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Narcotráfico e as prisões sem muros

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 101-105)

Zygmunt Bauman, em seu recente ensaio Vidas desperdiçadas, dedica-se a pensar como a construção da ordem e do progresso econômico contemporâneos não poderiam ter acontecido sem “a produção de ‘refugo humano’, ou, mais propriamente, de seres humanos refugados” que são “excessivos” ou “redundantes” para o presente capitalismo global (Bauman, 2005, p. 12). Segundo o sociólogo polonês, a velocidade da economia globalizada integra partes do mundo, mas simultaneamente gera contingentes populacionais imprestáveis à lógica do capitalismo porque são, a um só tempo, consumidores imperfeitos (sem capacidade de compra dos bens comercializados) e figuras perigosas (porque pobres, imigrantes, desocupados, marginais). São pessoas sem função econômica, desnecessárias à economia mundial e permanentemente suspeitas por estarem de fora. O problema, no entanto, é que tais grupos não estão sempre “lá fora”: eles são gerados e se multiplicam nos centros urbanos ou pressionam as fronteiras dos “continentes-fortalezas” (Bauman, 2005, p. 79), a União Européia e os Estados Unidos, o que evoca a figura de bárbaros modernos, prestes a emergir das terras ignotas do além-império (Rufin, 1996). Estão “dentro” ou querem estar, fato que mobiliza reações de preservação ou proteção dos “internos” contra os “refugados”. Nesse cenário, nas metrópoles espalhadas pelo globo e nos Estados desenvolvidos, o que se vê é o crescimento do medo: medo do “lixo humano”, medo de se transformar em “lixo humano”. Num movimento complementar, a retirada do Estado do campo econômico, conforme as premissas neoliberais, teria contribuído, para Bauman, no sentido de produzir mais “refugo humano” e maiores incertezas entre aqueles que não foram refugados, mas que não têm garantia alguma de que a globalização não os arremessará à obsolescência.

Nesse ponto, é relevante a problematização de Bauman sobre como o recuo do Estado de Bem-Estar Social nos países desenvolvidos, a partir de finais dos anos 1970, desencadeou uma crise de legitimidade desse Estado a partir do momento em que ele não mais poderia cumprir sua tarefa de minimizar os impactos do mercado e assistir a todos (produtivos ou não). Sem o bem-estar, qual seria a necessidade de Estado? Como resposta, Bauman aponta que “tendo eliminado ou reduzindo grandemente sua interferência na insegurança produzida pelo mercado [...] o Estado contemporâneo deve procurar outras variedades, não-econômicas,

de vulnerabilidade e incerteza em que possa basear sua legitimidade” (Bauman, 2005, p. 68). Assim, o Estado reafirma sua razão de ser na necessidade em prover segurança pessoal e ordem social. Do ponto de vista doméstico, evitar a sublevação caótica das hordas de “lixo humano”; do ponto de vista internacional, trabalhar para que a “grande ameaça” atual, o terrorismo, não aja. Seria possível pensar, desse modo, num retorno do Estado à função primeira do Leviatã hobbesiano que era a superação da violência iminente do estado de natureza pela garantia da vida e da propriedade em um Estado civil.

Por fim, agir sobre esses grupos inúteis e perigosos exige conceber uma solução de segurança que passa, hoje, pelos confinamentos ampliados: as prisões como depósitos de refugados (soterrando finalmente toda utopia iluminista sobre o cárcere); os campos de refugiados como duradoura precariedade para os “novos bárbaros” que querem adentrar nos continentes-fortalezas; as favelas, conjuntos habitacionais e periferias do planeta como campos de concentração para “refugos” ou “quase-refugos”: os “depósitos de pobres” na definição de Wacquant (2001b, p. 33).

A guerra às drogas pode ser pensada, então, nos marcos desse fortalecimento de um Estado que deixou de ser “de bem-estar” e passa a ser “penal”, criminalizando explicitamente a miséria (Wacquant, 2001a). Além da positividade como garra para o apresamento de miseráveis dedicados ao pequeno e médio comércio de drogas, o combate ao narcotráfico é via para intervir no comportamento dos “usuários” que são penalizados por seu hábito “escuso”, mesmo com os abrandamentos legais em voga que preconizam “penas alternativas”. O fato de não irem à prisão, resultado das políticas de descriminalização do uso, não significa que os usuários deixem de ser assediados pelas forças estatais ou deixem de cumprir uma pena. Para os pequenos e médios traficantes, em grande parte provenientes das classes pobres e sempre “perigosas”, a eles, “refugos humanos”, cabe a prisão ou a morte no enfrentamento com a polícia ou entre os grupos narcotraficantes.

Estar no depósito de vivos das penitenciárias não é, entretanto, o único modo de se prender alguém. No caso dos traficantes-refugo seu próprio território é uma prisão. A conquista de favelas, morros ou bairros periféricos é uma necessidade operacional de primeira ordem para um grupo traficante. Possuir um território representa para fornecedores (atacadistas nacionais e internacionais) segurança na receptação, armazenamento e venda, o que garante a remuneração do negócio, e para os consumidores, relativa proteção para a compra e o uso. Por exemplo, a violência cotidiana entre facções traficantes nos morros cariocas ou nas periferias paulistas se explica, em parte, pela necessidade de contar com uma expressão territorial.

Aqueles aclamados pelas seções policiais dos jornais como “grandes líderes” do tráfico em determinado bairro ou favela são chefetes efêmeros, que ascendem a tal posição muito jovens e são presos ou mortos pouco depois. São, para o funcionamento do tráfico, descartáveis. Suas posições é que são importantes, mas nelas cabem muitos. E são inúmeros os candidatos

(Batista, 2003). Traficantes como esses, freqüentemente apresentados pelos discursos midiáticos, governamentais e mesmo acadêmicos como inimigos da ordem, pouco podem fazer fora dos limites de seu território. Se da prisão comandam algo, dela dificilmente saem ou nela têm vida curta. Se ousam circular em ambientes que lhes são vedados, festas requintadas ou hotéis luxuosos, causam grande escândalo e são alvos fáceis para a polícia ou rivais. Estão presos ainda que não encarcerados, assim como presas estão as classes médias e altas aquarteladas nas zonas centrais ou de alto padrão das cidades. Em tempos de apoio maciço à política de tolerância zero e de recrudescimento das políticas de segurança, o tráfico de drogas segue sendo um “crime interessante” porque produz alvos em profusão, entre jovens consumidores e entre jovens negociadores de psicoativos ilegais.

Na guerra interminável que atravessa a sociedade, o combate ao narcotráfico, ou “às drogas” de forma genérica, emerge como um importante instrumento de sustentação para a eficácia dessa guerra. A contenção de grupos ou classes “perigosas” é potencializada pela repressão ao tráfico, atividade amplamente recriminada do ponto de vista moral por eleitorados cada vez mais amedrontados que clamam por “mais Estado”, o que hoje quer dizer, lembrando Bauman (2005), mais polícia e mais repressão. O tráfico, crime hediondo entre nós brasileiros, é pleno de positividades como arma na guerra pelas sujeições de “desviantes” e “ameaçadores da ordem”. A proibição, estatuto mundial no tratamento do tema das drogas psicoativas, é um fracasso vitorioso: na impossibilidade de chegar ao fim, a guerra às drogas se renova constantemente. Psicoativos novos e antigos continuam sendo produzidos, comercializados e usados, dando provas da mobilidade dos grupos dedicados ao tráfico que escapam ou se readequam às sempre reeditadas políticas repressivas. A pergunta sobre por que manter uma guerra perdida pode ser respondida, ainda que parcialmente, ao repararmos nessa potente tática de controle social e perseguição seletiva que é a guerra às drogas. Quem defende o proibicionismo como modo eficaz para lidar com a “questão das drogas” transita por discursos médicos, governamentais e moralistas ou caminha determinado na poeira de muitas outras batalhas que não têm como objetivo, pura e simplesmente, a erradicação de substâncias específicas e das práticas sociais a ela relacionadas, mas a manutenção de uma guerra infindável.

Notas

1 A Lei Seca foi revogada, por outra emenda constitucional, em 1933, no governo de Franklin D. Roosevelt, em meio às medidas de enfrentamento da crise econômica derivada da quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929.

2 A partir dos anos 1980, principalmente na Europa ocidental, passou-se a ensaiar formas diferentes da simples repressão policial ao uso de psicoativos, num processo bem representado pelo surgimento das políticas de redução de danos. Nascidas na Holanda, em meados da década de 1980, as políticas de redução de danos partem do pressuposto de que os consumidores não deixam de fazer uso de suas drogas de predileção pelo fato de serem proibidas; em conseqüência, o proibicionismo não só não inibia o uso, como criava pautas de utilização de drogas mais prejudiciais à sua saúde que as drogas em si. Estigmatizados e perseguidos, os consumidores entrariam em circuitos que auxiliariam a disseminação de outras doenças como a AIDS transmitida pela partilha de seringas. Os abrandamentos nas legislações européias levam a reformas que descriminalizam o

“usuário” (que não é mais tratado legalmente como criminoso) e enrijecem penas para os traficantes. Ilustra essa tendência a reforma portuguesa de 2002 que abranda penas para consumidores, mas sustenta o proibicionismo e a repressão ao mercado de psicoativos ilegais.

3 A Convenção Única foi emendada e atualizada principalmente pelo Protocolo sobre Psicotrópicos de 1971, que acrescenta ao rol de substâncias proibidas drogas psicodélicas (como o LSD) e a Convenção de Viena, de 1988, que apresenta a necessidade de implementação de projetos, como o de substituição de cultivos ilícitos (matérias-primas para drogas ilícitas), tendo em vista inibir o tráfico de drogas em Estados tidos como “mais vulneráveis” ao tráfico de drogas.

Referências

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Fonte: BONNIE; WHITEBREAD, 1999.

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 101-105)