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Potência no fracasso

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 96-101)

O moralismo dos movimentos puritanos, descritos acima, não se restringia ao ataque às substâncias consideradas vis ou indutoras de comportamentos desviantes. Os grupos do proibicionismo emergente não descuidaram daqueles tidos como os próprios desviantes. Vincularam de forma explícita o uso de “substâncias venenosas” a grupos sociais tidos como “perigosos”, “ameaçadores”, “virulentos” (Passetti, 1991; Rodrigues, 2004a). As assustadoras hordas de pobres, imigrantes e negros faziam, supostamente, uso imoderado de drogas psicoativas, o que revelava sua degenerescência moral e física, e aumentava o perigo que representavam. Desse modo, era recorrente, nas primeiras décadas do século XX, entre grupos proibicionistas, na mídia e nos discursos governamentais nos Estados Unidos, a associação direta de negros à cocaína, hispânicos à maconha, irlandeses ao álcool, chineses ao ópio (Szasz, 1993). O despontar de associações moralistas contra psicoativos e da vinculação entre minorias e drogas não foi exclusividade dos estadunidenses, sendo localizável em outros países das Américas e da Europa (Carneiro, 1993; Escohotado, 1998; Rodrigues, 2004a). É possível identificar o período em que o uso de drogas psicoativas deixa de ser considerado pelos governos como um problema sanitário de menor importância para ser entendido como uma “epidemia” e, como desdobramento quase imediato, como um “caso de polícia”: é justamente nos anos 1910 e 1920 quando o hábito de intoxicar-se deixa de ser uma exceção em meio aos filhos da “boa sociedade”, gracejando entre prostitutas, pequenos criminosos, nas classes trabalhadoras urbanas etc. Para o moralismo proibicionista, significava a difusão do “Mal”; para a classe médica e as autoridades sanitárias, o crescimento de um grave problema de saúde pública; para os estrategistas da segurança pública, a proliferação de criminosos. A um só tempo, um pecado e um crime de lesa sociedade.

A partir do instante em que determinados grupos são diretamente associados a um crime, qualquer que seja sua natureza, o aparato coercivo estatal volta-se contra ele sob a justificativa de aplicar a lei. É interessante reparar que o “novo crime” do tráfico e consumo de drogas foi imediatamente conectado a camadas das crescentes populações urbanas que representavam uma ameaça ao Estado e às classes que o controlavam: perigo de insubmissão, de greve, de higiene, de ataques à pessoa e à propriedade. Na Europa, Estados Unidos ou Brasil, essa massa amedrontadora era conformada por negros, imigrantes e migrantes rurais, socialistas, anarquistas, ladrões, prostitutas, operários, mulheres, homens e crianças de “hábitos exóticos e não-civilizados”; eram eles a antítese do progresso e das maravilhas do mundo moderno.

Michel Foucault apontou como o final do século XVIII e o início do século XIX assistiram ao surgimento de um novo “problema”, percebido dessa forma por governos e intelectuais: a população. O processo de industrialização e a modernização que concentrou terras no campo passaram a gerar um êxodo em direção às cidades fabris européias de modo a multiplicar rapidamente o número de habitantes em novas metrópoles. Governar uma cidade, um Estado, a partir de então deveria ser a arte de administrar e conter massas humanas aglomeradas em cidades, que se reproduziam com expressiva velocidade. Segundo Foucault,

o grande crescimento demográfico do Ocidente europeu durante o século XVIII, a necessidade de coordená-lo e de integrá-lo ao desenvolvimento do aparelho de produção, a urgência de controlá-lo por mecanismos de poder mais adequados e mais rigorosos fazem aparecer a “população” – com suas variáveis de números, de repartição espacial ou cronológica, de longevidade e de saúde – não somente como problema teórico mas como objeto de vigilância (1998, p. 198).

A atenção necessária à população leva ao desenvolvimento de uma série de saberes conectados (como a demografia, a estatística e a medicina social) que, em conjunto, auxiliam a configuração de um contemporâneo poder de polícia que significa, não apenas o de perseguir criminosos, mas o de gerenciar minúcias da vida individual e coletiva, uma “arte racional de governar” (Foucault, 1997a, p. 85) em tempos de população crescente e de economia industrial em expansão. Era necessário, desse modo, a constituição de saberes que forjassem corpos saudáveis para o trabalho e mansos para o trato. A passagem do século XVIII para o XIX cristaliza o que Foucault chama de “momento histórico das disciplinas”, momento no qual “nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco a aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente” (1997b, p.127). Havia, portanto, a urgência em desenvolver modos de governar que tornassem os indivíduos produtivos e dóceis, úteis e sãos. O olhar simultâneo para o indivíduo e para o grupo do qual fazia parte e que tinha suas próprias “leis” de desenvolvimento, a população, levou à construção de uma forma de exercício do poder que Foucault chamou de biopoder.

A gestão dos corpos posta em marcha pela biopolítica colocava o problema de controlar aqueles que não se enquadravam no modelo “útil e dócil”: os criminosos, os “indolentes”, os subversivos, os loucos, os doentes. A lógica da utilidade dócil era, todavia, bastante afeita aos sentimentos humanistas de progresso e dignidade humana. Assim, o horror aos castigos e suplícios do Antigo Regime levou à criação de novas instituições e técnicas para tratar dos “desviados” na esperança de tratá-los, salvá-los, torná-los úteis no convívio social ou mesmo se apartados dele. A instituição-símbolo desse momento é a prisão, a “nova prisão” dos juristas reformistas, que procurou se afastar do calabouço medieval e do cadafalso moderno para ser algo como uma usina de bons cidadãos. A utopia da reforma do indivíduo motivou a defesa da prisão como forma humana e justa de punição e serviu de parâmetro para outras formas de disciplinamento de corpos não-afeitos à ordem estabelecida como a escola, o hospital, a caserna. O importante era apartar o desvio, puni-lo, corrigi-lo ou afastá-lo em definitivo do convívio social.

Junto às ações disciplinares de cunho coercitivo, como a prisão e ação das “forças da lei”, a biopolítica operou estratégias de incremento das condições de vida dessas mesmas populações vigiadas, o que originou investimentos em saúde pública – campanhas de vacinação, reformas urbanas, saneamento público, regulamentação das profissões médicas etc. – que significavam a um só tempo melhoria de vida e fortalecimento para o trabalho. Assim, Foucault identifica positividades no exercício do poder ou, em outras palavras, que o governar não se restringia a coagir (provocar morte), mas também, em “causar vida” (Foucault, 1999).

Nessa confluência entre coerção e assistência, entre reprimir e oferecer é que se pode entender o despontar de uma política como a proibicionista. O controle e regulamentação do uso de drogas foi parte fundamental da consolidação da autoridade médica no século XIX e princípio do XX, período em que se cristaliza no Ocidente quais são os usos legítimos (pois baseados na ciência médica ocidental) e quais são ilegítimos (práticas tradicionais ou que escapassem, de algum modo, aos cânones médicos). Quando o Estado entra nesse debate, a fixação de leis define o “cientificamente legítimo” como legal e o “cientificamente ilegítimo” como ilegal.

Num momento subseqüente, a regulamentação sobre o uso de drogas complementa esse percurso ao estabelecer regras para produção, rotulagem e elaboração de listas de drogas que poderiam ser receitadas pela medicina chancelada pelo Estado. O tema das drogas psicoativas é um capítulo dentro desse processo, talvez um dos mais recentes. Quando as leis proibicionistas entram em vigor pelo globo, não se pode esquecer que para muitas categorias de psicoativos restou a permissão para o uso controlado por receituário específico, ou seja, uso legal supervisionado por um médico, que por sua vez era controlado pelo Estado. Para aquelas substâncias classificadas como “sem uso médico” o destino é a total proscrição. Aos médicos que atuam além de suas atribuições (indicando psicoativos sem respeitar a lei), cabe punição; aos negociadores e consumidores das drogas banidas, também. No entanto, tais negociadores

acabam sendo em grande parte pessoas oriundas das “classes perigosas” ou, ao menos, os olhares seletivos dos órgãos repressivos acabam por rastrear os fora-da-lei que estejam preferencialmente nos espaços e grupos sociais a serem esquadrinhados, medidos, controlados. O proibicionismo parece ser uma técnica interessante para as estratégias de biopolítica porque é um instrumento que, ao mesmo tempo, pode disciplinar a prática médica – intervindo em condutas profissionais e em práticas de auto-medicação ou livre intoxicação dos indivíduos – e vigiar uma parcela considerável da sociedade que deve ser controlada, revistada, observada de perto, confinada. Quando a proibição, ao invés de coibir acaba por estimular um mercado ilícito vigoroso, indivíduos pertencentes a grupos já anteriormente passíveis de vigilância ganham um acréscimo de “periculosidade” porque além dos crimes que poderiam cometer, passa a ser possível um novo crime, tão ameaçador porque é uma afronta ampla à sociedade. Um grande medo, um hediondo crime: ao mesmo tempo um problema moral, de saúde pública e de segurança pública. Com tal “potencial”, as técnicas de governo não poderiam descuidar do tráfico e do uso de psicoativos ilegais como vetor de biopolítica.

Nesse sentido, não se quer afirmar que o proibicionismo seja a única, ou mesmo a mais importante, técnica de assédio e aprisionamento destinado às “classes perigosas”, mas que ele é um importante recurso nessa função global de disciplina e contenção. Cada crime produzido por novas legislações inaugura um novo flanco de combate aos “perigosos”, um novo acesso ao sistema penitenciário, uma outra entrada para a vigilância constante. Se existe um crime que é forjado com tamanha carga de reprovação moral e científica, temos à frente um “perigo” de considerável importância que conquista e catalisa sem dificuldades o consenso repressivo das sociedades. O “fracasso” da proibição, então, potencializa-se em positividade: a guerra perdida contra “as drogas” significa a guerra diariamente renovada e eficaz contra pobres, imigrantes, negros, camponeses entre outros “ameaçadores”.

No plano internacional, o movimento de guerra sempre fracassada e sempre atualizada se repete. Para compreender essa dimensão há que se ter em mente que o tema do controle de psicoativos já nasce internacional, uma vez que as primeiras iniciativas que levariam às normas domésticas antidrogas começaram a ser desenhadas nos encontros e conferências existentes desde 1909. A partir de 1945, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), foi realizado um considerável esforço de padronização dos tratados internacionais sobre o tema produzidos dos anos 1910 em diante, o que levou à reestruturação do sistema de controle instituído na Liga das Nações (1919-1939) e à padronização do modelo ao qual psicoativos ilícitos ou controlados foram submetidos. Esse padrão, em linhas gerais, poderia ser resumido como calcado na postura estadunidense de repressão e fiscalização máximos. Em outras palavras, as normas internacionais celebradas desde a Convenção Única da ONU sobre Drogas, de 1961, consagraram o proibicionismo como a forma de tratar o “tema das drogas psicoativas” no mundo.3

Pari passo à intensificação dos tratados internacionais e da repressão doméstica nos Estados proibicionistas, assistiu-se, nos anos 1960, a um período de crescimento do consumo de drogas ilícitas: ao lado das mais tradicionais, como a heroína, surgiram ou foram recuperadas drogas alucinógenas, como o LSD, a maconha e a mescalina, todas fortemente vinculadas ao movimento de contracultura e psicodelia que tanto preocupou governos no Ocidente (nos Estados Unidos, em particular) por seu caráter iconoclasta, pacifista e contestatório. Os anos 1970 começaram, assim, com um quadro que combinava consumo em alta, mercado ilícito de drogas em expansão e renovados projetos de repressão. Nesse contexto, é importante destacar a declaração de 1972 do então presidente dos EUA, Richard Nixon, na qual proclamou que “as drogas” eram o novo inimigo número um do país. Nixon sustentava que para enfrentar tão ameaçador inimigo era urgente declarar “guerra às drogas”, entendendo a necessidade de combater traficantes e consumidores em solo norte-americano e também no exterior. A lógica da guerra às drogas, segundo Passetti(1991, p. 61) se baseia numa “ficção”: a de que existem, de forma estanque, países produtores e países consumidores (1991, p. 61). Numa palavra, baseia-se na ilusória impressão de que os países que mais consomem nada produzem e os que mais produzem nada consomem. Seria ignorar, continua o autor, as plantações de maconha nas reservas florestais do meio-oeste americano, os laboratórios de drogas sintéticas na Califórnia e, ao mesmo tempo, os consumidores na América Latina. Ainda que sem sustentação, a divisão entre “produtores” e “consumidores” passou a cumprir um relevante papel geopolítico: ao exteriorizar o problema, identificando “fontes” além-fronteiras, o Estado norte- americano pôde apresentar o tema do narcotráfico como uma questão de segurança nacional. Se era possível aplicar um raciocínio de segurança nacional ao tráfico de drogas era, também, viável levantar o direito de autodefesa, o que representaria no caso estadunidense uma autorização para agir diretamente sobre os “Estados produtores” (Rodrigues, 2004a). Às dimensões de periculosidade associadas ao tráfico e uso de psicoativos ilegais anteriormente existentes (moral, de saúde e segurança públicas) adicionou-se um quarto plano que é o da segurança nacional.

O discurso da “guerra às drogas” serviu de base para uma importante reformulação das prioridades geopolíticas estadunidenses em regiões do globo como a América Latina e o sudeste asiático (Brouet, 1991). Tal redimensionamento fez com que o tema do narcotráfico crescesse de importância na agenda diplomático-militar dos EUA ao longo dos anos 1980, na medida em que diminuía a atenção dada ao “perigo comunista”. Houve um período de hibridização das ameaças, nas chamadas narco-guerrilhas – como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), e o Sendero Luminoso peruano – , que a partir dos anos 1990 consolidou-se na forma da associação tráfico-terrorismo, hoje muito importante não apenas na política externa estadunidense, mas também nas de seus aliados e nos debates travados nos foros políticos internacionais. Fato este que acresceria um quinto plano às quatro camadas descritas,

que seria o da segurança internacional: o tema do tráfico de drogas não apenas como um problema de segurança doméstica ou de um Estado, mas um perigo associado a uma ameaça à “ordem mundial” (Rodrigues, 2004b). Além dos indivíduos perigosos que cada Estado abriga, pensar o narcotráfico como tema de segurança internacional nos faz notar indivíduos em trânsito também como ameaças, assim como países ou regiões do planeta seriam “perigosos mananciais” onde vivem coligados drogas e terrorismo: indivíduos-párias e Estados-párias a serem caçados, neutralizados, punidos.

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 96-101)