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Do natural ao social: as substâncias em meio estável

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 165-179)

Na perspectiva moderna, a natureza e a sociedade permitem a explicação porque elas, em si, não precisam ser explicadas.

Bruno Latour

Já de saída do laboratório, convido agora a reencontrarmos algumas substâncias, medicamentosas ou não, lícitas ou não, elas porém já entregues ao mundo da sociedade e do

social. Não é mais que um convite para tentar propor algumas hipóteses a respeito da passagem

do natural, tanto em sua versão purificada (como expressa pelo “arrombador biológico”) quanto na híbrida (tal o efeito placebo), para o social, este também sob ambas as dimensões. Se as noções de agência e estabilidade puderam ser úteis para melhor compreendermos o natural, proponho então que também o possam ser para o social. É este experimento de simetria que gostaria de tentar aqui. Para isso, devo antes esclarecer um pouco mais, ainda que brevemente, sob qual orientação teórica devo enfrentar o problema das substâncias, tal o modo como esse problema parece instalar-se na cosmopolítica21 dos coletivos modernos.

Convoco novamente Latour e seu chamado para substituir a “sociologia do social” pela “sociologia das associações”, assim recuperando sentidos originais presentes na fundação das ciências sociais, em especial pelas propostas de Gabriel Tarde, que porém foram subsumidas pelas de Durkheim, tornando-se, por sua vez, a versão oficial e operatória do conhecimento a respeito do que consiste e como funciona a sociedade ou o social. Trata-se de substituir a tautologia durkheimiana, segundo a qual o social se explica pelo social, pelo “princípio de conexão” de Tarde, que toma o social como um “fluido circulante” a ser seguido pela investigação. Se tudo conectado (biologia e microeletrônica, mercado e financiamentos, artigos e enunciados, enfim, humanos e não-humanos), agora não deveríamos mais falar do social como um domínio purificado dos homens-entre-eles, tais os atores sociais que a sociologia clássica sempre teve como objeto, mas sim do coletivo, esse novo mundo que, no entanto, sempre existiu na versão oficiosa da modernidade, e que é feito de coisas e pessoas em associação. Não mais os homens-entre-eles das ciências humanas, nem as coisas-em-si22 das ciências naturais – mas ambos e em formação simultânea, e nunca prematuramente dados. O social, como um todo (Durkheim), não deve explicar a parte, mas, ao contrário, é a parte que retoma o todo (Tarde, Latour). A inversão consiste portanto em partir do menor para o maior.23

Gostaria aqui de notar que Latour se opõe justamente à versão estável do social, isto é, essa versão da sociologia fundada em fenômenos percebidos desde sempre como sociais. O que ele tinha até o momento feito com relação ao domínio da Natureza, volta-se agora para o domínio da Sociedade. Mas Latour recusa essa epistemologia fundadora da modernidade que cria e aparta os domínios de Natureza e Sociedade, essa “Grande Divisão” ontológica e epistemológica a partir da qual o mundo é repartido entre ambos os pólos purificados. Assim como o natural, o social não pode ser um domínio de realidade, um cantão próprio, independente, autônomo desde sempre. Não há, portanto, uma externalidade entre ambas as noções. O autor quer recuperar o social como associação, e não como substância ou entidade, para domínios além dos humanos ou da sociedade moderna. Seria como tornar socialmente compatíveis objetos, genes, micróbios, petróleo, humanos, discursos. Entendo que a noção de agência é o que torna essa tarefa possível – humanos e não-humanos são ambos agentes, uma vez que estejam inseridos em rede, isto é, estejam associados e participam ativamente de uma cadeia de efeitos.

Práticas de mistura e purificação em laboratório. Tanto dentro quanto fora deles, essas práticas informam o modo geral como classificamos as substâncias e seus efeitos, sempre em conformidade ao meio em que passam a atuar – seja natural ou social, estável ou instável.

Agora a sociologia se definiria não como uma “ciência do social”, mas uma ciência que deve funcionar como um “rastreador de associações” (tracing of associations). É uma operação que traça, por etnografia, o desenho das redes criadas por essas associações ou conexões, que cortam os antigos pólos da Natureza e da Sociedade. A relação propriamente dita é o que, de fato, cria o que (antes, quando éramos modernos) chamava-se Natureza ou Sociedade. Os fatos, fossem sociais ou naturais, são flagrados em formação pela antropologia simétrica e a Teoria-do-Ator-Rede (Actor-Network-Theory) nas conexões em que se processam. Antes de coisas ou pessoas, o social é feito de “elementos heterogêneos” em constante associação – ora estabilizando-se, ora o contrário, acrescento.

Entendo que a noção de verdade, tanto a verdade natural quanto a social, a científica ou a política, deve aparecer quando os agentes, sempre humanos e não-humanos em interação, negociam uma espécie de vida-em-comum e, assim, se estabilizam. A eficácia prática das criações ou descobertas, como se queira chamar, dependeria dessa convivência estável. Quando os etnógrafos das ciências se interessam pelas controvérsias entre os cientistas, eles estão precisamente atrás de descrever a formação do fato, isto é, o momento antes que algo (um conceito, uma máquina, uma técnica, um organismo) se encerre no que Latour denominou de “caixa-preta”24, quando então o fato já se tornou fato, quando a controvérsia já foi substituída pelo indiscutível.

Mas apostemos, antes, no discutível. Como enfrentar o problema das substâncias senão recusando, ao mesmo tempo, a crítica prematura do social e do natural que resume, breve demais, algo que é tão extenso e perpassa ciência e política num ziguezague estonteante? Que são importantes, entre nós, as substâncias e seus efeitos, isto parece realmente indiscutível. Mas a gênese e a dinâmica dessa importância e de seus efeitos, isto sim deve merecer todo esforço de reflexão. Do contrário, apenas estaremos reproduzindo uma guerra entre naturalistas e sociologistas que se engalfinham numa disputa pelo cargo de porta-voz das substâncias. Enquanto isso, esquecemos que, no meio das querelas, segue fluindo a prática dos agentes em ação e associação.

Pelo já indicado, creio que agora já podemos compreender que lícitas ou produtivas são as substâncias, como os medicamentos, cuja ação quer-se estabilizada, isto é, preditiva ou previsível, potencialmente capaz de reproduzir semelhantes efeitos independentemente de quem delas se utilize. Só assim as substâncias podem se submeter à escala impessoal do mercado terapêutico. Aqui, o paciente individual é socialmente naturalizado na mesma medida em que as doenças são nomeadas e classificadas. As idiossincrasias subjetivas – espera-se – terão sido eliminadas pela purificação laboratorial prévia. Opostamente, ilícitas ou improdutivas passam a ser as substâncias cuja ação é potencialmente capaz de disparar uma pletora de efeitos imprevisíveis ou instáveis. Mas, ora, se a molécula em teste consegue alcançar uma ontologia medicamentosa, vimos que esse estatuto só é possível depois de um intenso trabalho contra-

placebo. Pois, simetricamente inverso, o que permanece de instável nas substâncias ilícitas ou

improdutivas – essa instabilidade que parece causar um verdadeiro horror social entre os modernos – se deve precisamente à falta de trabalho (negociação de agências para o fim da estabilização) sobre elas. Sugiro que o efeito placebo e as substâncias ilícitas compartilham dessa mesma marginalidade cosmopolítica. Aqui, ciência e política se retroalimentam para recusar qualquer dignidade, natural e social, a determinadas substâncias que, por isso mesmo, permanecerão marginais – mas não sem conseqüências.

À fabricação da natureza em laboratórios corresponde a fabricação da sociedade fora dele. Em ambos os casos, todo o esforço é por estabilizar agentes – humanos e não-humanos. O problema das drogas ilícitas e seus efeitos ligam-se diretamente a esse esforço.

Foto: Stelio Marras

Assim como a crescente purificação de moléculas em laboratório produziu uma crescente proliferação de híbridos (hipótese de Latour), entendo que a proibição de determinadas substâncias produziu de sua vez a proliferação de mais substâncias e um aumento de consumo. Compreendo esse tabu como fruto de uma purificação social ancorada no naturalismo, que por sua vez se define por substancializar entidades, quer dizer, por eliminar delas sua capacidade relacional. O suposto de base é que as substâncias existem, não importa se criadas ou

descobertas, e fazem o que fazem a quem quer que seja. Aliás, penso que é esse mesmo

suposto que funda entre os modernos o conceito de identidade, como algo, das drogas às pessoas, que é, sempre foi e será idêntico a si mesmo. Daí que, para os mesmos modernos, a capacidade de se relacionar seja, por sua vez, um atributo sempre construído, nunca dado – donde a necessidade de um contrato social para se criar a sociedade e todo um aparato estatal- jurídico para regular a relação entre as pessoas. Simetricamente, as ciências se apresentam como tradutoras dos dados da Natureza, que uma vez revelados serão entregues ao mundo do social, mas já em forma de dado, já como um fato indiscutível.

As controvérsias que invariavelmente têm lugar no processo de construção científica do dado (o que poderíamos denominar de dadificação do dado), essas não vêm à cena pública. É como se essa instância pragmática das operações não pudesse ser revelada porque, se o fosse, poria em suspensão o caráter real daquilo que é feito ou descoberto em laboratório. Qual pueril desconfiança. Já é hora de assumirmos que o real não é menos real, senão bem ao contrário, porque ele seja produto de um deliberado trabalho de, digamos, substancialização da substância.25 Em tempos de hibridização contínua em laboratórios, tal o trabalho de criação de novos seres por modificação genética, é preciso admitirmos a operação profundamente relacional – entre humanos e não humanos, de modo geral – que preside a prática científica. É razoável imaginar que, quando um dia formos capazes de passar verdadeiramente da concepção substancialista para a relacional, ciência e sociedade deverão mudar radicalmente. A questão das drogas ilícitas poderá ser um capítulo, embora central, dessas mudanças.

Enquanto isso, resta ao menos notar que a criação de entidades puras (o natural e o

social, e seus infinitos derivados) gera simultaneamente entidades misturadas, híbridas. O

“paradoxo dos modernos” (Latour) é que quanto mais se separa, mais se relaciona.26 Claro, não é sequer possível conceber a mistura se não se supõe a pureza – aí uma exigência lógica. A falácia do pensamento moderno é (ou foi) não reconhecer dignidade ontológica a todo esse mundo mediador dos híbridos, sobre o qual pesa (ou pesou) um enorme desinteresse. Mas esse desinteresse, tanto científico quanto político, acaba ativando outros interesses. Se é verdade que o mundo purificadamente repartido, tal o moderno, foi capaz de produzir e reproduzir a Natureza e criar a Sociedade tecnológica, não é menos verdade que esse “bicameralismo” (Latour) inaugural da modernidade assuma, não raro, uma verdadeira guerra que reverbera em oposições como indivíduo e sociedade, marginal e central, ilícito e lícito, falso e verdadeiro, fetiche e fato, patológico e normal, e assim por diante. Não por acaso, aquilo que é tido como proibido e perigoso irá servir de munição crítica e posicionamento político frente ao estabelecido, isto é, ao tido como lícito e socialmente produtivo. Pois não é esse o caso das chamadas drogas ilícitas?

Quanto mais se proíbe, mais cresce o consumo do proibido. Tal relação também se confirma em estudos de história. Carneiro (2002), por exemplo, observou que “o século XX foi

o momento em que esse consumo [de drogas] alcançou a sua maior extensão mercantil, por um lado, e o maior proibicionismo oficial, por outro.” Ou seja, temos aí a indicação de que à medida que determinadas substâncias se tornam drogas (no seu sentido negativo), elas se expandem e se tornam ilícitas – objeto de sanção oficial e social. Estou tentando sugerir que essa relação entre a “droga” e o “social” deve ser melhor investigada para se compreender mais precisamente o que esses termos clarificam e o que eles obscurecem – já que a confusão, e também a má intenção, reinam. Não se trata, aqui, de desconstruir esses termos revelando seja “a natureza precisa” dessas substâncias, seja a “busca de lucros” que o proibicionismo alavancaria (Carneiro, 2002, p. 116). Ao contrário, o desafio aqui é o de evitar os mecanismos de purificação crítica do problema, como se, de um lado, a ciência finalmente viesse a elucidar a veracidade ou o engodo dos efeitos de tal ou qual droga ao revelar os princípios ativos da substância, ou, de outro lado, seria a política e os interesses econômicos que explicariam a expansão ou a proibição das drogas. Sem dúvida que é preciso conectar as coisas, mas não coisas prematuramente formadas e cada vez mais menos explicativas, como Política, Sociedade, Mercado, Ciência, Psicologia ou Natureza.

De resto, tal epistemologia dualista e substancialista parece informar a grande parte do pensamento crítico. Mesmo Perlongher, ([1990], p. 78), um perito no assunto, talvez incorra em certa naturalização do problema ao situar, de um lado, uma “disposição inata” do êxtase e dessa vontade de sair de si e “romper”, e, de outro, a “sociedade”, como fosse algo também inato. Contudo, a despeito dessa reprodução da crítica purificadora moderna, seu argumento é que todos os povos de todas as épocas experimentariam alteradores de consciência para escapar do tempo e espaço “ordinários”. Como seja, tal naturalização – a da sociedade e a dessa disposição para rompê-la, para a qual as drogas apresentam-se como veículos dignos da tarefa – é possível a partir de uma generalização teórica que opera o nosso saber crítico a respeito do assunto. Em sua face positiva, as drogas ilícitas aparecem como libertadoras do indivíduo que vive sob as malhas de sua sociedade estabelecida. Aí, a função dos modificadores de consciência, imediatamente concebidos e utilizados como agentes instáveis ou de instabilidade, é a de justamente desestabilizar uma ordem (a da sociedade e sua consciência) que oprime aqueles que vivem sob suas malhas. Consequentemente, as drogas assumem sua face negativa por semelhantes razões: elas ameaçam o funcionamento dessa ordem. Meu argumento, aqui, é que esse nosso saber crítico generalizado explica melhor a nossa sociedade do que as outras. Ele nos diz mais sobre os fundamentos de nossa própria organização do que dos outros. Que seria enfim conveniente refletir mais e melhor sobre esses nossos fundamentos antes de prematuramente dispor deles para o jogo da alteridade.

Eu gostaria, enfim, que este fosse um argumento de razão antropológica não por reificar categorias ou realidades locais, mas pela ambição de torná-las aptas à comparação geral. Imagino que seja melhor refletir sobre o significado de nossa alteração antes de entregá-lo à alteridade.

Ou seja, como situar esses estados alterados de consciência em nossa própria, digamos, sociedade? Insisto que a noção de social, de consciência ou de sociedade, esta entidade percebida como

estável, deve se submeter a um exame crítico radical. É que particularmente desconfio do

rendimento de generalizações como a dos estados alterados de consciência, se nelas, como percebo, vão sempre embutidas noções prematuramente formadas de sociedade e indivíduo, consciência e alteração. Mas, ora, todos os povos que utilizaram ou utilizam drogas, seja por transe, êxtase ou possessão, o fariam para em algum nível romper com sua própria sociedade e a vida ordinária? Me parecem mais acertadas afirmações, como a do próprio Perlongher ([1990], p. 79), quando diz que “a droga pode produzir, por um tempo determinado, uma modificação do estado de consciência, mas não produz os ‘conteúdos’ desse estado”. O autor cita Lapassade (La

transe, 1990), segundo o qual “a consciência modificada se caracteriza por uma mudança

qualitativa da consciência ordinária, da percepção do espaço e do tempo, da imagem do corpo e da identidade pessoal”: “Essa modificação supõe uma ruptura, produzida por uma indução, ao término da qual o sujeito entra num estado segundo Perlongher” [1990], p. 78).

Ou seja, o que vai aí suposto é a caracterização de certas substâncias, ilícitas ou não, como agentes passíveis de produzir uma sensível alteração orgânica e psíquica àquele que experimenta. Uma alteração tal que é capaz de provocar uma “ruptura”. Ora, romper diz respeito a desafiar a estabilidade das coisas dadas. Tal estabilidade social tem a ver com um modo específico de perceber o tempo, o espaço e o corpo, de conceber uma consciência e uma identidade própria, aquilo que dá à noção e à prática de vida social um caráter de vida e de social. Poder-se-ia objetar que essa estabilidade é condição mínima para qualquer vida social de qualquer grupo humano. Decerto que sim, mas será preciso notar a centralidade que a idéia de estável alcança entre nós e, sobretudo, o modo como ela se realiza na dinâmica dualista entre Natureza e Sociedade, esses dois pólos purificadores que a modernidade criou (e foi por eles criada) para justamente gerar a estabilidade.

Como marcador do instável, o placebo dá a medida para a estabilidade bioquímica do medicamento em teste nos laboratórios contra-placebo. Simetricamente, as drogas não medicamentosas, como os psicoativos ilícitos, permanecem no reino do instável. Elas são então percebidas como geradores de instabilidade – no caso, de instabilidade psíquica e social. Elas ferem uma consciência social que, como tal, deve estar internalizada no indivíduo, a tal ponto que o individual e o social se confundam. Como se diz, a liberdade de um termina na liberdade do outro. Ou seja, a liberdade individual deve ser exercida desde que não invada a do outro – desde que não ameace, portanto, os parâmetros sociais que, a um só tempo, permitem e restringem a liberdade. É que, assim como a Natureza deve ser estabilizada nos laboratórios científicos, a Sociedade deve permanecer estável pela política. Ciência, política e mercado se afirmam e se regulam mutuamente pela estabilidade. Não por acaso seja tão comum abrir os jornais e flagrar diariamente expressões como “mercado estável”, “situação política estável”

ou ainda alguma notícia sobre o sucesso de algum laboratório que finalmente conseguiu estabilizar o comportamento de um vírus ou de um medicamento em teste.

O placebo ou sugestão permanece instável porque corpo e doença são hegemonicamente percebidos como entidades e fenômenos inscritos no regime naturalista, segundo o qual o corpo é uma entidade animal e seus eventos respondem portanto a causas naturais. Sendo assim, o efeito sugestão, embora seja também percebido como um fenômeno de componente natural, uma vez que é humano, ele não é puramente natural, justamente porque é humano e, portanto, variável, arbitrário, sujeito a inconstâncias da psique individual. É que o humano é um ser de cultura, este domínio próprio da Sociedade. Ora, o naturalismo que funda a cosmologia moderna é um mononaturalismo, isto é, a base universal que permite o multiculturalismo. Pois esse mononaturalismo, aplicado à identidade e à alteridade do gênero humano, reza que todos os humanos têm uma base natural idêntica e se diferenciam pela cultura – donde o relativismo cultural. Essa concepção do homem como a um só tempo natural e cultural funda em laboratórios de teste de medicamentos a metodologia contra-placebo, a razão para purificar entre a “má razão” (efeito placebo ou sugestão) e os efeitos puramente bioquímicos, isto é, mais pronunciadamente naturais, por assim dizer. É como se, nesses laboratórios, se tentasse regressar para um estado humano pré-cultural, em que apenas o corpo agisse e reagisse como um agente autônomo. Uma vez que se atinja esse objetivo (mas vimos o quão rapidamente frágil revela-se esse empreendimento quando a droga sai do ambiente ensaiado do laboratório e reencontra a diversidade das situações), então o medicamento em teste alcança um estatuto universal e está pronto para ser sintetizado e enfim lançado no mercado; estará disponível e será potencialmente eficaz para todos os corpos humanos que estejam acometidos de uma mesma doença – ou de um suposto mesmo.

Tomar o placebo como um “vazio terapêutico”, conforme a designação técnica, já denota claramente o desinteresse (oficial, médico, político, mercadológico) sobre esse modelo terapêutico cujo mecanismo, penso, pode ser equiparado ao da “eficácia simbólica”, assim denominada por Lévi-Strauss a propósito de uma parturiente indígena Cuna, grupo do Panamá, que se submeteu à cura xamanística por não conseguir dar à luz.27 Nesse caso, a doente revive no corpo encenações de agentes míticos. Os repetidos cantos do xamã tratam de narrar o périplo em busca do purba (alma da jovem parturiente) apreendido por Muu, “potência responsável pela formação do feto.” Todo o esforço é por fazer corresponder a idéia à fisiologia. Nas palavras de Lévi-Strauss (1996, p. 221), “representações psicológicas determinadas são invocadas para combater perturbações fisiológicas, igualmente bem definidas”.

O caso é que sem a experiência íntegra e inequívoca da mulher – situação que exige dela total engajamento –, o drama estará fadado ao fracasso. O êxito terapêutico depende dessa

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