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Horizontes utópicos e distópicos

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 84-89)

Além dos apologistas mais entusiastas das potencialidades tecnocientíficas das neurociências associadas com a psicofarmacologia e as tecnologias de comunicação e informática, tais como Timothy Leary, Shulamith Firestone e Donna Haraway, outros autores, como David Le Breton, Paul Virilio e Neal Postman, por exemplo, vêm denunciando, entretanto, que as conseqüências da expansão do uso militar e empresarial das novas biotecnologias e tecnologias da informação podem ser catastróficas, anunciando uma nova etapa ainda mais destrutiva na transformação de recursos humanos e naturais em fonte de rentabilidade para a reprodução ampliada e acelerada do capital.

A indústria da informática e da microeletrônica viveu um boom que alguns apressados saudaram como novo ciclo histórico de crescimento capitalista, mas logo arrefeceram os ânimos após a crise das empresas “ponto.com”. O que é certo é que a ampliação do setor de serviços, a valorização da informação como capital cultural e o boom informático-eletrônico caracterizaram um final de século em que a maior fortuna do mundo encarnou-se no emblemático Bill Gates.

A crença na tecnologia como grande legitimação da ordem contemporânea é apontada por Postman (1994) como a característica central da mentalidade do “tecnopólio”. Num outro viés teórico, o marxista Ernest Mandel (1985, p. 351), utiliza termos semelhantes para afirmar que “a crença na onipotência da tecnologia é a forma específica da ideologia burguesa no capitalismo tardio”. Virilio (1996) identifica na voracidade da velocidade a aceleração das técnicas bélicas, refletindo-se numa cultura da velocidade para qual ele propõe o estudo como o campo de uma “dromologia”, “ciência da velocidade”.

David Le Breton (que já havia escrito uma história do conhecimento anatômico e fisiológico desde o olhar sobre o corpo dissecado no Renascimento), abordou em Adeus ao

intervenções da body art; a gravidez medicamente assistida, com tratamentos de fertilidade e geração in vitro, que criou a existência de uma nova entidade em termos políticos e morais, os espermatozóides, óvulos e embriões; as drogas psicoativas; a manipulação genética; e a realidade virtual e a subjetividade no ciberespaço.

Em todos estes âmbitos, Le Breton observa a presença de um horror ao corpo, uma visão de origem gnóstica e cartesiana que o separa da mente e vislumbra, no limite, a libertação desta última, por meio da máquina, de seu lastro carnal, com a transferência da mente para um computador, o download da mente. Apontando os novos riscos da seleção genética, da manipulação dos genes, da mercantilização da vida, do surgimento de novos “seres” cujo estatuto ontológico e moral nunca antes existira como os embriões, óvulos e espermatozóides congelados mostra como o horizonte da “desumanização” nunca antes esteve tão presente tanto em seu sentido moral metafórico como num sentido biológico estrito.

Na verdade, os temas atuais já impregnam fortemente o imaginário de nossa época, a partir do florescimento da especulação literária que se convencionou chamar de “ficção- científica”, que poderíamos considerar como o gênero emblemático de uma época que mais do que “pós-moderna”, está se tornando “pós-humana”.

As novas fronteiras para o debate sobre as relações da técnica com a experiência da subjetividade incluem a indústria do entretenimento, os meios de comunicação de massa, as redes informatizadas, a multimídia, as drogas psicoativas, as manipulações genéticas, as fusões biônicas entre o biológico e o cibernético e, até mesmo, a esfera das ondas eletromagnéticas, que além de servirem como meio de comunicação através do rádio ou TV, vem sendo pesquisadas como instrumento de intervenção psiconeuronal direta, sem drogas nem cirurgia.9

As relações entre as conquistas tecnológicas e os usos que são delas feitas pelos poderes militares e econômicos que as estudam, as promovem e as governam continuam submetidas à lógicas paranóicas de controle e guerra. Os usos alternativos e rebeldes das tecnologias exigem, antes de tudo, o conhecimento sobre os seus significados e uma clara opção política e moral pela exigência de controle autonômico dos indivíduos e comunidades sobre os seus recursos biológicos, corporais e mentais.

Das tecnologias disponíveis, as drogas são cada vez mais valorizadas, com usos, investimentos simbólicos e de capitais e conflitos de regulamentação que servem para ampliar sua importância cultural, econômica, política e militar. Um projeto emancipatório e autonomista, do espírito e dos corpos humanos, deve levar em conta a reivindicação de livre disposição de si mesmo, do corpo e da mente, como um direito humano fundamental.

Notas

1 Thomas Szasz (1994), especialmente O controle do comportamento: autoridade contra autonomia e Ivan Illich (1975) foram pioneiros em apontar o conflito entre autonomia e heteronomia na prática médica contemporânea, submetida cada vez mais aos primados de uma empresa capitalista expropriadora da saúde que se constitui como uma “farmacracia” na expressão de Szasz.

2 Foucault (2004, p. 323) classifica as tecnologias em quatro grandes grupos principais: as tecnologia da produção das coisas; as dos sistemas de signos; as do poder visando formas de dominação e, finalmente, as tecnologias de si, voltadas para o corpo e a alma.

3 Em Réponse à la question: Ou’est-ce que les lumières, Kant(1989) escreve “Sapere aude! Tenha a coragem de te servir do teu próprio entendimento! Eis a divisa do Iluminismo! [...] Se tenho um livro no lugar do meu entendimento, um diretor no lugar da minha consciência, um médico que julga sobre o meu regime em meu lugar, etc., não tenho necessidade de fatigar a mim mesmo”. (tradução do autor)

4 Pai de Richard Gordon Wasson, um dos mais importantes investigadores de etnomicologia comparada e descobridor, nos anos de 1950, dos cogumelos mexicanos do qual se extraiu a psilocibina.

5 A alienação, na interpretação de Marx, caracteriza a relação do produtor com o seu produto, com o instrumento do seu trabalho e com o saber teórico produtivo, é uma alienação geral, portanto, que governa a reificação do ser humano, nas coisas que o dominam como impulso autoreprodutivo predatório da acumulação do capital.

6 Sevcenko (2001) usa a metáfora do loop da montanha-russa para retratar o espírito da época hiper-contemporânea, na qual um “dinamismo sensorial em turbilhão” invade o mercado das “emoções baratas” com o vício da vertigem dos “transes sensoriais e experiências virtuais de potencialização, multiplicação e superação dos limites de tempo e espaço”, oferecidos “descontextualizados, neutralizados e encapsulados em doses módicas, para uso moderado, nas horas apropriadas”, como um “pendor contemporâneo pela ilusão”, que tornou a indústria do entretenimento e do espetáculo um dos ramos mais florescentes da rentabilização dos capitais e da inovação tecnológica.

7 Nos anos cinqüenta do século passado, Brion Gyson desenvolveu modelos de uma lâmpada cercada de um revestimento giratório com orifícios que projetavam as luzes em ritmos variáveis (Geiger, 2003).

8 Vide o Problema nº 30, de Aristóteles, (Klibansky, R.; Saxl, F.; Panofsky, 1989).

9 E também, num outro âmbito, intervenções na ionosfera com emissões de ondas de alta-frequência para fins de controle ou guerra ambiental, perturbação de comunicações ou detecções geofísicas e, até mesmo, para irradiação ofensiva sobre populações e instalações por meio de emissões refratadas na ionosfera. Vide Armas eletromagnéticas, de Smith, (2005) que trata, entre outros, do projeto High Frequency Active Aurore Research Project (HARRP), atualmente executado pela empresa Raytheon.

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[E/ ou ver também: National Library of Medicine - http://wwwihm.nlm.nih.gov/ihm/images/A/30/144.jpg].

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 84-89)