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O placebo, o arrombador biológico e o elo intermediário

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 159-165)

O efeito placebo ou sugestão é a “má razão”, conforme jargão tecnocientífico, contra a qual se erguem os laboratórios precisamente denominados contra-placebo.4 Se somos levados a conceber esse efeito como uma expressão direta da subjetividade humana,5 entendo contudo que essas idiossincrasias do paciente em teste (fonte do efeito placebo) somente surgem frente ao esforço científico de objetivação do corpo – esforço por igualmente objetivar a doença e o medicamento, que devem ser generalizados para, assim, atender a um mercado impessoal da

saúde. Ou seja, quanto mais se busca objetivar, mais a subjetivação se manifesta. Um cria o outro. Como em Latour, quanto mais se purificam, mais se proliferam os híbridos6 – esta é portanto uma manifestação simultânea e simétrica.

Na prática laboratorial, essa manifestação singular da sugestão aparece como um dado que, no entanto, deve ser depurado e expurgado da “molécula medicamentosa” em teste. Por isso o efeito placebo fornece a medida puramente medicamentosa, isto é, purificada,7 segundo um padrão típico de paciente. Noutras palavras, diz Pignarre, todo esforço consiste em fazer “do efeito de sugestão um grau zero a partir do qual identificar e qualificar um efeito terapêutico suplementar”(1999, p. 22).

No caso do teste placebo, trata-se da tentativa de estabilizar a ação farmacológica, separando-a portanto das manifestações individuais – ou, se quisermos, psicofisiológicas. É que “o medicamento esconde dentro de si – argumenta Pignarre – uma mistura em parte estabilizada, constituída por uma molécula ativa (biologicamente) e efeitos de sugestão, sem que se tenha os meios de discerni-los, por definição” (Pignarre, 1999, p. 31-32). Numa palavra, a concepção oficial da separação (ou a purificação latouriana) esbarra-se na insistente e oficiosa realidade prática da mistura (ou a hibridização, segundo o mesmo autor). Mas a hibridização, repita-se, é produto desse esforço purificador. Um só existe em função do outro. O esforço purificador é o que produz incessantemente os híbridos (mistura de natureza e cultura, quase-sujeitos, quase objetos, na terminologia de Latour).

Como, pois, purificar ou separar essa ação que se quer eminentemente bioquímica? No laboratório contra-placebo, técnicas como “em duplo-cego”, por exemplo, são aplicadas para negligenciar não apenas ao paciente, mas também a quem ministra o medicamento, a natureza da molécula em teste – se o que está sendo testado concentra puro valor químico, o “arrombador biológico”, ou se ainda contém um “vazio terapêutico”, o placebo, que consigo traz um efeito instável, sempre particular ou individual, sempre contextual e subjetivo.8 Isto é, o duplo-cego é um dos mecanismos utilizados para se eliminar os pacientes altamente placebo-respondedores. A “operação de descontextualização”, de que fala Pignarre, enquadra os pacientes na noção de

casos de uma determinada doença, assim estabilizando-se o diagnóstico para se prognosticar

uma terapia igualmente estável – e, portanto, universal. O que se pretende é fazer com que os fatores subjetivos sejam depurados (porque são assim concebidos como passíveis de serem separados) dos fatores que se querem quimioterapêuticos. Trata-se, a todo custo, de fazer com que o medicamento produzido no laboratório alcance um estatuto terapêutico genérico, universal – que portanto seja igualmente eficaz em qualquer contexto, a despeito de qualquer ingerência subjetiva.

Ora, essa base universal é premissa fundadora do mononaturalismo9 que caracteriza a cosmologia moderna.10 Voltarei a essa premissa adiante, mas, por ora, notemos que, entre a terapêutica e as causas das doenças (etiologia), subsiste, na farmacoterapia, isto que Pignarre

denomina o “elo intermediário”, eivado de fatores humanos de dificílima estabilização.11 É que entre a invenção no laboratório e a circulação ou uso socialmente convencionado do medicamento no mercado de saúde, ocorre um verdadeiro “salto no desconhecido” (Pignarre 1999, p. 129). Daí que “quanto mais se quiser levar a sério o medicamento como marcador biológico, mais difícil será dar-lhe uma definição estabilizada.” (1999, p. 125)

Eis o verdadeiro dilema da medicina ocidental moderna. Criou-se uma maquinaria que impede a explicação de tudo que se agrupou sob a expressão mutilante ‘efeito placebo’: seja remetendo-o à relação médico-doente e fazendo desaparecer sua especificidade de ser produzido pelo objeto medicamento e de não ser dissociável dele, seja remetendo- o a um resto que acompanharia a molécula, único verdadeiro objeto conhecível substancialmente quando toma a forma de um arrombador biológico (Pignarre, 1999, p. 47).

De fato, esse trabalho hercúleo de depuração medicamentosa cria a dificuldade de se estabilizar variáveis como subjetividade, contexto, ambiente ou interação, esse emaranhado que explicaria a variação biopsíquica de cada paciente.12 Se são variáveis reais no sentido substancialista, isto é, se existem desde sempre per si, independente e isoladamente, como expressão de uma Natureza anterior, transcendental, fora e acima da realidade social, isto pouco importa – senão a uma filosofia igualmente transcendental.13 O que importa a uma prática de produção do mundo é que essas variáveis aparecem quando o trabalho de purificação das ciências (que isola agentes físicos e biológicos) tem início nos recintos laboratoriais. São portanto variáveis forçadas a se manifestar, e com as quais, ou contra as quais, será preciso lidar.

A tarefa não é nada fácil. No caso da produção de medicamentos, eliminar o placebo pode ser uma conquista alcançada árdua e longamente no interior do laboratório. Sim, mas uma vez que a molécula reencontra no mercado as variáveis das quais tinha conseguido se separar num nível minimamente aceitável, eis que então a sugestão volta a se manifestar, como um hóspede irremovível e – tão a propósito aqui – irremediável. A generalização laboratorial esbarra-se novamente com a particularidade dos casos. É que os agentes, por mais que as concepções prematuramente formadas do natural e do social os suponham estabilizados, e mesmo os estabilizem em situações controladas em recintos laboratoriais, eles sempre diferem conforme o novo arranjo que criam e no qual, ao mesmo tempo, se inserem – arranjo que também é sempre diferente conforme o momento processual da rede.

Não será por acaso, aliás, que o médico Guilherme Suarez-Kurtz, pesquisador de farmacogênica do Instituto Nacional de Câncer, por exemplo, afirmara que a imensa maioria das dosagens de medicamentos disponíveis no mercado não passa de simplificações grosseiras, já que a dosagem é calculada para funcionar na maior parte da população, mas pode ser excessiva ou insuficiente em diversos casos específicos. Tal retumbante afirmação, segundo a notícia, se tornou pública através da não menos retumbante declaração de Allen Roses, chefe do setor de genética da gigante farmacêutica britânica Glaxo Smith Kline, que disse ao jornal

inglês The Independent, em dezembro de 2003, que a maior parte dos remédios produzidos por sua empresa não atuava como se esperava em mais da metade das pessoas. Segundo ele, mais de 90% dos remédios “só funcionam para 30% a 50% das pessoas”(Remédios..., 2003). O farmacologista Gilberto De Nucci, professor da Unicamp e da USP, além de proprietário de um laboratório em Campinas, afirma em entrevista que “ao menos dois terços dos medicamentos não produzem o efeito desejado”. Ou que 80% dos medicamentos simplesmente não funcionam. De Nucci observa ainda que “os melhores estudos clínicos mostram que, para 90% da população, os remédios não produzem benefício nenhum ou que raramente há benefício. E que a porcentagem dos pacientes que se beneficiam é muito pequena, às vezes 2% ou 3%” (De Nucci, 2004).

Embora De Nucci seja ele mesmo, como empresário do ramo, um grande interessado no sucesso e na eficácia dos produtos sintetizados em laboratório, ele não negligencia que “existe um efeito placebo”, embora ressalve que “isso não significa que esse efeito não seja bom.” Diz ele, na mesma entrevista:

Veja o caso dos anti-histamínicos. Se a pessoa é picada por pernilongo e está com coceira, você diz: ‘Toma logo o remédio senão não faz efeito’. A coceira passa antes de o medicamento ser absorvido, perde-se o remédio. Isso é complexo. Existe a noção de que medicamento é algo bom, mas, quando se procuram as evidências, poucas classes de drogas são eficazes (De Nucci, 2004).

Ora, parece claro que o placebo instala o problema da variabilidade constantemente rebelde ao comportamento-padrão ou à estabilização dos agentes (medicamento e paciente) quando estes entram novamente em interação no mercado. Para Luiz Eugenio de Moraes Melo, médico e professor de fisiologia da Universidade Federal de São Paulo, o placebo, embora “observável”, é “difícil de estudar”,14 já que sua base assenta-se em “crenças”, “desejos”, “fé”, “condicionamento”, “expectativa”. A tentativa para explicar o placebo acaba recaindo, como de regra, na chave substancialista. É a Dopamina (C8H11NO2), um mediador químico presente nas supra-renais e indispensável à atividade normal do cérebro (e cuja ausência provoca a doença de Parkinson), que é chamada a fazer as vezes: “O que a gente sabe é que a Dopamina é essencial ao efeito placebo em diversas circunstâncias (Informação Verbal) .”15

Contudo, seguem as dúvidas sobre as condições em que a Dopamina entra em ação, qual seu efeito para tal ou qual pessoa e para tal ou qual doença, quem e por que algumas pessoas se apresentam mais placebo-respondedoras do que outras, como se caracterizam e qual o papel das “diversas circunstâncias”, e por aí afora. Pois que fazer diante dessa impossibilidade de controle e previsão colocada pelo fenômeno manifesto da sugestão? Talvez tirar proveito, ao invés de descartá-lo, fosse a melhor solução. “A gente não sabe como ensinar alguém a ter fé”, diz Moraes Melo. Mas, face à inevitável ocorrência do fenômeno, restam as “perspectivas que vêm sendo exploradas nas pesquisas sobre o efeito placebo”: “se funciona, então podemos diminuir as drogas sintetizadas.”16

Ou ainda buscar superar esse verdadeiro impasse na promessa da terapia gênica. Tal promessa diria respeito a finalmente eliminar o “elo intermediário” entre causa (etiologia) e efeito (terapêutica). Por suposto, de volta a Pignarre, aí também terminaria a função dos laboratórios contra-placebo:

Uma promessa naturalista consiste, segundo nossa definição, em projetar a invenção de terapêuticas que não mais agiriam sobre um elo intermediário das causas e dos efeitos biológicos, mas sobre o gene (embora este seja, na maioria das vezes, apenas um co-fator em numerosas enfermidades). Ela dá a entender, portanto, que o laboratório do estudo contra-placebo poderia tornar-se inútil (Pignarre, 1999, p. 75-76).

Tal promessa diria respeito, portanto, a atingir o que se considera a causa última das doenças, ou pelo menos daquelas classificadas como fortemente genéticas, ainda que os genes não passem de “co-fator” (como já anotara Pignarre) na manifestação dessas doenças.17 De fato, noções relativamente recentes ou revisadas de ambiente e interação

gênica, assim como o papel das proteínas, põem em cheque a idéia de que para cada gene

corresponda um traço. O esperado era que a genética cumprisse o passo médico-científico definitivo que, de uma vez por todas, tornaria obsoletos os laboratórios contra-placebo. Aquele “elo intermediário” que se interpõe à objetividade medicamentosa da molécula em síntese – o efeito puramente bioquímico subtraído da prova contra-placebo – desapareceria com o advento da terapia genética. Para a quimioterapêutica, o medicamento ingerido funciona como o elo para estimular o organismo a reagir contra a doença. Para a farmacogenética, este elo será eliminado, pois a doença seria tratada na própria fonte, os genes e sua dinâmica com as proteínas, aplicando-se técnicas como a da transgenia ou a permutação de seqüências de DNA entre organismos, por exemplo.

Atacar o que seriam as causas finais dessas classes de doença é alvo privilegiado da pesquisa genômica, e certamente a maior justificativa dos técnicos, cientistas e políticos para se negociar, junto à chamada opinião pública ou nas próprias instâncias institucionais de poder e financiamento, questões religiosas e denominadas bioéticas, como as que envolvem a pesquisa de células-tronco embrionárias ou a clonagem.18

Mas mesmo os medicamentos tradicionais (isto é, aqueles que devem passar pela prova dos laboratórios contra-placebo) não serão, ao menos por ora, substituídos pela terapêutica genômica, senão combinados a ela. É que a formação gênica de dado indivíduo ou de dado recorte racial19 influenciaria diretamente a eficácia dos medicamentos. Variantes individuais do mesmo trecho de DNA poderiam fazer com que o organismo de um doente absorvesse o remédio ou rápido demais ou muito devagar, o que exigiria doses maiores ou menores. Em alguns casos, seria totalmente ineficaz ou mesmo letal ministrar certo medicamento a um segmento da população. O grupo étnico de certo indivíduo teria aí papel decisivo, já que os povos do planeta estiveram sujeitos a ambientes e doenças distintos ao longo dos séculos ou mesmo milênios. Assim, adaptaram-se a tais ambientes por meio de alterações bioquímicas

muito sutis – e no entanto decisivas, ao que bem parece. Não reside aí, pois, mais uma grave fratura no suposto do mononaturalismo?

Assim, se os medicamentos produzidos nesses laboratórios carregam o malquisto efeito placebo que se manifesta no “elo intermediário”, abre-se então a possibilidade de investigação que apure se essa árdua tarefa de “separar o efeito farmacológico puro dos efeitos de sugestão” poderia de fato ser superada pelas pesquisas de terapia gênica. Neste caso, a separação teria alcançado êxito. Livrando-se das injunções híbridas, sempre especialmente renitentes nos fenômenos do corpo, a purificação – sua concepção e prática, tal como propõe Latour – confirmaria seu lastro numa natureza humana de fundo puramente biológico e, portanto, independente de variações psíquicas e sociais. Isolando o nível terapêutico puramente biofísico, como supõe o naturalismo e seu conceito-chave de natural, o universalismo marcaria aí seu cantão de realidade. No entanto, o que o caso do placebo nos mostra é que o “arrombador biológico”, conforme menciona Pignarre, isto é, o efeito puramente bioquímico da molécula medicamentosa, se mostra resistente à purificação estabilizadora e, mesmo uma vez isolado, ele novamente terá que lidar com agências insuspeitas e a volta do efeito sugestão quando reencontra o paciente de carne e osso, sua doença e suas idiossincrasias, no mercado da saúde. É, pois, o que conclui Pignarre sobre essa impossibilidade de se separar a “cura espontânea, cura por efeito placebo e – podemos acrescentar agora – a cura por uma ação biológica, farmacologicamente induzida”. Assim, continua Pignarre (1999, p. 27), “nenhum limite preciso pode ser traçado” entre aquilo que cura (ou não cura) por arrombamento biológico ou por sugestão:

Há um continuum suscetível de mudar a cada indivíduo, a cada molécula e a cada ingestão do medicamento. É dessa incerteza essencial que vai surgir a necessidade de recorrer sempre a um dispositivo estatístico para tratar dados destinados a permanecerem empíricos (1999, p. 27)

Ou, ainda mais explicitamente, que “nenhum método permite purificar o efeito farmacológico próprio num ser humano vivo, a menos que se suprima tudo o que caracteriza um ser humano vivo” (1999, p. 29)

A prova contra-placebo não é assim uma experiência científica, no sentido em que ela nos permitiria purificar o objeto medicamento, separar o efeito farmacológico puro dos efeitos de sugestão. Isso não significa que contestemos seu rigor metodológico (1999, p. 30).

Certamente que os protocolos de controle e aferição aplicados aos testes contra-placebo devam consumir esforços monumentais dos técnicos de ciência. Esforços que procuram atender à expectativa de grandes investimentos aplicados nesses laboratórios empenhados em criar uma nova substância capaz de se universalizar no mercado e gerar efeitos previsíveis e sempre estáveis. A promessa de eliminação do efeito placebo parece ter como desafio os domínios híbridos, mistos de natureza e cultura, que a antropologia sempre soube descrever – mas sempre com relação aos outros. Entendo que a proposta ligada à Teoria do Ator-Rede20 inclui

centralmente descrever as conexões que os agentes, humanos e não-humanos, estabelecem entre si, ainda antes de se tornarem, no plano oficial da já antiga modernidade, fenômenos purificados – sejam eles da Natureza, sejam da Sociedade.

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 159-165)