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A história da consciência de s

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 68-71)

A história da consciência humana, inclusive da própria noção da individualidade, é uma história não somente psicológica, mas social, pois as formas de consciência nascem, desde a pré-história, na interação humana, da qual a linguagem é a principal conquista. A consciência é, pois, através da linguagem, um produto histórico e coletivo. A representação cultural da consciência foi cristalizada em muitas formas psicológicas e mitológicas em cada época e civilização. No século XIX, surgiu a idéia de que o animismo seria uma forma elementar da religiosidade que refletiria a projeção para toda a natureza das instâncias do espírito humano, conhecidas inicialmente como vigília, sono, sonho e efeitos de drogas. Na representação do todo comunitário encontrar-se-ia a matriz das formas de representação da auto-consciência como uma instância coletiva, uma espécie de “mente grupal” que reconhece na comunidade o sujeito da identidade particular de cada um dos seus membros.

A emergência do individualismo como modelo de representação da consciência de si, da subjetividade, tem raízes antigas, mas permaneceu marginalizada num mundo encantado em que as formas místicas encarnavam o ser humano em divindades e as instâncias religiosas governavam todas as formas de saber e experiência existencial. Apenas na época moderna surge de forma acabada o atomismo subjetivo, a idéia de um ser autônomo e encapsulado, em cujo interior brilha uma luz própria da razão que, projetada sobre o mundo e sobre si mesma, pode revelar as verdades do mundo e refletir criticamente sobre a própria instância subjetiva. A origem desse modelo de subjetividade, que alcançará a máxima florescência na época moderna, pode ser buscada, mais profundamente, nos alicerces da cultura ocidental. Diversos autores destacam o fato de que os gregos do período homérico ainda não possuíam uma noção de “alma”. Dodds, em Os Gregos e o Irracional, mostra como a estrutura psíquica dos heróis da Ilíada não era centralizada, focalizada, nuclearizada: “O herói homérico não tem qualquer concepção unificada daquilo a que chamamos ‘alma’ ou ‘personalidade’” (1984, p. 24).

Os gregos de então viviam sob a influência permanente do que Dodds (1984) chama de “intervenções psíquicas”. Uma das principais era a “experiência de tentação ou de loucura divina”, que é como ele traduz o conceito grego de atê:

a atê é sempre, ou quase sempre, um estado de espírito – um obscurecimento ou confusão temporária da consciência normal. De fato, é uma loucura parcial e temporária; e, como qualquer loucura, é atribuída não a causas fisiológicas ou psicológicas, mas a uma potência “demoníaca” externa. Na Odisséia diz-se realmente que um consumo excessivo de vinho origina a atê; a implicação, contudo, não é provavelmente a de que a atê pode ser produzida “naturalmente”, mas a de que o vinho tem algo de sobrenatural ou demoníaco (1984, p. 12).

A noção de pessoa é, portanto, uma instituição cultural, cuja constituição, até a sua versão atual, pode ser registrada historicamente. Sua origem é nova, surgindo como um conceito filosófico no mundo helênico: o conceito de sujeito. A autoconsciência do homem conheceu diversos modelos de subjetividade, de representação da idéia da alma.

Émile Durkheim buscou nas que eram consideradas as mais primitivas de todas as religiões, as “formas elementares” que servissem de fundamento para a definição precisa do conteúdo do fenômeno religioso, para além de todas as suas formas específicas. E o conteúdo da “força religiosa” é “a força coletiva e anônima do clã [...] deus é apenas a expressão figurada da sociedade [...] talvez não exista representação coletiva que não seja delirante, em certo sentido” (1989, p. 277, 282-283). O estado de identificação extática com a coletividade e o auto- reconhecimento de si mesmo como parte de um todo seria a base das formas religiosas, incorporando tanto aquelas representações “naturistas”, em que as idéias religiosas derivam das forças da natureza, como as representações “animistas”, em que a idéia do duplo é sugerida pela dupla vida do sono e da vigília, assim como por outros estados de insensibilidade temporária além do sonho, como são a síncope, a apoplexia, a catalepsia e o êxtase. As representações de si nascem da religião. “Os teóricos do animismo” – escreve Durkheim – “prestaram importante serviço à ciência das religiões e à história das idéias, submetendo a noção de alma à análise histórica. Em vez de a considerarem [...] dado simples e imediato da consciência, consideravam- na [...] produto da história e da mitologia” (1989, p. 38).

Diversos historiadores investigaram a formação ou emergência de um modelo de subjetividade historicamente datado, no alvorecer da época moderna, durante o período que se convencionou chamar de Renascimento. Na segunda metade do século XIX, Burckhardt (1973, p. 107) já afirmava que a essência do período renascentista foi o surgimento do homem como indivíduo, pois se, na Idade Média, o homem “apenas se conhecia como raça, povo, partido, corporação, família ou sob uma outra forma geral e coletiva”, na Itália quatrocentista, “desenvolve-se o aspecto subjetivo; o homem torna-se indivíduo espiritual e tem consciência deste novo estado”.

A noção de consciência de si como identidade, que define a constituição de qualquer sujeito, foi decisiva para a teoria social assim como para as ciências humanas em geral. Mas tais conceitos chaves – identidade, sujeito, consciência – não se articulam apenas na esfera da auto-representação racionalmente consciente, conforme o sujeito filosófico da modernidade se postulou. A questão da consciência, individual e social, da identidade e da subjetividade também traz ao debate os aspectos não conscientes ou subconscientes na formação da subjetividade moderna, em particular em seus determinantes morais. Sigmund Freud, médico, criador da psicanálise; Norbert Elias, sociólogo; e Mikhail Bakhtin, filólogo, lingüista e crítico literário, são alguns dos principais historiadores da formação da subjetividade moderna e dos primeiros a alertarem que a individualidade psíquica é sempre um processo social e histórico. “As pessoas” – escreve Elias no prefácio de 1968 à sua obra O Processo Civilizador, escrita em 1938 – “elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, apenas como pluralidades, como configurações” (1990, p. 249). Longe do atomismo subjetivo do cogito cartesiano, a subjetividade, nesses autores, é fissurada, facetada e fragmentada.

O modelo moderno de subjetividade, constituído no decorrer dos séculos XVI ao XVIII, caracteriza-se, muito diferentemente da efervescência arcaica onde se origina a religião, pelo encapsulamento. O “homo clausus”, conforme a expressão de Elias, é o modelo de subjetividade da época moderna:

A idéia do ´ser encapsulado`, conforme já dissemos, constitui um dos leitmotifs recorrentes da filosofia moderna, desde o sujeito pensante de Descartes, às mônadas sem janelas de Leibniz, e ao sujeito kantiano do pensamento (que nunca pode romper inteiramente sua concha apriorística para chegar “à coisa em si”), até o prolongamento mais recente da mesma idéia básica, o indivíduo inteiramente auto-suficiente [...] Este tipo de percepção parece óbvio, um sintoma do estado humano eterno, parece ser simplesmente a autopercepção, normal, natural e universal de todos os seres humanos. A concepção do indivíduo como homo clausus, um pequeno mundo em si mesmo que, em última análise, existe inteiramente independente do grande mundo externo, determina a imagem do homem em geral [...] Esta autopercepção também se encontra, em forma menos racionalizada, na literatura de ficção - como, por exemplo, no lamento de Virginia Woolf sobre a incomunicabilidade da experiência como causa da solidão humana (1990, p. 238, 242, 245).

Essa identidade do sujeito psíquico, que se constitui tanto como um modelo de abstração filosófica conceitual como na autoconsciência imediata e operacional das pessoas concretas, nasce, assim como a filosofia moderna, num passado grego mais distante. Elias investigou o momento de consolidação dessa identidade em uma escala mundial e oficial a partir de um estudo dos textos morais e de boa-conduta do século XVI, mostrando, a partir de fins da Idade Média e princípios da Renascença, “uma mudança particularmente forte no autocontrole individual - acima de tudo, o fortalecimento de um autocontrole que atua independentemente de agentes externos como um automatismo auto-ativador, reveladoramente chamado hoje de ‘internalizado’” (Elias, 1990, p. 238).

Esse “foco central da alma”, “lugar hipostático da pessoa”, foi uma construção cultural da modernidade. A civilização ocidental constituiu um modelo de subjetividade baseado na introjeção de fortes controles emocionais. Nas palavras de Horkheimer(1983, p. 112), “o intelecto autocrático que se separa da experiência sensível para subjugá-la”.

O auto-controle, o policiamento e a vigilância permanente de si próprio eram a tecnologia disciplinar que as práticas confessionais e penitenciais desenvolveram de forma exacerbada a partir do Concílio de Trento. Como comentam esses agudos críticos do modelo de subjetividade e de racionalidade da sociedade contemporânea que são Max Horkheimer e seus companheiros da Escola de Frankfurt,

a humanidade teve que infligir-se terríveis violências até ser produzido o si-mesmo, o caráter do homem idêntico, viril, dirigido para fins, e algo disso se repete ainda em cada infância. O esforço para manter firme o eu prende-se ao eu em todos os seus estágios e a tentação de perdê-lo sempre veio de par com a cega decisão de conservá-lo (1983, p. 110).

Tal sujeito não foi plasmado sem resistências. Bakhtin (1987) foi um dos que mostrou a característica anti-oficial da cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Neste último período, exatamente, em que se constitui o “modelo de subjetividade moderno”, manifesta- se, também, – em oposição à centralização do individualismo burguês e à formação de um

homo clausus, encerrado na cápsula de si mesmo e resistente a todas as refrações do seu ego

nos espelhos distorcidos do corpo social, – a imagem de um corpo sem limites, de um corpo grotesco, risonho e nunca definitivo, sempre permeável aos demais corpos e à natureza num metabolismo interagente. No universo rabelaisiano, analisado magistralmente por Bakhtin, subsiste a sabedoria de perder-se de si próprio, sair do foco axial do indivíduo para mergulhos de arrebatamento.

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 68-71)