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discussão a respeito dos saberes médicos sobre

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 142-145)

uso de “drogas”

Maurício Fiore

Há algumas semanas, numa fila de clientes impacientes, a qual eu pertencia, reclamava- se da demora no caixa de um supermercado. O motivo do atraso, logo descobri, era uma senhora que havia pedido dois pacotes de cigarros, o que obrigou um dos funcionários a ir a outro balcão. Quando comentei com meu colega de fila logo à frente sobre o problema, este respondeu com irritação: “Pacotes de cigarros deveriam vir com uma garantia: ‘morra de câncer em dois anos!’” Respondi com um tímido chacoalhar de cabeça para não alongar a conversa que mal começava (e começava mal). A seguir, fiz um inventário do cesto de compras do cliente radicalmente anti-tabagista que exibia uma barriga protuberante: três pacotes de salgadinhos, presunto, queijo, dois refrigerantes, um chocolate. Enquanto me vingava silenciosamente pensando na sua contraditória intolerância aos fumantes, ele me interrompeu: “Você pode guardar o meu lugar na fila para que eu pegue mais um pacote de salgadinho?”

A descrição desse episódio prosaico não tem o objetivo de denunciar a contradição entre os hábitos alimentares do meu interlocutor e a sua aversão pelo tabaco, ainda que isso tenha ocorrido indiretamente. Pelo contrário, meu olhar de censura para o cesto é um indicativo de um confronto entre duas leituras antagônicas, mas possíveis, da enxurrada diária de prescrições médico-científicas veiculadas pelos meios de comunicação para que se alcance uma vida mais “saudável”. De um lado, alguém que percebe no hábito de fumar tabaco o caminho certo para uma morte precoce. Eu, por outro, reflito silenciosamente e relaciono o sobrepeso do meu interlocutor à enorme quantidade de gordura e colesterol de seu cesto de compras (provavelmente associada a uma vida sedentária – concluí de maneira ainda mais cruel e arbitrária). Duas interpretações possíveis mais ou menos informadas pela veiculação daquilo que se pode chamar, grosso modo, de saberes médicos.

A inspiração para o uso dessa noção vem do sentido dado a ela por Michel Foucault, que entende os saberes como um conjunto muito mais amplo de articulação entre conhecimento, disciplina e poder. No caso da medicina, Foucault combateu o pressuposto de uma espécie de “história natural da disciplina”, ou seja, uma forma de decorrência histórica do conjunto universal de teorias e práticas sobre o corpo humano e os males que o afetam que evoluiu cronologicamente até que, enfim, atingisse o estágio contemporâneo definitivo – um campo

do conhecimento pautado pelo método científico. Embora essa última assertiva não seja falsa, está presa ao pressuposto de que o sujeito é aquele capaz de conhecer a verdade da natureza; para Foucault, essa concepção ignorou o fato de que os saberes classificam, separam e hierarquizam o conhecimento sobre o mundo; são, enfim, um campo de forças em perpétua contraposição.1 Os saberes são regimes de verdade, e os saberes médicos se edificaram sob o terreno movediço das verdades a respeito da vida e da morte, do normal e, principalmente, do patológico. Por isso mesmo que, do ponto de vista foucaultiano, não há saber que não engendre relações de poder. No entanto, é bom que fique desde logo claro, não se compartilha nesse texto de uma perspectiva niilista ou, tomando emprestado os termos de Latour (2001), uma visão “construtivista” do conhecimento científico: todos os saberes são articulados com a realidade em que são produzidos porque também a produzem; os saberes constroem e explicam o mundo e impõem a ele a sua materialidade. Enfim, não se coloca em dúvida a eficácia dos saberes justamente porque neles estão contidas suas positividades.

A idéia de positividade, no entanto, pode ser mal interpretada. Obviamente, se estamos lidando com a obra de Foucault, não podemos confundi-la com um juízo de valor ou uma propriedade imanente, o que seria equívoco capital. Não se trata de dizer que os saberes médicos são eficazes e, dessa forma, algo positivo para a humanidade. Quando previne, trata e cura, a medicina, ou os saberes médicos, materializam o mundo a sua semelhança. Portanto, não se trata de negar a existência física, real, material, enfim, negar a doença, nem tampouco sua cura ou seu alívio. Elas são verdades, materializadas por um corpo de discursos e de práticas eficientes na resolução dos problemas que instituídos pelos próprios saberes (Foucault, 2001). Portanto, a questão estaria em outro nível: o que os saberes médicos problematizam? O que é o normal e o que é o patológico? Resumindo, a perspectiva a que esse pequeno artigo se conecta é baseada muito menos em verificar a eficiência ou as maneiras pela qual os saberes médicos resolvem os problemas e muito mais numa discussão a respeito do que é e como se constroem os problemas.

Uma das perversidades da legitimação da ciência como o modelo de produção do conhecimento é obscurecer o fato de que todo saber é também poder. Isso é especialmente importante no caso dos saberes médicos, ontologicamente articulados entre a pesquisa e prática clínica. Articulação, nesse caso, não quer dizer uma seqüência causal de aplicação prática de conhecimentos científicos: a medicina se constitui num campo de intersecção recíproca, numa rede capilar de saberes-poderes entre a prática clínica e a produção de saber. Os saberes médicos são, ao mesmo tempo, um discurso e uma prática. É por isso que dois cuidados metodológicos fundamentais devem ser tomados quando se pretende tomá-los como objeto de análise. Primeiro, eles não são apenas um conjunto de regras ou prescrições de condutas impostas de cima (ciência) para baixo (a sociedade). Firmemente ancorada em resultados empíricos, a medicina, como outros saberes, constitui suas positividades e nelas se realiza. Como já foi dito, enquanto

um saber-poder, constrói o mundo ao mesmo tempo em que o explica. Daí decorre uma segunda precaução: falar da medicina ou dos saberes médicos enquanto discurso, ou discursos, significa entendê-los a partir de suas capilaridades, de suas contingências. Se a medicina pode ser entendida como discurso – e é bom que fique bastante claro que essa é apenas uma forma de entendê-la – é porque se tem em conta que, como bem apontou Clavreul (1983), dela não participam apenas médicos e cientistas, mas todos aqueles que, de alguma forma, tomam como objeto a saúde e a vida humana; uma sociedade medicalizada, na falta de um outro termo melhor, não é necessariamente aquela em que os médicos e suas prescrições impõem seu poder, na condição de sujeitos, sobre cidadãos leigos sujeitados; trata-se de uma sociabilidade em que os dilemas colocados pelos saberes médicos são compartilhados enquanto valores fundamentais e perseguidos continuamente. Buscar a vida saudável, afastar a morte, aliviar o sofrimento, identificar as patologias e alcançar a normalidade: dilemas que, sem dúvida, balizam a sociedade contemporânea, berço e produto da medicina enquanto conhecimento científico legitimado.

O objetivo desse pequeno artigo é discutir um dos temas mais complexamente imbricados num contínuo que pode ser traçado entre os saberes médicos e as humanidades: o consumo de substâncias psicoativas, chamadas comumente de “drogas”.2 Em trabalhos anteriores (Fiore, 2005, 2007), fiz uma análise mais aprofundada de como se estabelecem as principais controvérsias médicas no debate público sobre uso de “drogas”. A noção de controvérsia me permitiu analisar os discursos médicos tendo como pressuposto a sua complexidade e, principalmente, sua dinâmica, evitando-se, dessa forma, tomá-los como um corpo homogêneo de certezas e prescrições. A partir dos dados e da experiência acumulada nessa pesquisa, buscarei discutir brevemente duas dessas controvérsias que me parecem fundamentais no entendimento contemporâneo da questão do uso de “drogas”: as noções de prazer e risco.

Como não se trata de reproduzir um trabalho empírico já realizado, o objetivo é apenas apontar alguns pressupostos que tornam possível a elaboração dos discursos médicos a partir desses dois conceitos ou, de outra forma, discutir como os discursos sobre prazer e risco, continuamente vinculados ao consumo de “drogas”, podem realizar seu regime de verdade. Tal procedimento incorre num prejuízo analítico com relação aos importantes conflitos entre diferentes concepções médicas que se enfrentam num permanente campo de forças, fortemente explicitado na emergência contemporânea de novas abordagens sobre o tema, representadas principalmente pelo que se convencionou chamar de Redução de Danos.3 A idéia é se afastar momentaneamente desses conflitos para tentar encontrar pressupostos gerais que orientam aquilo que chamei, de maneira esquemática, de abordagem médica “tradicional” do uso de “drogas”. A despeito de não ser a única, essa abordagem tem sido predominante no debate público contemporâneo sobre a questão no Brasil e em grande parte do mundo.

Um último preâmbulo se faz necessário: embora o consumo sistemático de substâncias consideradas capazes de alterar de alguma forma a consciência ou o Sistema Nervoso Central (SNC) tenha sido constatado desde tempos remotos, foi somente ao longo do século XX que algumas dessas substâncias se tornaram objeto de diversos saberes, falas, práticas e controvérsias, constituindo, assim, um campo de atenção e de debate e, principalmente, em preocupação de Estado.4 No decorrer desse processo, algumas substâncias psicoativas foram classificadas genericamente como “drogas” e, assim, sua produção, distribuição e consumo conformam-se, contemporaneamente, como uma questão das “drogas”, assumindo definitivamente o estatuto de um problema social (Lenoir, 1998). De maneira sintética, pode-se dizer que a instituição das “drogas” enquanto questão social foi balizada por três formações discursivas fundamentais: medicalização, criminalização e moralização. Elas só podem ser separadas analiticamente, na medida em que estão constantemente influenciando a produção e circulação dos discursos sobre o tema. Nesse artigo, é a vertente medicalizada dos discursos sobre o consumo de “drogas” o objeto de reflexão.

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 142-145)