearização da alma tornada única e imperecível, sujeita a condenações ou salvações perpétuas e ligada sempre a um único corpo, perecível, mas passível de ressurreição. Um mono animismo monárquico onde Estado e psiquê são expressões de uma ordem que se integra nos níveis macro e micro da organização social. As grandes polêmicas teológicas do primeiro milênio cristão ocorreram principalmente em torno da natureza e hierarquia da sagrada trindade, esse paradoxo da unidade dividida.

O cristianismo já vinha se constituindo milenarmente como internalização dos controles sociais sobre o corpo e o espírito, numa evolução massiva do estoicismo, e se enfrentou com as antigas culturas extáticas, dionisíacas, zoroastristas ou shivaistas e com as culturas xamânicas indígenas cujo fundamento é um vôo da alma. Na época reformista e contra-reformista dos primeiros séculos da modernidade emergiu, em colaboração mútua com um aparelho de Estado absolutista, um policiamento disciplinar dos costumes com recursos para refinar o modelo de subjetividade moderno com uma férrea estrutura de automatismos morais, de couraças sobre o espírito, para forjar uma mentalidade anti-extática, por meio de uma simbolização demonizante das práticas extáticas como sabá de bruxas ou festim canibal de selvagens.

A constituição de uma centralização interna da psiquê envolverá o aprimoramento de uma série de “técnicas de si”, que herdadas da cultura clássica, tornam-se mais eficazes e presentes na época moderna. Confissão, penitência, vigilância, registro, culpa, remorso, arrependimento, renúncia, castidade, flagelação, martírio, mortificação. A missão colonial européia expandirá esse modelo psíquico numa cruzada espiritual contra o paganismo indígena dos Novos Mundos, e particularmente contra o seu arsenal extático vegetal.

Um dos esforços da psicologia histórica deve ser o de desvendar o encapsulamento do homem moderno das “multidões solitárias”. Os nexos gregários que constituem as identidades pré-capitalistas – tribais, clânicas, cósmico-religiosas – foram substituídas por um mundo impermeável e atômico, o sujeito cartesiano, o cidadão do Estado, o indivíduo privado, a mercadoria humana, fragmento alienado de um conjunto cujo sentido nunca se compreende. É preciso conhecer os meios pelos quais se construiu o modelo de subjetividade da modernidade, chame-se o eu, o ego, a psiquê, a auto-imagem, o si-mesmo, a identidade ou a alma.

A valorização do sonho como linguagem de uma realidade desprezada, mas que revela o âmago profundo de nossa essência vital, vai se expressar tanto na obra de Freud, que identifica no sonho uma das manifestações da verdade inconsciente do núcleo desejante de nossa existência, como em Nietzsche, que afirma que “o sonho das nossas noites tem importância análoga para a essência misteriosa de nossa natureza, para a intimidade de que somos a aparência exterior” (1985, p. 49), assim como no surrealismo, que no sonho, no amor como “revelação profana” e na escrita automática buscará essa unidade entre a produção onírica e a

poesia, que são as brechas na parede do edifício da razão, o “edifício cartesiano-kantiano”, por onde escoa o fluxo de uma energia reveladora, cuja manifestação é sempre onírica, extática e estética. Nas palavras de Benjamin (1983, p. 76)

A vida parecia digna de ser vivida, apenas na medida em que a soleira a separar dormir de acordar era destruída [...] No sistema do universo, o sonho afrouxa a individualidade como se fosse um dente oco. E esse afrouxamento do Eu pelo êxtase é ao mesmo tempo a experiência frutífera e viva que permitiu a esta gente escapar ao círculo de fascínio do próprio êxtase”. O elemento comum a todas as manifestações extra ou supra-racionais, como o imaginário, o êxtase, a paixão, o amor, o sonho, a droga, a embriaguez e o gozo é a falência do “princípio de individuação. A prevalência de um fluxo coletivo irrompe sempre que o edifício da subjetividade é abalado. Nesses momentos, a individualidade é uma invenção que expressa as grades da prisão do ego que contém a força gregária da espécie nos limites de um isolamento auto-referente. Esse abalo surge no amor: “no auge do sentimento de amor a fronteira entre ego e objeto tende a desaparecer” (Freud, 1978, p. 133), no êxtase e em toda forma de paixão. Nesse “afrouxamento do eu”, nesse “êxtase arrebatador que, perante a falência do princípio de individuação, surge do que há de mais profundo no homem” (1978, p. 39), manifesta-se a transcendência do aparelho do ego, a busca da fusão extática com uma noção do infinito, um exercício de despersonalização, de desindividuação, que é típico de toda experiência de transe, possessão, exaltação e dissolução do eu nas unidades mais amplas de uma coletividade, um cosmos, uma natureza.

Foucault estudou a genealogia da constituição de um sujeito, a qual chamou de constituição de um “modo de assujeitamento”. Para ele, “não é o poder, porém o sujeito, que constitui o tema geral de minhas investigações”, e o objetivo de suas pesquisas seria “produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura” (Foucault, 1995, p. 232). Esse “modo de assujeitamento” irá plasmar-se na idade clássica no modelo do empreendedor individual dos sonhos liberais dos economistas ingleses, exaltando um homem privado que terá necessariamente que se dividir para a sua constituição em duas esferas, a pública e a pessoal, esta última como arena para uma domesticação que servirá para a melhor eficiência do interesse particular dos acumuladores de capital no domínio impessoal do capital, rei dos valores, maestro da orquestra de indivíduos isolados em seu íntimo e unidos pelo mercado.

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 71-73)