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A tristeza e a felicidade químicas

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 80-82)

A depressão passou, nas últimas décadas, não só a ser vista como uma doença de incidência cada vez maior, como a ser considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como a maior causa de incapacidade em países desenvolvidos e a segunda no mundo, superada apenas pela doença cardíaca. A chamada “depressão maior” ou unipolar atingiria cerca de trezentos e quarenta milhões de pessoas. Outras estimativas estadunidenses dão conta de que uma de cada cinco pessoas terá depressão algum dia (Healy, 2003).

Não é nova a designação desse estado como uma doença. Sob o nome de melancolia, perdurou por séculos a idéia de um tipo de temperamento característico do predomínio do humor negro, produzido pelo baço, e que se manifestaria especialmente nos homens de letras, nos sábios e cientistas, dedicados ao saber, cuja posse não traz, necessariamente, a felicidade, mas ao contrário8.

No cristianismo esse estado tornou-se o pecado da acedia, o tédio do spleen (baço, em inglês, órgão do qual se originaria o humor melancólico) que acometia especialmente os monges enclausurados no auge do dia, sendo chamado, por isso, de “o demônio do meio-dia”.

No segundo pós-guerra, em meados do século XX, a invenção de fármacos chamados de “anti-depressivos” representou um curioso contraponto à proibição dos fármacos psicodélicos, também sintetizados na mesma década. Ambos agem sobre certos neuro-transmissores – serotonina, dopamina, noradrenalina –, cuja identificação e início de compreensão de suas funções e atividades vêm sendo descobertas em concomitância com as criações e usos dessas novas moléculas psicoativas. A diferença é que os anti-depressivos agem em doses regulares num longo tempo e tem um efeito discreto e pouco notável enquanto que os psicodélicos agem em doses únicas e possuem um efeito intenso e extraordinariamente notável.

Para aumentar a disponibilidade de serotonina na fenda sináptica adotaram-se substâncias chamadas de anti-depressivas cujas virtudes seriam a melhora do humor e da psicomotricidade, combatendo tanto a síndrome depressiva maior, a doença maníaco-depressiva, a dor psicogênica e estados de depressão com sinais vegetativos (especialmente na senilidade), como quadros de insônia, de obesidade, ou queixas vagas de infelicidade, inclusive com uso pediátrico, para enurese noturna (xixi na cama) ou mesmo a depressão infantil. Entre alguns dos (d)efeitos dessas substâncias estão: a criação de dependência e de síndrome de abstinência caso o uso seja suspenso bruscamente e, além disso, uma gama de efeitos colaterais que vão desde boca seca e prisão de ventre até sonolência, enjôo, tontura, dor de cabeça, aumento de peso e, particularmente, diminuição da libido e até anorgasmia. No caso de muitos anti-depressivos há o risco de suicídio, inclusive com overdose do próprio medicamento.

Os psicodélicos (LSD, DMT, mescalina, psilocibina) e especialmente as metanfetaminas psicodélicas como o ecstasy, provocam efeitos que podem ser descritos, mais do que anti- depressivos, como extáticos ou euforizantes, ou seja, com uma conotação de uso que não é apenas negativa, como remédio que busca corrigir algo, mas sim positiva, como uma pura busca de exuberância, de pleonexia, de intensidades. Estas substâncias foram descobertas e desenvolvidas nos mesmos anos cinqüenta da expansão da indústria psicotrópica, mas diferentemente dos anti-depressivos que se tornaram alguns dos medicamentos mais vendidos no mundo (a fluoxetina, especialmente o Prozac), terminaram proibidas e perseguidas.

A medicalização da tristeza e a construção de uma entidade nosológica – a doença da depressão – inscrevem-se numa vasta empreitada do complexo industrial médico-farmacêutico que hipertrofiou-se no pós-guerra a ponto de torná-lo um dos mais (senão o mais) rentáveis mercados contemporâneos: o das drogas.

Nessa empreitada instalou-se uma ordem baseada no monopólio médico ao direito de uso de drogas em geral e psicoativas em particular. O direito exclusivo de prescrição de medicamentos, inclusive para a alma, é a contrapartida de uma repressão ao uso autônomo, considerado uma prática perigosa devido à falta de competência técnica do consumidor.

A gestão de si, de suas alegrias e tristezas, é uma tarefa existencial e filosófica que não pode ser seqüestrada pela medicina. Decidir sobre sentir ou não as próprias dores e como buscar remédios para os sofrimentos da alma e também sobre quais os limites que constituem para cada um a sua fronteira do excesso, é um direito indissociável da idéia de uma autonomia sobre si, especialmente no que se refere aos recursos tecnológicos para a produção de si.

Há milhares de moléculas psicoativas já sintetizadas ou ainda por se inventar. Esse repertório deve ser tratado como o das substâncias de origem vegetal, mineral ou animal: preciosos tesouros que podem alimentar, curar, levar ao êxtase ou matar. Gerir o seu uso não pode ser atributo exclusivo de especialistas, mas devem ser facultadas a consumidores responsáveis e bem-informados. Como outras tarefas na sociedade (por exemplo, dirigir automóveis), consumir certas drogas exige regras e normas (não se deve fazer as duas coisas juntas, por exemplo). Não se deve consumir de forma que outros sejam obrigados a participar involuntariamente (por exemplo, não fumar em locais públicos fechados). Mas a esfera última de decisão sobre o uso de drogas na gestão da felicidade e da tristeza faz parte do núcleo mais íntimo e essencial da liberdade de escolha, de expressão e de gestão de si.

A depressão que caracteriza a nossa época é contextual, política, ecológica e de causas sociais e econômicas. O mesmo sistema que a cria como principal doença trata-a lucrativamente com drogas que permitem a modulação dos humores e a aceitação feliz das mesmas situações a estarem na origem da depressão, mas proíbe violentamente drogas que elevem o humor até a euforia, com a exceção de uma das mais brutas, perigosas e aditivas, que é o álcool.

LSD, DMT, MDMA são algumas das principais substâncias que podem oferecer instrumentos de êxtase para usos estéticos, cognitivos, psicoterapêuticos, religiosos, sensuais, poéticos ou lúdicos com um potencial muito efetivo no combate à depressão, ansiedade, angústia e outras dores da alma. A diferença entre essas moléculas psicodélicas e os produtos da indústria psicofarmacêutica reside na sua forma de circulação. As primeiras, como drogas clandestinas, são usadas por escolha própria de seus consumidores, que forjam nessa atividade o que Pignarre (1999) denominou de “artes do consumo”, e as últimas, como remédios controlados de prescrição médica, transitam por um circuito que vem dos pipelines dos laboratórios e alcançam a rede distribuidora dos fármacos como produtos de monopólio prescritivo entre os membros da profissão médica. Dois circuitos de circulação das moléculas: um autonômico e clandestino, outro heteronômico e oficial. As substâncias migram de um para outro conforme épocas e regiões – o álcool, por exemplo, foi proibido nos EUA na Lei Seca e hoje não é mais, à exceção de certos países islâmicos; o LSD e MDMA já foram importantes remédios e hoje são proscritos para qualquer tipo de uso –, embora atualmente os controles políticos internacionais exerçam-se através de tratados e normas cada vez mais impositivos, no espírito da “guerra contra as drogas” levada a cabo em todo o mundo pelo unilateralismo imperial.

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 80-82)